Freamunde: A última banda de homens a aceitar mulheres

Estávamos a 24 de abril de 2013 e a Associação Musical de Freamunde tornava-se a última, das cerca de 700 a 800 bandas filarmónicas que existem no país, a abrir as suas formações de executantes às mulheres. “Sim, foram duas raparigas que começaram a integrar as atuações da banda há cerca de quatro anos: foi a Patrícia – fagote – e a Raquel – flauta”. Quem detalha esta mudança é um dos atuais responsáveis daquela associação da zona de Paços de Ferreira, José Maria Queirós.

O músico, tesoureiro e contra-mestre desta banda com 195 anos de existência explica que apesar de há cerca de uma década “haver já a raparigas na academia da associação a aprender música”, foi a falta de dinheiro para novas infraestruturas que acabou por afastar o sexo feminino da formação de mais de seis dezenas de executantes.

links_Zara“A razão para não termos raparigas até há quatro anos deve-se ao facto de, numa primeira fase, não termos alunas na escola, mas, mais recentemente, as nossas infraestruturas, como a falta de uma casa de banho para elas estava a limitar essa presença”, conta aquele responsável. Só com a nova sede é que as portas se abriram também a elas.

José Maria Queirós acredita que, talvez para as raparigas, a “questão da casa de banho não fosse decisiva a ponto de não quererem integrar a banda”, mas para ele, como responsável, era um fator importante.

Uma vez resolvido, as raparigas chegaram às flautas, aos trompetes, aos bombardinos e, atualmente, são uma dezena em 68 executantes. “E já temos mais duas na forja, que já estão preparadas para integrar a formação”, conta, orgulhoso, Queirós.

A história de Freamunde tem lugar já quando, consideram os especialistas contactados pelo Delas.pt, as bandas filarmónicas já albergavam “por alto, cerca de 50% de mulheres quer como músicas, quer como estudantes e aprendizes”.

Em pouco mais de 40 anos, elas chegam quase à quota de 50%

Estatísticas aproximadas e avançadas por Pedro Marquês de Sousa, tenente-coronel do Exército e autor da tese de doutoramento As Bandas de Música na História da Musica em Portugal (Editora Fronteira do Caos, Porto,2017). Também Mário Cardoso – ligado a este associativismo e proprietário de uma empresa que vende instrumentos musicais para aquelas estruturas – faz análise semelhante. É também curioso notar que “também já há exemplos de bandas em que elas estão em maioria, mas são casos raros”, reforça o investigador.

Não há consensos sobre os milhares de portugueses que, direta e indiretamente, se reúnem à volta e a propósito destas estruturas, tão pouco existem dados sobre a quantidade de pessoas que já entregou as fardas e desistiu das pautas e das notas.

Certo é que ninguém põe em causa de que se trate de milhares de cidadãos os que têm alguma história musicada por estas orquestras civis e populares que, desde há mais de 200 anos, animam romarias, musicam festas populares, acompanham as procissões dos santos da terra ou tocam – ainda os há – em coretos.

As primeiras mulheres músicas nas filarmónicas

Dispersas nos territórios e nas suas formações, não é possível garantir em absoluto quem foi a primeira filarmónica a aceitar mulheres. Porém, Pedro Marquês de Sousa tem uma ideia precisa: “Creio que foi uma banda da Vestiaria, da zona de Alcobaça.”

Marco Santos, responsável na Banda da Música da Sociedade Filarmónica Vestiariense, diz-se surpreendido com a revelação e atira-se aos livros de história da associação para contar ao Delas.pt que “a primeira mulher” que integrou as fileiras fê-lo em 1969 e “como porta-estandarte no âmbito de um concurso em que a associação participou para a Fundação Nacional para a Alegria no Trabalho – hoje INATEL”, recorda.

A entrada do sexo feminino nesta associação centenária só aconteceria já em 1976, dois anos após a Revolução de Abril. “É nesse ano que entram os primeiros três elementos femininos para a formação: a Lina [leia o testemunho aqui], a Emília e a Natália”, conta. Contudo, é importante ressalvar que “elas já estavam a aprender música há uns anos “, conta Marco Santos ao Delas.pt.

Pedro Marquês de Sousa diz até que as senhoras e as jovens raparigas já coabitavam com os homens nestas estruturas muito antes, mas sempre longe dos instrumentos musicais: “como organizadoras das festas e até como bordadeiras dos estandartes, nos anos 20 e 30”, recorda.

Será que há instrumentos e funções de raparigas?

“A flauta e a flauta transversal são os instrumentos que mais vendemos para mulheres, em Bandas filarmónicas”, conta Mário Cardoso. Pedro Marquês de Sousa concorda e, da análise histórica que fez, adita outras preferências: “Elas também estão muito presentes no clarinete, saxofone e oboé”. “Noutros instrumentos como trombones, tubas e bombardinos, por exemplo, eles estão em maioria, se calhar por razões culturais e também pelo peso”, acrescenta.

Na condução da orquestra e como compositoras, o sexo feminino é ainda uma grande minoria. “Como maestrinas, a presença está a aumentar, mas é ainda muito residual e diria que, se apontarmos para 700 bandas filarmónicas em Portugal, não temos seguramente 70 maestrinas, a percentagem é diminuta”, aponta Pedro Marquês de Sousa.

Também na composição, refere o militar e investigador, “é ainda uma área dominada por homens”. Isto depois de a primeira compositora para filarmonias ter sido identificada em finais do século XIX. “Encontrei uma única senhora no meio de homens que compunham para bandas. Chamava-se Maria Silva, editou obras em O Philarmonico Portuguez, editado na Figueira da Foz, mas não compôs marchas como os homens faziam, ela criou valsas e mazurcas”, nota o investigador.

Curiosamente e destacando a vida feminina portuguesa a dois tempos, Marquês de Sousa vinca que se “no meio civil filarmónico dos séculos XIX e XX, não havia mulheres executantes, compositoras e maestrinas, já na burguesia e em contexto doméstico eram elas que estavam ao piano e a tocar instrumentos de cordas”.

Certo é que se seria preciso esperar até à década de 70 para elas começarem a ver o seu talento reconhecido nas bandas de músicos masculinos e a merecer um lugar no desfile ou no coreto. Ainda assim, seria necessário esperar quase 40 anos mais para dizer um adeus definitivo a uma banda exclusivamente composta por homens.

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