Felicity Carter: “Falar em vinhos doces de mulher é promover um estereótipo horrível”

É hoje diretora da Wine Business International, uma prestigiada revista de vinhos, do grupo Meininger, um dos mais antigos na Alemanha. Já passaram 12 anos desde que os artigos de Felicity Carter sobre vinhos na Austrália captaram a atenção europeia, levando esta empresa alemã a fazer o convite que ditaria o grande “salto” da sua carreira.

Pelo caminho, certificou-se pelo WSET(Wine & Spirit Education Trust), desenvolveu estudos sobre as condições das mulheres na indústria do vinho e conheceu muitas regiões vínicas do mundo. Embora não adore escrever sobre a desigualdade de género no universo do vinho, Felicity Carter é a primeira defensora de que a mulher não se tem de sujeitar a comentários como “é um vinho doce para mulheres”.

Em Portugal a convite do MUST, um wine Summit made in Portugal – que reuniu especialistas do mundo inteiro -, a jornalista especializada em vinho falou com o Delas.pt sobre a sua carreira, o vinho e a geração millennial.

Foi na Austrália que começou a sua carreira no mundo dos vinhos?
Sim, consegui ter uma história sobre vinho publicada num grande jornal australiano e as pessoas pensaram que era especialista. Comecei a ser convidada para provas, mas rapidamente ficou claro que eu não era nenhuma perita na matéria. Na Austrália, o meio é principalmente dominado pelo sexo masculino, que está muito atento aos nossos erros. Na altura eu era freelancer, por isso ia para casa e lia, lia e estudava. E foi assim que fui aprendendo, porque estava farta de ouvir as bocas dos rapazes. Depois fui convidada para trabalhar na Europa e aceitei. Penso que a crítica vínica está dominada por pessoas especializadas em vinho e, quando escrevem, fazem-no para um público informado. O meu trabalho é procurar um especialista e conseguir que eles falem. É uma vantagem, permite-me ver as coisas de outra forma.

Hoje escreve-se mais sobre a igualdade de género nessa imprensa especializada?
Sim, mas eu tento afastar-me disso porque promove o estereótipo. O que aconteceu nos últimos 15 anos é que o vinho tentou atrair mulheres consumidoras, mas essa procura também levou uma indústria inteira a escrever sobre produtoras e sommeliers. E eu não gosto disso, porque ao dizeres como é incrível haver uma mulher sommelier bem-sucedida é também afirmar o quão extraordinário é uma mulher estar envolvida no vinho. Mas não deixo de falar das mulheres. Por exemplo, na Wine Business International fizemos, em 2016, uma sondagem internacional sobre as condições de trabalho das mulheres na indústria.

E a que conclusões chegaram?
Bem, inicialmente o estudo foi feito na Austrália, e quisemos abordar o assédio sexual, o salário, as oportunidades. Era um bom estudo e percebemos que faria sentido fazê-lo internacionalmente, então alargámos à Nova Zelândia, Califórnia e Europa. Então percebemos que toda a gente do novo mundo dizia que havia muito sexismo, enquanto que na Europa não havia problemas ou estava tudo bem. Tendo vivido nos dois mundos, eu sei que na Europa há muito sexismo. Apercebemo-nos então que, no novo mundo muitas mulheres eram funcionárias ou tinham começado o seu próprio negócio, enquanto que no mundo antigo as pessoas herdavam o vinho e tinham uma posição e perspetivas diferentes.

Tiveram reações ao estudo?
Depois de o publicarmos. Recebemos muitas mensagens de mulheres que trabalhavam na Europa e que quiseram contar-nos os problemas com que lidavam. Ouvimos histórias horríveis, todo o tipo de coisas.

A igualdade de género é algo longínquo também na indústria do vinho?
Depende do setor da indústria. Acho que, no geral, é uma área muito boa para as mulheres, exceto em alguns casos, nomeadamente os setores que implicam longas horas de trabalho à noite e fins de semana, como acontece com a restauração. Pode ser difícil para algumas mulheres assim avançarem na indústria se tiverem filhos. Muitas vezes, também se escolhem mulheres jovens e muito bonitas para vender vinho aos homens ou até para trabalhar em bares, em que podem ser vítimas de assédio. A indústria não é perfeita, mas quando se trabalha com vinho trabalha-se em hospitalidade e as pessoas passam muito tempo juntas. Se houvesse mau comportamento saber-se ia rapidamente e isso podia destruir uma reputação.

O mercado está hoje mais voltado para as mulheres?
A ideia é a de que os homens são naturais consumidores do vinho, têm bom gosto e não é preciso convencê-los. Mas, de repente, a indústria apercebe-se que as mulheres têm imenso poder de compra, especialmente em sítios como supermercados e querem convencê-las a comprar mais vinhos. Mas esta ideia de que não têm tão bom gosto, fez com que fossem incentivadas através de técnicas de marketing a comprarem vinhos pelas embalagens bonitas ou pelo design – e foram afastadas dos vinhos mais finos, mais requintados, de melhor qualidade. Criou-se este estereótipo de que a mulher tem mau gosto para vinhos. E não é nada verdade.

O estudo revelou também as preferências das mulheres?
Revelou que elas não consomem mais do que os homens, porque afinal têm corpos mais pequenos. O objetivo não é beber mais vinho, é beber com mais qualidade. Do ponto de vista físico, os corpos das mulheres parecem ter sido desenhados para vinho fino, mas a indústria não lhes oferece isso.

Mas o paladar do homem e da mulher pode ser diferente?
Em termos biológicos, sim. Nós temos um paladar mais sensitivo, por isso a amargues apela menos às mulheres. Mas homens e mulheres gostam de doce de forma igual, é um erro pensar que não. Só quando ficamos mais velhos é que o nosso apetite por doces desaparece, mas é nessa fase que os homens são apresentados a vinho bom e embarcam neste universo, e as mulheres ficam presas a estas preconceções de vinhos doces. Falar em vinhos doces de mulher é humilhante e promove um estereótipo horrível. Mas o paladar não é a única coisa a influenciar-te, muito tem a ver com o teu contexto de vida e se não deres um contexto às mulheres para provarem vinhos mais refinados, nunca vão desenvolver um gosto por eles. Mas isto está a mudar, já está a acontecer o oposto na China que tem muitas mulheres milionárias self-made e comprar vinho caro e bom faz parte do seu estilo de vida.

Existem também diferenças entre gerações no consumo de vinho? Por exemplo, com as mulheres millennials?
Sem dúvida que sim, até porque o consumo de álcool nos mais novos está a decrescer. Eu não quero estar a oferecer aos mais novos mais álcool, mas é um bom prazer da vida poder beber um vinho ótimo na ocasião certa. Seria uma pena perder-se. Também são mais capazes de explorar, não querem saber se vem de uma adega fina ou não, e são mais propensos a provar novas coisas, novas regiões, novos sabores e mais interessados em sustentabilidade e em vinhos orgânicos.

 

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