Este domingo os atores do musical Avenida Q sobem ao palco pela última vez. Durante os mais de 365 dias em que esteve em exibição, o espetáculo passou pelo Teatro da Trindade, Casino de Lisboa e Teatro Sá da Bandeira, no Porto. Ao teatro levou milhares de pessoas. Muitas delas viram o musical mais do que uma vez e até houve quem viesse do estrangeiro, de propósito.

A atriz e cantora Gabriela Barros deu vida a duas personagens, a muçulmana Maria e a D. Clamídia. Nesta conversa falou-nos do sucesso do musical, do primeiro álbum que vai lançar este ano e das dificuldades que tem de enfrentar quem quer ser músico em Portugal.

Nasceu em Bruxelas e veio para Portugal aos 19 anos. Os seus pais eram emigrantes?

A minha mãe é portuguesa, alfacinha de gema. Foi trabalhar para a Comissão Europeia aos 30 anos, quando já estava grávida de mim, e o meu pai é brasileiro e músico. Já nasci lá e aos 19 decidi vir tirar o curso superior para Portugal porque vinha cá todos os anos, passava quase metade do ano cá de férias.

Sempre falou bem português?

Já falava português na escola europeia.

Sentia-se portuguesa apesar de ter nascido lá fora?

Sempre, não me sinto, de todo, belga e tive muito pouco contacto com a cultura belga.

Gabriela Barros
Fotografia de JFS/Global Imagens

Antes de vir para Portugal já estudava teatro na Bélgica?

Não. Sempre tive um pezinho nas artes, mas a vontade de cantar e de ser cantora era maior do que a de ser atriz. Fazia uns teatrinhos em casa mas a minha grande vontade era ser cantora, também por influência do meu pai.

Então como surgiu a representação na sua vida?

Ela já existia um bocadinho. Na hora de escolher o curso pensei: “Não vou tirar um curso de canto, não é isso que me vai dar discos e concertos. Já que tenho de tirar um curso porque a vida assim o dita e gosto de representar e fazer uns teatrinhos provavelmente vou ter jeito.” Depois comecei também a fazer teatro amador cá em Lisboa, no Evoé.

Fez parte da geração Morangos Com Açúcar. Ainda há quem a aborde na rua por causa da sua personagem, a Marta?

Sim. Às vezes vou a passar e dizem: “Olha, aquela ali. Não é dos ‘Morangos’?” Ainda há quem se lembre do nome da personagem e tudo. Hei-de ser uma eterna moranga.

Para o futuro quer investir mais no sonho da música ou continuar na representação?

Se conseguir quero investir nos dois. Neste momento estou a produzir o disco a solo, que vai ser lançado em 2018.

Qual vai ser o estilo deste álbum que vai lançar?

É acústico, com muito das minhas influências luso-brasileiras. Muito bossa nova e samba, mas com um tom muito terra, fim de tarde.

Todo cantado em português?

Em português de Portugal e provavelmente um ou outro tema em português do Brasil.

Já tem nome para o álbum?

Ainda não.

Vingar na música em Portugal é mais difícil do que na representação?

É mais difícil vingar na música, é difícil mantermo-nos num determinado patamar. São poucos os que vêm e ficam. Na representação já há o fator preestabelecido de que um ator tem altos e baixos, recorrentemente. Num momento tem trabalho e no outro não tem. Enquanto no que toca a um cantor ou músico o público que é fã e que gosta espera que se mantenha num determinado nível. Quando há um momento mau é avassalador para o público, é uma desilusão muito grande quando um cantor falha.

Com os atores não é assim?

Com os atores não é assim, não se tem tanto noção quando têm ou não trabalho, só ele saberá. O cantor tem de se expor muito mais de uma forma comercial, tem de ter um percurso muito mais firme e cá em Portugal isso é muito difícil. Ainda mais do que noutros países onde a música é mais facilmente comerciável. Nós estamos num país em que o fado domina tudo e às vezes parece que ainda estamos a estipular o som pop português, que ainda está para ficar e para vingar.

A Gabriela toca algum instrumento?

Não, com grande pena minha e do meu pai, que já me tentou ensinar várias vezes. Como diz um músico amigo meu, cantar já é suficientemente difícil.

Como surgiu a oportunidade de entrar neste Avenida Q?

Já conhecia o Rui Melo [encenador do musical] e o Gonçalo Castel-Branco [produtor] há muitos anos. O Gonçalo tinha isto na gaveta há muito tempo e na altura de fazer a apresentação para chamar patrocinadores eles reuniram um grupo de atores com quem queriam trabalhar. Eu sabia deste projeto há oito anos.

Uma das suas personagens, a Maria, é muçulmana e aborda toda a discriminação de que os muçulmanos têm sido alvo por causa do terrorismo. Gosta do humor com que esta questão é abordada na peça?

Há muitos temas sensíveis que aqui são abordados com um toque de humor e de forma muito inteligente. Está na dose certa para os tempos em que vivemos, em que tudo é passível de ser insultuoso e mal interpretado. Bem ou mal e de uma forma muito ligeira, este tema é abordado na dose certa para que as pessoas pensem no assunto sem que isso seja o cerne da questão.

Sabe de alguma muçulmana que tenha vindo ver a peça?

Não. Não sei quais são as estatísticas, mas acho que nós não temos muitos muçulmanos cá, sobretudo entre o público que vai ao teatro. Não costumamos ver pessoas de burca e hijab.

Se alguma muçulmana viesse ver o Avenida Q, como iria ela reagir?

Como reagiu uma amiga minha chinesa, a Jani Zhao, que é atriz. Há uma piada sobre chineses e eu só me apercebi que ela estava entre o público quando disse a piada. A leveza com que se sai deste espetáculo é a mesma com que se ouve algumas das bocas e piadas que aqui dizemos. Podem não ser fáceis de digerir, mas aqui tudo se torna fácil.

A sua personagem D. Clamídia exige que controle um boneco e altere bastante a voz. A preparação para essa personagem foi a mais difícil?

No espetáculo original ela existe mesmo enquanto boneco, mas inicialmente íamos fazer sem boneco. Eu não ia ter bonecos de todo, ia assumir tudo fisicamente. Só a meio do processo é que decidiram que, afinal, ia ter um boneco e enfiaram-me aquilo pela mão. Em duas semanas tive de fazer qualquer coisa com aquilo, sendo que os outros já estavam a trabalhar com bonecos há mais de um mês e eu tinha desistido de fazer manipulação. Tive de me adaptar e fingir que estava a perceber muito bem aquilo que estava a fazer. Estreei quando ainda estava a habituar-me ao boneco. A voz foi uma pesquisa minha e do Rui. Depois deu nisto. Há muitas pessoas que falam na voz da velha e só eu sei como ela me lixa a voz toda.

O Rui Pêgo, que faz de pequeno Saúl no Avenida Q, escreveu no Facebook que a Gabriela era a mulher mais engraçada do mundo. É verdade?

Não sabia que ele tinha escrito isso. Somos muito amigos e costumamos elogiar-nos mutuamente, fazemo-nos muito bem um ao outro. É um elogio muito rasgado e incrível. Fico muito feliz, pelos vistos estou a fazer alguma coisa bem. Se há coisa de que gosto nas pessoas é que sejam engraçadas. Fico muito feliz por alguém me considerar engraçada, espero que isso se reflita no trabalho.

Vocês costumam fazer uns vídeos para as histórias do Instagram em que interpretam personagens cómicas que falam inglês. Têm recebido feedback das pessoas em relação a isso?

Imenso. Isso ainda vai virar alguma coisa. Nós queremos muito. Começou com um delírio que tivemos numa tarde. Fomos viajar para Beja e a meio da viagem estávamos entediados com a paisagem bucólica de um lado e do outro. Resolvemos fazer uns Insta Stories e saiu aquilo, inspirado nuns programas de veterinária que eu estava a ver na altura.

É a primeira vez que faz comédia?

Não. O primeiro programa que fiz de comédia foi o Breviário Biltre, para a RTP. Era com o Emanuel Marques, Eduardo Madeira, Miguel Borges, André Nunes e a Rita Cruz. Era uma série de sketches.

É o registo com que mais se identifica?

Adoro fazer comédia. É um grande desafio. Ter as condições que temos aqui, com um elenco que vibra no mesmo tom humorístico que tu e com quem te identificas é muito raro. Isso é a base para conseguirmos curtir fazer humor, se assim não for é uma tortura porque o humor é uma linguagem muito específica. Se não nos encontrarmos com os nossos colegas em palco acaba por ser uma conversa desencontrada e não é engraçado. É por isso que a Avenida Q funciona bem. O Rui e o Gonçalo encontraram um grupo de doidinhos que, a bem ou mal, se entendem muito bem.

Este musical tem sido um sucesso. A sala está sempre cheia, vêm pessoas de norte a sul do país e até alguns emigrantes que viajam para cá de propósito. Em Portugal, isto não é normal.

Não é mesmo. Estávamos com grandes expectativas, mas não tão altas. Falo por mim, pelo menos. Sabia que iria funcionar bem, porque o êxito da peça original foi o que foi, mas não esperava que o Avenida Q fosse um sucesso tão grande. Vêm gerações de todo o lado e até pessoas que veem mais do que uma vez. Tenho montes de amigos que vieram e já me disseram que vêm outra vez, ainda sem data mas já com a certeza firme de que vão voltar. Isso é delicioso e incrível.

O sucesso do Avenida Q é um incentivo para que se invista mais no teatro em Portugal?

Sim, é sempre um incentivo para se investir mais em teatro, em cultura e entretenimento, mais ou menos comercial é sempre uma boa aposta. É difícil tomar este espetáculo como exemplo porque reuniram-se aqui condições muito particulares, boas e únicas. Espero que isto aconteça muitas mais vezes na minha vida, mas sei que estas coisas são muito raras.