Fiona Barton: “Eu precisava de um crime que fosse imperdoável”

Fiona Barton
Fiona Barton (Justyn Wilsmore)

É autora de um dos thriller do ano. Em “A Viúva” (Planeta), um romance “noir”, Fiona Barton conta a história do rapto de uma criança e do principal suspeito do crime, através do testemunho central da mulher deste. Esta é a primeira aventura literária da jornalista britânica que, acompanhou, entre outros casos, o desaparecimento de Maddie. Ainda que não tenha sido ele a base da história do seu livro, não nega ter trazido algumas das vivências da altura. De passagem por Lisboa, a escritora falou ao Delas.pt também sobre a crescente feminização dos thrillers e sobre o tema que tem dominado a atualidade jornalística, o Brexit.

“A Viúva” tem tido um grande sucesso a nível mundial. Como é que uma antiga jornalista lida com esta atenção toda, com os olhos subitamente postos em si?
Lida muito mal (risos). A primeira entrevista que dei foi muito estranha e quem a estava a fazer deve tê-la achado muito difícil. É, de facto, estranho para quem, como eu, fazia notícias, era repórter, e nunca estava na história. Ao mesmo tempo fico muito entusiasmada por ver que as pessoas estão a gostar do livro.

É por estar habituada a ver as histórias de fora que decidiu contar a do seu livro através da perspetiva de terceiros, dos que a observam?
Sim, tem muito a ver com isso. Quando se vai cobrir uma história, há sempre uma personagem central com a qual se vai querer falar, mas eu sempre me interessei muito pelas pessoas que estavam a volta dessa personagem. Sempre me interessei, como disse e bem, por esses observadores, que podem ser a esposa, a mãe, o filho ou filha do suspeito. Eles estão envolvidos, porque as suas próprias vidas também são afetadas, sem que, no entanto, tenham qualquer controlo sobre isso. Limitam-se a ir observando o que vai acontecendo. Por isso, sempre quis saber o que essas pessoas pensam e como lidam com estes casos… Já alguma vez cobriu um julgamento?

Não, nunca cobri.
Bom, é muito interessante, mas o que se lê normalmente nos jornais é apenas uma ínfima parte do que acontece no tribunal. Num julgamento não há disfarces. Tudo é exposto e nada é deixado de fora, até a mais pequena prova é apresentada. Pode ser perturbador, ouvir a descrição ao pormenor de um homicídio ou de uma violação. Nessas alturas, olho para os familiares do suspeito e penso: será que eles tinham conhecimento do crime que realmente foi cometido? O que sentirão ao ouvir os detalhes do crime? Em 2008, quando deixei de ser repórter, decidi começar a escrever sobre isso.

Uma das personagens centrais deste livro, uma das observadoras, é justamente uma jornalista. Mas quem parece ter a voz principal no romance é a viúva.
Sim, e foi deliberado.

Mas foi-o para conseguir um maior distanciamento entre a sua condição de jornalista e a de escritora?
Não, foi mais porque quando comecei a pensar na história era a voz da viúva do suspeito, da Jean, que eu ouvia. Ela era a história. Portanto, o livro começou com a história do seu casamento, um casamento com segredos. E no início cheguei mesmo a pensar em escrever o romance todo pela perspetiva dela, mas não podia porque precisava que o leitor soubesse pormenores que a viúva não tinha como saber, como as coisas que aconteceram fora da sua casa ou aquelas que fossem reveladas pela investigação policial.

A sua experiência permite-lhe dizer que, no fundo, as mulheres sabem quando os maridos são criminosos?
Não. Não o podemos saber, nem presumir isso. De facto, quando há um casamento e se se descobre que o marido é um serial killer a tendência é os outros perguntarem como é que a mulher não sabia, ou será que a mulher sabia? Ou ainda, de uma maneira mais afirmativa, dizerem que era impossível a mulher não o saber. Mas às vezes não sabe mesmo.

Não existirão também muitos casos de negação em que a mulher sabe mas não quer acreditar, à semelhança do que acontece com as vítimas de violência doméstica e a desculpabilização do seu agressor?
Sim, isso é verdade. Em muitos casos não se vê de facto, mas noutros opta-se por não se ver. Nega-se a situação, nega-se que há um problema ou então acha-se que se não se pensar muito no assunto ele se resolve por si. Talvez porque a ideia de o nosso marido ou familiar ter matado ou violado alguém signifique que tudo aquilo que pensávamos conhecer é uma mentira. E a sensação depois disso é de que nada nos resta. Não condeno essas mulheres, porque admitir isso implica dar um passo enorme. Algumas dão-no.

A viúva do seu livro também observa a jornalista. Foi uma forma de fazer uma autocrítica à cobertura mediática dos casos de crime?
Não diria autocrítica, mas foi muito interessante para mim pôr-me no lugar da Jean e tentar perceber como é ter um jornalista na nossa casa, questionando-nos. Gostei muito de fazer isso.

Um dos casos mais mediáticos dos últimos anos foi o do desaparecimento de Madeleine Mccann, que a Fiona cobriu como jornalista. Diz que não se baseou nele para o livro, mas usou alguns elementos?
A história começa com um casamento que tem segredos, mas eu precisava de um ato que fosse imperdoável e raptar uma criança é indesculpável. Não pode haver desculpas para isso. Além disso, queria um crime que levasse a pessoa a perguntar-se o que é que faria se o seu marido fosse acusado de o ter cometido. Por isso escolhi o rapto de uma criança, mas é muito diferente do caso da Madeleine McCann. Deste caso talvez tenha trazido para o livro os sentimentos que tive na altura em que o acompanhei como jornalista.

E que sentimentos são esses?
Eu sou mãe, por isso senti muita tristeza e empatia pelos McCann, por aquilo que eles estavam a passar. Ao mesmo tempo senti o que a jornalista do meu livro sente. Ela vai para escrever uma história, tem de ser profissional. Mas se não se tiver o mínimo de empatia, se não entender quem está a ouvir, não consegue escrevê-la.

Acha que alguma vez vamos descobrir o que realmente aconteceu à Madeleine McCann?
Espero sinceramente que sim, sobretudo pelos pais. Não consigo imaginar nada pior do que não saber. Mas não sei, tem havido tantos becos sem saída.

Recentemente falou-se em Clement Freud, que foi acusado de pedofilia já depois de ter morrido. Ele tinha uma casa na praia da Luz e relacionava-se com os McCann. Acha que pode ser suspeito?
Não, isso é um disparate. Ele não estava em Portugal na altura, veio mais tarde. O que se tentou agora foi juntar duas histórias distintas, por isso não creio que tenha sido ele.

Voltando ao seu livro, ele tem sido comparado com “A Rapariga no Comboio”, da Paula Hawkins, que foi um bestseller também. Há cada vez mais autoras a fazer sucesso no género do thriller. A que é que isso se deve?
Bem, eu acabei de chegar a este cenário. Para mim tem a ver com o facto de os livros que foram escritos recentemente – e talvez tenha começado com o “Em Parte Incerta” – terem personagens femininas tão fortes e histórias interessantes, em que as mulheres não são apenas cadáveres abandonados num jardim. São o centro e o fio condutor dessas histórias. E algumas, como a de “A Rapariga no Comboio” podem acontecer a qualquer pessoa, porque são o que se chama de “noir doméstico”. Os thrillers que são só sangue e detetives duros podem ser bons, e gosto de alguns deles, mas não me dizem muito como mulher. As mulheres interessam-se mais pelas personagens, pelas pessoas e aquilo que as move.

Vive em França atualmente, mas presumo que tenha votado no referendo sobre a continuidade do Reino Unido na União Europeia. Em qual das opções votou?
Votei pela permanência, claro.

Como é que comenta a vitória do Brexit?
Fiquei chocada. Não há um plano, é uma trapalhada completa. Mesmo que não vivesse em França teria votado pela permanência, porque a comunidade em que vivemos atualmente é global. Acho que foi uma decisão insular e é um grande retrocesso. Estou muito preocupada com o que vem a seguir. Ninguém parece saber o que vai acontecer e isso é aterrador.