Farida Khalaf: “Estou sempre a pensar nas mulheres que estão prisioneiras do ISIS”

Farida Khalaf
Farida Khalaf (Fotografia: JMartin/CE2017)

A história está publicada em Portugal desde 2016, no livro ‘A Rapariga que derrotou o Estado Islâmico’ (ASA), mas ouvi-la de viva voz, como aconteceu nas Conferências do Estoril, no final de maio, tem outro impacto. Farida Khalaf sabe disso, e por muito que lhe custe partilhar, repetidamente, o seu sofrimento – viu o pai e o irmão morrerem às mãos do Estado Islâmico e foi abusada sexualmente, quando foi feita prisioneira pelo ISIS – fá-lo para chamar a atenção da comunidade internacional e dos governantes para a realidade que muitas mulheres e raparigas yazidis ainda vivem.

Farida, que pertence a essa minoria perseguida pelo Estado Islâmico, tinha 17 anos, quando, em 2014, os militantes do ISIS invadiram a sua aldeia no Iraque, e a venderam como escrava sexual. Submetida a espancamentos e violações, tentou suicidar-se várias vezes. Acabou por conseguiu escapar e atualmente encontra-se refugiada na Alemanha. Decidiu contar a sua história, em livro e ao vivo, porque quer ver o ISIS julgado no Tribunal Penal Internacional, mas também para que as novas gerações não esqueçam o quase genocídio a que os yazidis estão a ser sujeitos. Quando conseguirem ajudar a sua comunidade e outras minorias, na mesma situação, a libertarem-se, Farida promete voltar a sorrir.

Na primeira conferência que deu no Estoril fez o público chorar com a sua história. Quando dá o seu testemunho que ação espera obter das pessoas, quais são as suas expectativas?
Não é fácil estar sempre a contar a minha história, mas eu estou a lutar por outras mulheres da minha comunidade que ainda estão em cativeiro. Há duas expectativas diferentes. Quando lhes peço que imaginem que uma dessas mulheres é a sua irmã, filha, esposa ou mãe, não sei exatamente o que vão fazer, mas acredito que aqueles que o imaginem, acabarão por tomar alguma medida e dar o seu melhor. Eu espero que façam qualquer coisa, e qualquer pessoa pode fazer alguma coisa, à sua maneira. Por outro lado, se estivermos a falar de políticos e governos, eles podem agir. Vou pedir-lhes – e espero que eles me oiçam a mim e a outros sobreviventes – que levem estes casos ao Tribunal Penal Internacional, que tragam o ISIS à justiça. Porque nós não temos apenas que combater os militantes do ISIS, temos de combater a ideologia. Se os levarmos a tribunal saberemos de onde vêm a sua ideologia e os seus recursos. Outra das coisas que espero alcançar, com todas estas viagens que faço para contar a minha história, é ajudar outras mulheres e raparigas, e também homens, que e ainda estão reféns, esperando que a comunidade internacional os possa libertar. E aqueles que escaparam do cativeiro também precisam de ajuda porque não conseguem sair das suas aldeias sem proteção internacional, porque não acreditamos e não confiamos nas nossas forças locais. Se não houver proteção internacional para os yazidis de outras minorias não temos hipóteses de sair das aldeias.

Porque é que não confiam nas forças locais?
Porque o meu exemplo e experiência com eles dizem-me isso. Quando a minha aldeia foi atacada e e ficou controlada por militantes do ISIS, durante 12 dias, pedimos-lhes ajuda. Mas ninguém agiu, ninguém nos ajudou. E mesmo antes do ISIS entrar havia milhares de soldados a cercar a nossa região, mas deixaram-nos para trás. Como é que podemos voltar a confiar neles, se eles já nos abandonaram uma vez?

A Farida está agora na Alemanha, como é o seu dia-a-dia?
Posso dizer que na Alemanha me sinto mais segura que no meu país [o Iraque]. E que o povo e o governo alemão fizeram e estão a fazer, a ajudar-me a mim e a outros yazidis na Alemanha, foi algo que não tivemos do nosso governo no nosso próprio país. Por isso, sou-lhes muito grata. Agora, os meus dias são passados a ir à escola e também a ajudar a minha família. Além disso, tento também consciencializar [as pessoas] para o problema dos yazidis, para o seu genocídio, quando viajo pelos diferentes países para contar a minha história e pedir o seu apoio. É essa agora a minha vida.

Uma das coisas que partilha quando dá o seu testemunho são os sonhos que tinha antes de a sua aldeia ser invadida pelo Daesh. Um desses sonhos era ser professora de Matemática. Ainda mantém esse sonho? Consegue voltar a sonhar?
Sim, como disse nas conferências o meu sonho era ser professora de Matemática e ainda é. Mas não é fácil sê-lo na Alemanha, porque é uma língua nova, um sistema educativo diferente, mas mesmo assim vou tentar. Atualmente, os meus sonhos já não são os mesmos que eram antes do ISIS. Hoje, os meus sonhos são trazer justiça para a minha comunidade, para os yazidis. Esse é o meu maior sonho.

Gostaria de regressar ao seu país, à sua aldeia, assim que estiver livre do ISIS, ou gostaria de seguir os seus estudos na Europa?
Não é fácil regressar. Como poderia voltar a um sítio onde o meu pai, o meu irmão e outros familiares foram mortos, e em que não tenho a certeza se isso se vai repetir ou não? Se não houver proteção internacional não terei possibilidades de regressar. Sem isso, não confio que possa estar segura. E também quero prosseguir com os meus estudos, talvez na Europa. Talvez no futuro, se me sentir mesmo segura, eu volte.

Como se consegue sobreviver a todos os traumas que viveu. Na Alemanha, teve algum tipo de apoio psicológico, por exemplo?
Quando viemos para a Alemanha, havia um programa de acompanhamento especial de apoio psicossocial para a maioria das mulheres e raparigas yazidis. Algumas continuam a tê-lo, outras já estão bem porque se sentem seguras, frequentam a escola, estão a aprender línguas. É melhor estarem lá do que terem permanecido no Iraque, porque no Iraque, quando escapámos não havia apoio nenhum. Algumas voltaram a tentar suicidar-se. Na Alemanha não há nenhum caso de tentativa de suicídio entre as yazidis recolhidas. Não é fácil, ainda assim, mas é melhor.

Nos seus testemunhos disse que as mulheres mais velhas comentavam que as raparigas que, como a Farida, tinham sido feitas escravas nunca conseguiriam arranjar marido. Era um dos seus projetos, casar e ter filhos?
Não penso em casar. Não é fácil pensar em casar, neste momento é mesmo difícil sequer pensar nisso. Talvez num futuro consiga pensar. Neste momento, estou concentrada em prosseguir os meus estudos, ajudar o meu povo. É nisso que tento pensar, não em casar e ter filhos. É difícil depois de todo este sofrimento ter uma vida normal e a minha família e a comunidade ainda precisam de mim. Não é fácil, tomar decisões agora.

Está completamente dedicada em obter toda a ajuda possível para a comunidade yazidi.
Sim, neste momento eu quero ajudar e apoiar a minha família. Mas quando digo “minha família”, não estou a falar de mim, da minha mãe e dos meus irmãos, significa todos os yazidis que estão em cativeiro, aquelas mulheres que ainda não foram salvas, que escaparam mas que precisam de ajuda. Essa é a minha família e é por ela que eu luto. Tento obter ajuda para todas essas pessoas.

A Farida escreveu um livro, que está publicado em Portugal, com o título ‘A Rapariga que Derrotou o Estado Islâmico’ (editado em 2016, pela ASA). Porque quis pôr a sua história, uma história tão pessoal e traumatizante, em livro?
Decidi contá-la em livro porque penso que é importante ter provas que possam ser usadas no futuro, que as próximas gerações saibam o que me aconteceu a mim, à minha família, aos yazidi. É importante também para que a comunidade internacional saiba o que se passa. E penso que será útil para levar o ISIS aos tribunais. Quando escrevi esse livro senti que era mais forte que o Estado Islâmico, porque ao escrevê-lo estou a usá-lo contra eles, estou a combatê-los. E, de certa forma, sinto que sou mais forte do que eles, porque estou a combater um mal.

Apesar de todo o sofrimento por que passou, e ainda passa, consegue encontrar motivos de alegria na vida? Há alguma coisa que a consegue fazer sorrir atualmente?
Ainda não consigo apreciar a vida, nem consigo sorrir como sorria antes, porque estou sempre a pensar nas mulheres que estão prisioneiras do ISIS, no que estão a sofrer, porque eu passei por isso. Estou sempre a pensar nelas. O que às vezes me faz sorrir é a minha família. Os meus irmãos e a minha mãe. Quando vejo que eles estão ligeiramente felizes, então sorrio. Especialmente, o meu irmão mais novo, que tem 12 anos. Não temos pai – como disse, ele foi assassinado – mas, mesmo assim, sempre que o meu irmão sorri, isso faz-me sorrir também. Posso mesmo dizer que ele é a única pessoa que me faz sorrir.

E ter esperança no futuro?
Espero que esta seja a última vez que enfrentamos esta violência. Não é a primeira vez que o vivemos. No futuro, se eu e a minha comunidade conseguirmos um futuro melhor, se os yazidis e outras minorias o conseguirem, aí ficarei feliz e voltarei a sorrir.