Fui ao Burning Man, “a cidade onde somos abraçados por desconhecidos nus”

Durante os últimos 10 dias vivi sem dinheiro, numa cidade erguida no meio do deserto onde os seus habitantes me ofereceram comida, bebida, roupa, pulseiras e uma pedicure. O Festival Burning Man terminou esta segunda-feira, 3 de setembro.

Por Jaqueline Silva, especialista em Inovação Digital, no Nevada, EUA

A minha morada passou a ser 8:15 e L, a minha casa uma autocaravana e o meu meio de transporte uma bicicleta. Para poder andar na rua necessitava de óculos de ski para fazer face às tempestades de areia e máscara para conseguir respirar sem inalar o pó alcalino do deserto do Nevada.

Durante a noite tinha de carregar sempre uma lanterna na cabeça e andar decorada com luzes de Natal para que o dragão gigante não me passasse por cima.

Parte da minha indumentária incluía uma mala às costas com dois litros de água, botas da tropa e o menor número de peças de roupa possível.

Esta descrição soa a um filme estranho, mas não, isto é o Burning Man. Classificar o Burning Man como um festival é pouco pois é muito mais do que isso.

“Aterrar no Burning Man dá a sensação de se ter entrado em Marte pela porta principal. As temperaturas rondam os 8 graus à noite e os 40 durante o dia”

Aterrar no Burning Man dá a sensação de se ter entrado em Marte pela porta principal. As temperaturas rondam os 8 graus à noite e os 40 durante o dia. O solo é constituído de pó branco e fino e nada faz sentido, por isso é que vale a pena. Desde um pente de piolhos gigante agarrado ao chão, a um tubarão de pernas para o ar, passando por uma casa de pássaros em tamanho gigante a um Boing 747 convertido em discoteca, ali tudo é possível.

O Burning Man teve origem na Califórnia pela mão de Larry Harvey que faleceu no início deste ano. Começou a organizar fogueiras na praia de Beacon Hill – São Francisco para os 20 amigos mais próximos. Depois começou a queimar uma estátua de madeira como representação de autoexpressão radical.

Passaram 22 anos, e o Burning Man agora aloja cerca de 70.000 pessoas durante 10 dias regidas por 10 princípios e gera cerca de 34 milhões de dólares anuais.

Esta experiência não é um passeio no parque, pois as condições são bastante adversas. É importante ter noção do perigo e claro, fundamental ter poder de encaixe. É importante conseguir conviver com pessoas cuja indumentária é inexistente, com comportamentos sexuais fora do que estamos habituados e ainda com festas que duram desde o nascer do sol até ao pôr-do-sol numa repetição constante.

Com o ADN português aprendemos cedo que conhecemos alguém se nos apresentarem essa mesma pessoa. No Burning Man essa premissa não existe pois o princípio da Proximidade Imediata insiste em que as conexões são no exato momento em que acontecem. Não existe rede de telemóvel e falar com qualquer pessoa é altamente encorajado pelo princípio da inclusão radical.

“É importante conseguir conviver com pessoas cuja indumentária é inexistente, com comportamentos sexuais fora do que estamos habituados e ainda com festas que duram desde o nascer do sol até ao pôr-do-sol numa repetição constante.”

Uma das minhas grandes surpresas foi ver muita gente a pedalar sozinha. Esperava encontrar grupos, e sim também os há, mas a grande maioria está a navegar pelo deserto a fazer o que lhe apetece. Também não estava a contar que queimassem muitas das obras de arte, mas é esse mesmo o propósito. A cidade desaparece rapidamente nas 24 horas seguintes, restando apenas o deserto de pó branco.

Se está pronto para gastar pelo menos 2500 euros, ser abraçado por desconhecidos nus, ter algum desconforto no que diz respeito às ações básicas como tomar banho, lavar os dentes e viver de comida enlatada, então esta é uma experiência que vale a pena.

Se há uma cidade onde pode ser quem quiser, onde tudo é possível e ninguém o vai julgar por fazer o que quiser é Black Rock City.

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