Gisele Pélicot, reformada, 72 anos e violada durante dez anos por estranhos e a comando do marido, Dominique Pélicot – que a drogava e a expunha a homens que ele conhecia numa aplicação de encontros -, é voz e corpo de crimes de abuso sexual reiterados que estão a chocar França e o mundo.
Tudo indica que a vítima testemunhe esta quinta-feira, 5 de setembro, perante o tribunal de Avignon, no sul de França, e diante dos 51 agressores, arriscando reviver de forma consciente as violações que sofreu quando estava fortemente drogada pelo companheiro.
E Gisèle mostra-se. Quis, aliás, que este julgamento ocorresse na presença do público e da imprensa por acreditar que a vítima “não precisa se esconder”. “A vergonha tem de mudar de lado”, justifica o advogado da mulher francesa, Stéphane Babonneau. O depoimento é aguardado com ansiedade e receio por risco de vitimização uma vez que os advogados da mulher dizem que ela não tem qualquer “memória”, sendo confrontada com os crimes agora. Gisèle Pélicot tem estado em silêncio e tem contado com o apoio dos três filhos dela, que são partes civis.
O processo pode estender-se até dezembro
O início ao julgamento – que pode estender-se até 20 de dezembro – teve lugar na segunda-feira, 2 de setembro e é fruto de uma investigação que levou à acusação de 51 homens, incluindo o marido de Gisèle Pelicot, por terem perpetrado crimes de violação. Os réus têm idades entre os 26 e os 74 anos, sendo que 18 deles têm estado em prisão preventiva, e foram recebendo perfis diversos como o bombeiro, o artesão, o enfermeiro, guarda prisional, jornalista, eletricista, solteiros, casados, divorciados.
De acordo com a acusação, a maioria dos homens – todos eles estranhos a Gisèle – esteve apenas uma vez na casa do réu principal, o marido, Dominique Pélicot, na cidade de Mazan, no sul de França. Dez deles estiveram até seis vezes no local. O marido da vítima não pedia dinheiro em troca, mas filmava as violações, o que serviu de prova para identificar os agressores.
Muitos dos acusados afirmaram que acreditavam estar a participar nas fantasias do casal. Contudo, o marido descreveu no processo que “todos sabiam” que a sua mulher estava drogada e o que estavam a fazer não tinha qualquer consentimento por parte dela. Aliás, como refere a investigação, “cada um dispunha de livre arbítrio” e poderia ter “ido embora” ao perceber a situação, o que não aconteceu.
Os investigadores identificaram 92 violações desde 2011, quando o casal vivia na região de Paris, mas principalmente a partir de 2013, quando se mudarem para Mazan, com as violações a terem lugar até 2020.
Gisèle Pelicot soube das agressões sexuais reiteradas aos 68 anos, ainda nesse ano de 2020, quando o marido foi flagrado num centro comercial a filmar por baixo das saias das clientes. De seguida, os investigadores encontraram, no computador do marido, fotos e vídeos da vítima, visivelmente inconsciente e sem mostrar qualquer gesto ou reação, enquanto dezenas de estranhos a violavam.
Os materiais foram registados em disco rígido e depois meticulosamente descritos com nome, idade e até o número de telefone dos indivíduos e classificados num arquivo chamado “abusos”, como descreveu ao tribunal o comissário Jérémie Bosse Platière.”Escolhi pessoas suficientemente fortes para enfrentar as imagens”, acrescentou, sublinhando que as investigações foram longas e implicaram, entre outros processos, técnicas de reconhecimento facial usadas pela polícia francesa.
O marido mantinha um material específico para cada um dos homens que violava a mulher. “Foi elaborada uma lista para cada indivíduo, de acordo com o número do arquivo”, detalhou o comissário. O objetivo era então identificar “Chris, o bombeiro”, “Quentin”, “Gaston” ou “David”.
O processo de prova consistiu depois em recorrer a registos de ligações telefónicas e a conversas entre o marido e os agressores, que frequentemente começavam online no site de encontros Coco.fr. A troca inicial de mensagens era depois reencaminhada para uma sala privada deste site, até que as conversas prosseguiam finalmente por skype ou por telefone.
A plataforma online foi encerrada em junho por decisão judicial tendo sido considerada como “um lugar de predadores” sexuais.
com AFP