“Fico satisfeita por corporizar mais um passo na paridade”

Maria do Ceu Ramos

Primeira mulher à frente do Centro Português de Fundações, a também secretária-geral da Fundação Eugénio de Almeida fala sobre os desafios do setor.

Maria do Céu Ramos foi eleita, em março, presidente do Centro Português de Fundações (CPF). Primeira mulher no cargo, elegeu quatro desafios para o mandato. Um deles é promover o CPF como parceiro social e representar, à mesa da concertação, 138 associados de um setor, que em 2017, tinha ativo um universo de 579 fundações. O organismo participou no último encontro europeu de fundações, que neste ano debateu a importância da cultura na coesão das comunidades. A missão portuguesa que o CPF levou a Bruxelas incluiu instituições portuguesas com projeção internacional, como a Calouste Gulbenkian, mas também outras com intervenção comunitária, como a Fundação Alentejo.

“Esta direção a que presido foi eleita há dois meses, mas estou confiante de que, tal como a outros setores ou subsetores da sociedade foi reconhecido o estatuto de parceiro social – caso das cooperativas -, a Assembleia poderá legislar para reconhecer o mesmo estatuto ao Centro Português das Fundações.”

Como é que a cultura pode fazer a diferença e que papel têm as fundações?

É a cultura aquilo que mais quotidiana e transcendentemente nos liga como pessoas, como países. Pode ligar-nos de todas as maneiras, aproximando-nos ou afastando-nos. Sermos capazes de adotar uma atitude culturalmente aberta, dialogante e construtiva perante a diferença cultural é a chave. E as fundações podem ter um papel determinante nisso porque estão numa relação muito próxima com as pessoas, mas obviamente têm capacidade crítica, uma dimensão de projeto, independência criativa e atuam a longo prazo. Não estão preocupadas com a agenda ou a tendência. São capazes de atuar no presente à luz de princípios mais relevantes, mais transtemporais. O caso dos direitos humanos, que tem uma agenda tão vasta e tão complexa mas em relação ao qual a civilização ocidental tem princípios adquiridos incontornáveis, volta a estar em destaque em países como a Hungria, e daí que muitas das fundações que aqui estão estejam a falar de direitos humanos e de como atuar através das fundações, quando pensávamos que a situação já não se colocaria.

Que importância tem este tipo de encontros, para as fundações, as portuguesas, em particular?

Encontros como o do European Foundation Center (EFC) são oportunidades excelentes para atualizarmos o pensamento e percebermos as tendências de projeto, das preocupações doutras culturas, contextos e organizações. Portanto, tem um lado de atualização e de sintonização com os outros países e com as outras fundações. Tem um lado de networking fundamental, muito orientado para a criação de projetos comuns, e outro de aprendizagem permanente. Daí que o CPF considere muito importante organizar missões como esta. Neste ano é muito relevante que esteja a acontecer a conferência do EFC, ao mesmo tempo que se articula o EFC com o DAFNE, que é uma associação europeia de doadores e de fundadores, representa centros nacionais de fundações, e com a EVPA (European Venture Philantrophy Association). Portanto, é importante participarmos do ponto de vista das fundações, individualmente consideradas, fazermos este reconhecimento do que é a atualidade, do que são as tendências, para termos um lado de aprendizagem permanente, e do ponto de vista mais das organizações, também para se fazer uma articulação política das vontades, não apenas junto dos governos nacionais, mas sobretudo da União Europeia. E essa ideia de criar um mercado único da filantropia, um espaço de liberdade e cooperação para todas as fundações europeias, está muito presente na reunião.

O mercado único de filantropia pode beneficiar as fundações portuguesas?

A livre circulação de pessoas, serviços e capitais são princípios da construção da UE e muitas vezes nas medidas regulatórias não se concretizam por forma a facilitar a cooperação entre fundações e criar um ambiente favorável para projetos comuns que se traduzam de uma forma concreta em benefício das comunidades nacionais. Criar este ambiente pode trazer oportunidades de projetos em Portugal ou da atuação de fundações portuguesas noutros pontos da Europa ou trazer pontos de colaboração entre nações europeias para atuarem noutros contextos, como na América Latina, no espaço da CPLP. Portanto, a resposta mais concreta será justamente suprimir barreiras à livre circulação de pessoas, projetos, meios e recursos postos ao serviço de projetos filantrópicos – projetos sociais, culturais, educativos, de integração de minorias, de coisas concretas – em benefício das pessoas, na Roménia como em Portugal.

Não há risco de uma multinacionalização das fundações com prejuízo das mais pequenas, por exemplo?

A grande riqueza do mundo das fundações é que têm identidades muito vincadas, muito próprias, e as fundações são muito fiéis ao seu ADN fundador. Haverá sempre lugar para todas. Há umas que operam na grande escala multinacional, outras na escala comunitária, e isso também é bom. O que se observa é que há uma sã convivência, nos vários níveis, nas várias escalas e em ambientes como os deste encontro, há possibilidade de fazer um ecossistema onde todos são chamados a colaborar.

Em Portugal, quando falamos de fundações estamos a falar de que valores?

Além dos apresentados pelo CPF, não creio que se possa julgar o setor fundacional pelo valor dos seus ativos. Há pequenas fundações que até nem têm tanto património e são aquilo que nós chamamos, mailbox foundations – que captam recursos para fazer projetos porque não têm grande capacidade económico-financeira própria. E fazem imensa diferença na vida das pessoas porque são aquelas que atuam perto dos problemas, na zona de risco ou de emergência. A avaliação do setor fundacional tem de ser feita não com critérios quantitativos mas pelo valor qualitativo, da sua independência, capacidade de operar a longo prazo, de assumir riscos, de estar perto das pessoas, tudo isto com a combinação da capacidade de serem efetivas na intervenção.

Qual é o retrato das fundações portuguesas, em termos de estatuto e fontes de financiamento?

Predominantemente são fundações privadas, e privadas patrimoniais, que têm os seus ativos constitutivos como suporte para a sua atuação. A fundação de onde provenho é um caso típico. Mas há também fundações públicas, criadas por universidades públicas, por autarquias, por organismos da administração central, portanto, há de tudo. O que as une é este conjunto de características que as torna relevantes na sociedade. O panorama português tem fundações muito grandes e outras mais pequeninas, em termos patrimoniais, umas que trabalham a nível nacional e internacional, outras que só trabalham nas comunidades locais. Onde se deve fazer a linha de separação é entre setores público e privado, porque a origem dos fundos são os ativos patrimoniais de cada um ou o Orçamento do Estado – e aí os critérios são outros, mais exigentes, e tem de haver uma consolidação com as políticas públicas. A afirmação de que o setor fundacional é sobretudo privado é algo que interessa ao Centro Português de Fundações e é essa a linha de continuidade com que temos estado, no diálogo com os sucessivos governos, em relação à separação entre as fundações privadas e as fundações públicas.

Um dos quatro desafios que elegeu para o mandato é, precisamente, fomentar a aproximação com o governo enquanto parceiro social.

Estamos no começo. Esta direção a que presido foi eleita há dois meses, mas estou confiante de que, tal como a outros setores ou subsetores da sociedade foi reconhecido o estatuto de parceiro social – caso das cooperativas -, a Assembleia poderá legislar para reconhecer o mesmo estatuto ao Centro Português das Fundações, pela relevância que tem.

Enquanto parceiro social, qual seria o papel do CPF na relação com o governo?

A nossa relação com os poderes públicos, e o governo em particular, tem de pautar-se por um discurso de grande independência, transparência e colaboração. É esse o espírito que teremos no acolhimento do Conselho Económico e Social, se vier a ser reconhecido o estatuto de parceiro social ao CPF, em todas as matérias que constituem a sua agenda. A matéria ainda está muito no princípio, portanto, prefiro anunciar o espírito que conduzirá a nossa presença e pautará a nossa atuação, do que antecipar uma agenda concreta.

E que espírito será esse?

O espírito de independência, colaboração e grande transparência. Nós representamos um setor privado, com um conjunto de iniciativas relevantes a nível cultural, social, educativo e científico. Ignorar o capital de conhecimento que as fundações têm para ajudar à compreensão das problemáticas sociais e nas negociações da Concertação é desprezar ativos valiosos.

Outro objetivo é melhorar a lei-quadro das fundações. Que melhorias concretas seriam prementes?

A que falei há pouco é talvez a linha mais constante na postura do CPF. Desde a aprovação da lei-quadro que o Centro Português das Fundações considera importante separar o setor das fundações privadas, das públicas, porque estas são institutos públicos. Portanto, quando, predominantemente os capitais ou a administração são de origem pública, o quadro legislativo é outro. Atualmente, a lei tem dois grandes capítulos, achávamos muito importante acentuar essa autonomia.

Outro dos quatro grandes pressupostos do seu mandato é aprofundar a participação internacional. O CPF está representado em diferentes organizações, qual é o seu papel em cada uma delas, uma vez que são distintas em termos geográficos e de objetivos?

Enquanto Centro Português, estamos de facto representados no DAFNE, a rede europeia de associações nacionais de fundações. E temos um papel já de há muitos anos, muito ativo. Na segunda-feira houve aqui em Bruxelas uma reunião normal mas para dar o salto qualitativo, em termos de ter uma agenda de diálogo com as instituições europeias, que permita aprovar projetos mais inovadores e diferenciadores e também a supressão das barreiras, muitas vezes burocráticas, que existem à circulação dos projetos das fundações, no mercado único da filantropia que desejamos construir. No quadro da CPLP, os encontros que fazemos de dois em dois anos são um espaço de partilha, conhecimento, intercâmbio de ideias e aprendizagem com as fundações de todos os países da CPLP. Este ano há um encontro em S. Tomé e Príncipe já com o apoio institucional da organização e no final de setembro, em Lima, os encontros ibero-americanos da sociedade civil, onde estão representadas fundações, associações e outras organizações da sociedade com uma agenda mais ampla. E é muito importante a presença de Portugal e de Espanha, porque são os únicos países europeus que fazem parte desta plataforma predominantemente sul-americana.

Além do caso concreto de eu presidir ao CPF, ocorrem-me quatro ou cinco presididas por mulheres em Portugal: a Gulbenkian, a Champalimaud, a Bissaya Barreto, a CEBI… É gratificante, é o reconhecimento de mérito da competência e um passo concreto de construção da paridade.”

Portugal perde 7% nas verbas atribuídas pelos fundos comunitários. Para as fundações portuguesas isto pode constranger a atividade?

De um modo geral, as fundações podem concorrer livremente na captação de fundos comunitários. O que me parece importante sublinhar é que cada vez que uma fundação concorre, seja no campo da educação, da promoção social ou do património, coloca capitais seus como contrapartida dos fundos que podem ser atribuídos e fá-lo em torno de projetos concretos. Não sei se o facto de termos menos 7% à disposição do país vai facilitar ou dificultar a vida das fundações, o que sei é que elas facilitam uma boa aplicação desses dinheiros sempre, porque são organizações com muita capacidade de auto-organização, liderança de projetos, prestação de contas, cumprimento de critérios. Sendo bons aplicadores do dinheiro disponível, permitem fazer uma boa gestão dos recursos que existem, mais ou menos volumosos.

E num contexto destes, serão chamadas a intervir mais no terreno, uma vez que pode haver carência nos recursos públicos?

As fundações são chamadas de modo aberto, como são as associações, as cooperativas ou outras organizações não lucrativas. Mas, sim, sentimo-nos um setor especialmente chamado, porque a iniciativa Portugal Inovação Social é ela própria muito inovadora no panorama dos instrumentos financeiros para o desenvolvimento social na Europa. E quando se procuram respostas inovadoras aos programas sociais, as fundações têm capacidade para estar na linha da frente por si e em coligações estratégicas com os empreendedores sociais. Embora a iniciativa Portugal Inovação Social esteja aberta a toda a gente, nós sentimo-nos especialmente convocados, porque o nosso ADN, talento, experiência e conhecimento podem ser especialmente relevantes; ou atuando como antena agregadora, no território, da capacidade dos empreendedores e dos inovadores sociais, quer como parceiros financeiros desses empreendedores. A partir deste exemplo diria que dentro do setor não lucrativo continuaremos a sentir-nos sempre chamados, especialmente responsáveis, com a consciência de que somos bons gestores e bons prestadores de contas.

De forma genérica, o que é preciso para criar uma fundação?

É preciso o mínimo de capital, clareza quanto aos fins e uma relação muito forte entre a capacidade de uma organização ser sustentável e de ser um meio para cumprir aqueles fins, a vontade do fundador. E a partir do momento em que está construída a estrutura jurídica, isto é, há um património afeto ao cumprimento de determinados fins definidos pelo fundador, tem de haver o reconhecimento por parte das entidades e autoridades públicas. Este é outro aspeto em que o CPF gostaria que a lei pudesse vir a ser modificada, porque se para constituir uma empresa não é preciso nenhuma entidade, entendemos que também o reconhecimento das fundações deve ser automático. Gostaríamos que houvesse mais fundações mas, para isso, tem de haver mais vontade das pessoas com recursos patrimoniais para os pôr ao serviço da comunidade e, também, se calhar, maior capacidade de organizações já existentes, como o próprio Centro Português, para servirem de conselheiros, de consultores de pessoas que têm patrimónios próprios, para que se possam organizar e pô-lo ao serviço da comunidade. Há muito espírito de generosidade que pode ser transformado em filantropia ativa; pessoas singulares ou coletivas com recursos e que os podem pôr ao serviço da comunidade. Se o CPF puder fazer aí uma ponte vai prestar um bom serviço à sociedade também.

E a gestão é muito diferente da de uma empresa ou ONG?

As fundações não têm modelos únicos nem rígidos de gestão. A lei -quadro das fundações tem regras muito claras, definidoras e enquadradoras, mas há muitos modelos diferentes. Há fundações que constituíram empresas que gerem os seus ativos, outras que os gerem diretamente, outras nas quais os aspetos económico-financeiros não têm grande peso…

É a primeira mulher a presidir o CPF. Como é se sente nesse papel?

Tranquila e confortável. E satisfeita, porque ainda é mais difícil para as mulheres afirmarem-se e obterem o natural reconhecimento nos espaços em que se movem. Fico satisfeita por corporizar mais um passo nessa paridade.

No setor das fundações, estamos perto da paridade?

É um dos setores onde há mais, onde as mulheres conseguem ter mais relevância. Além do caso concreto de eu presidir ao CPF, ocorrem-me quatro ou cinco presididas por mulheres em Portugal: a Gulbenkian, a Champalimaud, a Bissaya Barreto, a CEBI… É gratificante, é o reconhecimento de mérito da competência e um passo concreto de construção da paridade.

Como concilia o papel de presidente do CPF com o cargo de secretária-geral da Fundação Eugénio de Almeida?

Nós temos os lugares profissionais nas fundações e quando pertencemos a uma associação que reúne as organizações para que trabalhamos temos ​​​​​​​de dar algo mais, de forma voluntária, porque são cargos pro bono, dentro do espírito associativo puro. É mais um esforço em tempo, em disponibilidade, mas que é muito gratificante. Além do trabalho e do prazer que tenho em trabalhar na missão da Fundação Eugénio de Almeida, de que sou secretária-geral, penso que contribuo, dentro do CPF, para o reforço, robustecimento e qualificação não só do setor fundacional como das pessoas que estão dentro das fundações.

Estamos no Ano Europeu do Património Cultural. Qual é o contributo das fundações para a preservação desse património?

A partir da experiência concreta da Fundação Eugénio de Almeida, posso afirmar que as fundações têm um papel muito importante na preservação do património e na sua revitalização, mas não apenas no património construído. O apoio a projetos culturais contribui também para a criação de um património imaterial e civilizacional. E aí temas como a integração dos migrantes, a promoção da língua, o apoio ao jovens criadores são coisas que, na primeira linha, podem não ser imediatamente associadas, mas são elos concretos na contemporaneidade para construir essa identidade e esse esteio de património cultural civilizacional.

Que papel pode ter a filantropia na coesão das sociedades atuais?

O papel das fundações pode não ser comparável em volume e em valor com as políticas públicas. Cada coisa tem o seu lugar e sua escala, mas as fundações podem ser agentes ativos da concretização das políticas públicas de coesão social, de transformação da sociedade pela educação, de integração de minorias, de robustecimento do papel das mulheres. Quer no âmbito de parcerias e colaborações com instituições públicas, no âmbito das políticas públicas, quer por si, no seu espírito de independência, de sentido de risco, de inovação, as fundações têm um papel muito ativo. Elas são simultaneamente lugares de pensamento e espaço de ação concreta. Isto faz uma diferença enorme. E não estão muito preocupadas com os ciclos, eleitorais ou outros, nem, em primeira linha, com a questão lucrativa, porque são por definição não-lucrativas. Esse conjunto de razões talvez ajude a perceber como é que as fundações fazem a diferença.