Bombeira partilha momentos arrepiantes de Pedrogão Grande

Desde os 18 anos que Filipa Rodrigues sabia o que custava combater um incêndio. Tal como o pai, quis ser bombeira voluntária e estava na corporação de Castanheira de Pera. Quando, a 17 de junho de 2017, a sirene do quartel ecoou, esta administrativa numa serração, hoje com 28 anos, fez o que fazia sempre: correr para vestir o uniforme de combate às chamas.

E naquele dia de temperaturas altas não fez nada de diferente. Seguiu com os camaradas para os eucaliptais em brasa, mas longe de imaginar que o calor intenso provocado pelas chamas lhe iam queimar quase 1/4 da pele (21%) e tirar um amigo de sempre: o Gonçalo, um dos bombeiros que não resistiu aos ferimentos do trágico e mortal incêndio de Pedrógão Grande.

Filipa Rodrigues [Fotografia: Paulo Novais/Lusa]

Hoje, longe de ter sarado as dores físicas e psicológicas, Filipa Rodrigues recorda ao Delas.pt como sobreviveu – por duas vezes – aos fogos do pinhal interior do distrito de Leiria, num mesmo dia.

Durante este ano, Filipa lembra os três meses de internamento – entre a Unidade de Queimados, em Coimbra, e a recuperação física em Leiria. Tratamentos que ainda duram, cuidados que ainda se impõem, comprimidos que a acompanham, para ajudar esta jovem mulher a dormir melhor, a superar o trauma e a combater a tristeza.

Na galeria acima, veja algumas das declarações de Filipa Rodrigues, uma bombeira que viveu o horror na fatídica estrada nacional 236, na qual morreram mais de 40 pessoas.

Imagem da estrada nacional 236, que liga Figueiró dos Vinhos a Castanheiro de Pera e onde morreram mais de quatro dezenas de pessoas, vítimas do fogo [Fotografia: Rui Oliveira/Global Imagens]
Tudo começou em Moninhos, Figueiró dos Vinhos. A equipa onde seguia Filipa estava a extinguir um incêndio quando, pelas 18:00 horas, é chamada para um novo foco, a caminho da Castanheira. “Apesar de ajudarmos todas as corporações, assim que percebemos que ardia na nossa terra, fomos a correr”, recorda.

O caminho direto era exatamente a estrada nacional 236. A mesma que seria palco de tantas perdas humanas, família inteiras dentro dos seus próprios carros. “Íamos na estrada e havia fogo por todo o lado, mas não sabíamos qual era a extensão. Entretanto, um casal que vinha de carro a alta velocidade no sentido contrário, bate contra nós. Eles morreram logo do choque e do calor”, conta.

“Nunca pensei safar-me daquele cruzamento”

A seguir, tudo mudou num instante. “Quando nos apercebemos, havia fogo por todo o lado. Tudo ardia, parecia um cenário de guerra”. Como a viatura dos bombeiros ficou imobilizada, corremos para o cruzamento de Vilas de Pedro. Era uma zona mais aberta, mais ampla, onde não estaríamos tão expostos ao calor”, diz Filipa.

No meio do fumo, do calor e das fagulhas incandescentes que “pareciam chicotadas quando batiam na pele”, Filipa conta que acenavam aos carros que passavam a alta velocidade. “Mas ninguém parava”, desfia. “Uma hora, durante uma hora pensei que ficava ali…nunca pensei safar-me daquele cruzamento”.

Até que um carro para, Filipa chama os colegas, mas ninguém vem. “Era tanto barulho. Não se ouvia um grito, nada ali era audível”. Pensou o melhor, que todos tivessem tido a mesma sorte. Mas não foi assim. Filipa perdia, nestas circunstâncias, um colega: o Gonçalo. E só saberia depois. Foram horas “sem comunicações” e “com temperaturas horríveis”.

Um dos cruzamentos da estrada nacional 236 [Fotografia: Rui Oliveira/Global Imagens]
Em todo este percurso, a bombeira voluntária, de 25 anos, ainda passou por Pobrais. “Vi as viaturas batidas no meio da estrada, queimadas. Olhei para dentro dos carros, mas não me lembro de ter visto pessoas lá dentro. Pensei que todas tivessem feito como nós. Que tivessem fugido”, recorda.

“Se não morri ali, aqui já não me vou safar”

Filipa Rodrigues já não estava em condições de voltar ao terreno. Tinha de ser tratada. Mas até conseguir algum alívio, foram muitas as horas de espera. E de terror. Afinal, voltaria a ser perseguida pelas chamas uma segunda vez, naquela noite de 17 de junho.

“Tivemos de ir para o hospital, para Coimbra, mas por uma estrada antiga, no meio de pinhais. Estava assustada. A certa altura, já havia fogo também aí. Veio outra vez aquela sensação: ‘Se não morri ali, aqui já não me vou safar’”, recorda.

No entanto, a sorte voltou afastá-la do calor. Mas não das dores. “Conseguimos chegar a Penela, depois de três a quatro horas de nos termos queimado. O centro de saúde estava fechado – como costuma estar tantos dias – e não havia nada para nos aliviar as dores, a única coisa que tínhamos era água”, conta.

“Tinha a cara a arder, dizia que ia morrer, mas lá nos aguentámos todos”

A bombeira lembra-se que, por esta altura, já mal conseguia fechar as mãos de tão inchadas que estavam. Isto sem falar nos braços, nos cotovelos, nas pernas, nas coxas, onde as queimaduras eram mais profundas. “Tinha a cara a arder, dizia que ia morrer, mas lá nos aguentámos todos.”

Hospital: gritos de dor e de aflição

Quando cheguei a Coimbra, já havia muita gente queimada”, lembra-se Filipa, recordando o desespero de “uma mãe que gritava porque tinha deixado uma filha queimada no carro. Foi o caos”.

Mas esta bombeira voluntária só percebeu a extensão da tragédia depois. “Só quando aliviaram as minhas dores é que comecei a ver e a perceber a dimensão da catástrofe. Uns com pés, mãos, braços, pernas, todos queimados. Horrível”, revela.

A voluntária acabaria por ficar dois meses na Unidade de Queimados do Hospital de Coimbra: “Durante algum tempo, enquanto aqui estive, não me foi permitido ver notícias.

“Uma mãe que gritava porque tinha deixado uma filha queimada no carro. Foi o caos”

Foi recuperando, a cada dia que passava, até que teve alta para começar fisioterapia. Neste processo, já em Leiria (São Francisco) e durante 18 dias, a bombeira sofreu um revés: “Isso não correu bem. Fiquei à espera da recuperação duas semanas, e devia ter sido logo e não com a intensidade que foi aplicada porque a minha pele rasgou. Se calhar, devia ter começado mais cedo e com exercícios não tão fortes.”

Fisioterapia, comprimidos e o difícil regresso a casa

Desde meados de setembro que Filipa luta todos os dias para curar as feridas. Enquanto o faz, tem feito ido todos os dias ao quartel, ver os colegas. “Estou a ser acompanhada, estou a fazer fisioterapia e medicação, tratamentos que têm sido pagos pelo seguro, mas até isso é complicado”, refere.

Nós, bombeiros, não estamos protegidos. Temos um acidente de seguros pessoais, isso não é proteção. Devíamos ter um seguro profissional, de trabalho de risco porque quer nos incêndios, quer nos transportes hospitalares, estamos mais expostos“, vinca e acusa.

O regresso de Filipa Rodrigues a casa também não foi fácil. “Voltar a passar por aquela estrada, foi um choque. Foi um reviver de tudo, outra vez. Para ir para a fisioterapia tenho de passar pelo sítio do acidente. O alcatrão está mais escuro… É naquele cruzamento que pensámos que seria o fim“, desabafa Filipa.

“Faço medicação para dormir, tomo antidepressivos, estou melhor agora”

E, logo, contrapõe e analisa: “Mas foi uma vivência e eu estou cá para dizer o que aconteceu. Em sete anos de combates a incêndios, aquele foi sobrenatural. Ou melhor, foi natural, nós é que não estamos habituados a fogos tão fortes.”

Filipa Rodrigues não fala, contudo, apenas nas dores físicas. “Tenho muitas marcas que vão ficar para sempre na pele”, lembra. E na memória. “A minha parte psicológica ficou muito abalada, perdi um colega que veio a falecer…”

“Faço medicação para dormir, tomo antidepressivos, estou melhor agora”, antecipa a voluntária de Castanheira de Pera. Mas as noites nem sempre ajudam. “Há dias em que é mais fácil adormecer. À noite, lembro-me mais do que se passou, das dores que tive.

O pai, a comunidade e o colega perdido

O gosto pelos bombeiros voluntários foi-lhe incutido pelo pai, que agora a convence a regressar. “Ele tenta incentivar-me a voltar, a não ter medo”, conta Filipa, acrescentando que o progenitor está na corporação há mais de 30 anos e que, apesar de ter estado a combater aquele incêndio de Pedrógão Grande, não “teve nada, graças a Deus”.

Filipa Rodrigues com os colegas de Castanheira de Pera Rui Rosinha, Fernando Tomé e Fernando Tomé (filho). Os quatro bombeiros voluntários ficaram feridos num acidente, na nacional 236, no combate ao incêndio de Pedrógão Grande, de 17 de junho de 2017 [Fotografia: Paulo Novais/Lusa]

A voluntária – que “fazia uma coisa de que gostava” – ainda não tem, contudo, certezas. “Quando saí do hospital, decidi que não queria nada disso. Agora, vejo-me em casa, limitada, a recuperar, mas o amanhã… estou indecisa“, diz. E continua: “Não sei se volto. Se o fizer, volto para a minha corporação, posso fazer emergência hospitalar, transportes de doentes, mas não mais isto… Já entrei num carro de fogo e até o cheiro, que não notava, agora é um cheiro a queimado.”

As marcas da tragédia também são fortes na comunidade. E não é para menos. “Hoje, ao toque da sirene, fica toda a gente em sobressalto. Nunca passámos uma situação em que tivéssemos perdido tanta gente, tivéssemos visto tanta desgraça”, contextualiza Filipa. “Toda a gente aqui teve a sua vivência e vê-se muita tristeza, muita mágoa, muito medo escondido. Diz-se por aqui: ‘Que esta se esqueça e que outra não se lembre’.”

Esta terra perdeu filhos. “A perda do Gonçalo [Correia, que não resistiu aos ferimentos] foi extremamente dramática, ainda hoje não conseguimos acreditar que ele já não vai passar e dizer qualquer coisa… ele alegrava toda a gente, onde estivesse, notava-se.”

Filipa Rodrigues: “Vai ser muito difícil voltar a combater incêndios”

Há, no entanto, histórias que inspiram. É o caso da empresa onde Filipa é administrativa. “Trabalho num escritório, de uma serração, a Progresso, na Moita e que ardeu. Agora, já está a funcionar outra vez. Apesar do susto, o dono, de 70 e tal anos, ergueu aquilo com a maior capacidade e tem ali famílias inteiras a trabalhar”.

“Apesar do susto, o dono da serração, de 70 e tal anos, ergueu aquilo com a maior capacidade e tem ali famílias inteiras a trabalhar”

Um relato de superação que não cala as críticas e os medos desta bombeira voluntária de 25 anos. “Todo este tempo depois, o povo está um bocado ‘ao Deus dará‘, acusa. Filipa lembra que as medidas de limpeza das matas e o que ficou decidido em Lisboa não vão chegar. “Eles [os responsáveis políticos] vêm cá inaugurar casas, mas não veem a vegetação que está a crescer à volta”, lamenta.

Imagem de destaque: Rui Oliveira/Global Imagens

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