“O sal nas papinhas do bebé é o primeiro passo para a hipertensão”

Médico cardiologista e professor, Fernando de Pádua é conhecido e reconhecido pela sua longa luta contra o consumo de sal em Portugal. À margem do lançamento da nova iniciativa da fundação homónima a que preside – Uma Tradição Para uma Comida Saudável -, o especialista revela ao Delas.pt algum cansaço de tanto falar do assunto, mesmo quando a legislação não arriscou e foi conservadora na hora de definir um limite mais ousado para o corte no consumo deste mineral.

Falta de coragem política ou questões económicas? Pádua é cauteloso e fala antes em barreiras culturais e heranças históricas, entre elas a que António Oliveira Salazar deixou.

Fernando de Pádua
Fernando de Pádua [Fotografia: Natacha Cardoso/Global Imagens]
Nesta conversa, o cardiologista, de 91 anos, lembra que a comida saudável e sem sal não é um assunto, muito menos prerrogativa, de ricos. O médico lembra que as famílias com menos rendimentos podem, fazendo escolhas simples, vir a ter uma vida e uma saúde diferentes se fizerem melhores escolhas alimentares. Mais: pede para que todos usem alternativas ao mineral como a salicórnia (na galeria acima encontrará essa e mais uma dúzia de outras).

 

Tem sido uma longa batalha pelo sal. Já houve reduções e começam a chegar alguns resultados em território nacional. A bata batalha do sal não chega?

Chegar, chegava. Neste momento, estamos já a ficar cansados de tanto abrir a boca para falar do sal. A ideia que preside a esta batalha prende-se com o estilo de vida saudável, com a prática de exercício. Mas ainda estamos com esta questão porque é um problema verdadeiramente nacional. Somos um país que descobriu o mal e levamo-lo a todo lado e devo dizer que nós temos culpa das pessoas que estão a morrer em Angola e Moçambique por consumo de sal. Cá, habituámo-nos muito ao sal e, mesmo com sensibilização para a alimentação saudável, é muito difícil recuar. É que mal uma criança acaba de nascer e chega ao lar, e começa a mamar, pouco tempo depois fica sem a mãe porque ela precisa de ir trabalhar. Ainda o bebé não tem os seus direitos e mãe já tira o leite com uma máquina e isso é uma coisa criticável – por ter um aparelho a esfolar e a extrair, a tornar mecânico o que é natural. Mas a mãe acaba por ceder por precisar de ir trabalhar.

“Neste momento, estamos já a ficar cansados de tanto abrir a boca para falar do sal”

Os problemas do sal começam à nascença?

A mãe sai de casa para ir trabalhar e o menino chora. Mas, para ele não chorar, dá-lhe papinhas, quando o que ele quer e precisa é maminha. A mãe fica deprimida porque o filho está triste, mas depois um familiar vai provar a papinha e percebe que não tem sal. E diz à mãe: ’Ele chora porque isto não sabe a nada’. E a mãe põe um bocado de sal e acaba por ser, sem querer, a primeira pessoa a introduzir o sal na vida de uma criança.

A culpa é das mães ou das circunstâncias que elas têm?

As que resistem a este ciclo, tudo bem. As que não resistem, colocam um pouco de sal nas papinhas do bebé, que é o primeiro passo para a hipertensão. A própria mãe, que está a amar o seu filho e o quer ajudar, até a si própria se engana, fazendo isto. Temos de começar a sensibilizar por aí. Em Portugal, também quero lembrar que há histórias no nosso passado que explicam este nosso consumo de sal. Quando Salazar disse que beber vinho era dar de comer a um milhão de portugueses, não explicou quantos copos deveriam ser. Depois, os taberneiros começaram fazer os amendoins e as pevides com mais sal para vender mais. Claro que criaram a cirrose do fígado e dispararam a hipertensão.

Há um consumo de sal diferente entre mais ricos ou mais pobres?

Não. A questão é que as pessoas mais cultas vão lendo e vão procurando as opções mais saudáveis.

A alimentação mais barata que existe no supermercado, adquirida pelos que têm menos rendimentos, é rica em açúcar e substâncias nocivas. Por isso, reitero a questão: um consumo de sal diferente por estratos sócio-económicos? Como olha para a saúde desse grupo de pessoas, que está a crescer?

Falamos de produtos cujo sal acrescido tem outras componentes do sódio e até como conservantes, já não é apenas o cloreto de sódio. E essas substâncias são más. A Direção-Geral da Saúde tem sido muito insistente neste combate. Francisco George [ex-diretor-Geral da Saúde] defendia uma medida que considero muito importante: a de semaforizar a informação nutricional dos alimentos e produtos do verde (o que é bom) ao vermelho (o que não é). Podíamos ter, por exemplo, um pão cuja informação fosse verde e outro vermelho, ajudando as pessoas a escolher melhor.

“Falamos de produtos cujo sal acrescido tem outras componentes do sódio e até como conservantes, já não é apenas o cloreto de sódio”

Mas tendo em conta a falta de recursos de famílias e a compra de alimentos mais baratos e menos saudáveis, o consumo de sal não pode recuar e piorar?

Quem disse que é mais barato? Há outras soluções. Estamos a fazer hortinhas na cidade e devemos apoiar muito isso. Podemos comprar os alimentos da época nos mercados, que são muito mais baratos do que os que não são. Mas, em Portugal, reduzimos um bocadinho o consumo de sal e até somos elogiados por isso. Hoje, a média de consumo está nos 14 gramas por dia, antes era 20 e tal.

O objetivo era reduzir para as cinco a seis.

Foi por lei estipulado 14, porque já era bom, mas não chega. Nos Estados Unidos da América, há livros dos anos 50 do século passado que relatam que o senado americano já decretava que era preciso consumir cinco gramas por dia.

O que faltou em Portugal? Coragem política?

Não digo que seja coragem política. Neste momento, as pessoas pensam que estão a fazer bem porque conseguem atingir este limite mais simples dos 14 gramas e depois logo reduzem mais. Mas não pode ser. Tem-se informar as pessoas da verdade e depois ensinar como fazer. Não é um problema de dinheiro. Bem, na verdade, o dinheiro, na verdade está sempre metido. É um problema da sociedade.

“Neste momento, as pessoas pensam que estão a fazer bem porque conseguem atingir este limite mais simples dos 14 gramas e depois logo reduzem mais. Mas não pode ser”

Foi, então, uma questão económica?

Um professor em Inglaterra fez um levantamento e tem conseguido chegar a acordos, sobretudo, com a indústria alimentar. E o milhão e meio de libras que investiu por ano para conseguir baixar a alimentação no país inteiro, já o fez ganhar para a saúde o equivalente a a 1500 milhões anuais.

Mas foram os interesses económicos que fizeram com que, em Portugal, não fossemos tão ousados na proposta inicial?

Não sei. Não temos feito essa leitura. Isso tem de ser o Estado a fazer, nós, médicos, falamos para as pessoas. Costumo dizer que a saúde é por de mais importante para estar apenas nas mãos dos médicos, cada qual tem de aprender a tomar conta de si.

Mas não temos um milhão de libras para essa batalha.

Pelo que vamos lendo e vamos sabendo, o orçamento para a saúde que é cativado não nos dá se não 1% para prevenção. Se fosse 2%, era o dobro (pausa). O [ex-]presidente Cavaco Silva criou um conselho de combate ao tabagismo decidiu que 1% dos impostos do tabaco era para a prevenção. Nessa altura, eram 400 mil euros. Mas isso acabou.

Que iniciativas prevê no combate ao sal?

O mais importante é que cada um saiba como melhorar os seus hábitos. A começar pelos avós, quando contam as histórias aos seus netos e falam da alimentação e do exercício, passando pelos aos pais quando falam com os filhos. É preciso criar hábitos saudáveis. Quando não somos habituados ao excesso de sal, é possível viver sem precisar dele. Depois, há também plantas que podem fazer essa substituição. Por exemplo, a salicórnia, que sabe a sal e pode ser um bom substituto.

“Quando não somos habituados ao excesso de sal, é possível viver sem precisar dele”

Mas o que pode ser feito?

É preciso sensibilizar, informar e ensinar, por exemplo, através das receitas de cozinha. Para isso, é preciso falar com as pessoas, dar-lhes as informações, mas hoje os médicos estão cada vez mais a olhar para os ecrãs em vez de olharem para os doentes. Os especialistas, hoje em dia, não têm tempo para dar conselhos e isso é muito importante. Chamo a isso medicina comportamental e que se deve aliar à medicina preventiva.

Imagem de destaque: Natacha Cardoso/Global Imagens

Guerra ao açúcar em abril. Ao sal e gordura chega depois

Adeus anúncios doces, salgados e gordos para as crianças