Esta quarta-feira, assinala-se o Dia Nacional do Guarda Prisional. Maria Oliveira partilha os desafios de ser mulher e tomar conta de reclusos.
Há 23 anos, Maria Oliveira saía da tropa e recebia luz verde a dois concursos públicos para os quais se candidatava: um para a Guarda Nacional Republicana e outro para o Corpo de Guardas Prisionais. Escolheu o segundo e, ao fim de uma semana, quis voltar atrás na decisão. Foi a mãe que insistiu para que a chefe Vidigal (como é conhecida) ficasse.
“Vim, nem sabia bem o que era. Foi um choque tremendo, na primeira semana quis desistir. Mas a minha mãe abriu-me os olhos, disse-me que tinha de aguentar e lá arranjei uma forma de estar”, conta esta chefe-adjunta de um estabelecimento prisional masculino ao Delas.pt. Quando começou, em 1996 e acabada de chegar a Tires, impressionou-se “pela falta de regras, pela indisciplina, pela bandalheira – do fardamento ao não cumprimento de decisões e ordens mal dadas -, uma desgraça“.
Hoje, Maria Oliveira tem 49 anos e, no currículo, conta, para lá da estreia em Tires, com passagens por prisões femininas de menor dimensão e também por masculinas. No dia Nacional do Guarda Prisional, que se assinala esta quarta-feira, 27 de junho, esta mulher deixa o testemunho do quotidiano de uma prisão, das diferenças entre chefiar equipas femininas e masculinas, das vantagens, mas sobretudo das contrariedades da profissão, em especial quando se é guarda feminina.
Olhando para o seu caso pessoal e apontando para o futuro, Maria Oliveira não sonha com postos nem com posições de destaque mas antes com algo que, segundo ela, é aparentemente difícil de alcançar por parte de quem faz da vida guardar condenados. “Quero acabar a minha vida profissional não em função do posto que tenha, não em função de tentar ir mais alto na carreira, mas sim com a minha sanidade mental no lugar”, desabafa. “Estou a falar da sobrevivência num meio onde estamos inseridos, que nos afeta muito mentalmente. E chegar ao fim da carreira e estar completamente destruída não é opção”, justifica a chefe Vidigal.
“Não temos acompanhamento psicológico”
Apesar de, até ao momento, não ter sido possível conhecer dados em concreto, Maria Oliveira conta que “se se fizer um apanhado de guardas masculinos e femininos, há muitos no ativo a tomar medicação”. Uma dureza mental que chega tanto “do próprio ambiente em que se trabalha” como também “da forma como se é tratado por superiores, sejam homens ou mulheres”. Uma realidade pesada à qual, considera Maria, as guardas parecem mais expostas. “Os homens têm uma forma de lidar diferente com os problemas: eles resolvem-nos e, nós, mulheres, aumentamo-los. É da nossa natureza”, analisa.
Maria Oliveira gostaria até que as consultas de saúde mental estivessem integradas na profissão. “Não temos acompanhamento psicológico. Temos agora a famosa Casa Amarela, cujo funcionamento desconheço”, diz a chefe, evocando uma exceção. “Em Tires, houve situações de suicídios de reclusas em que os elementos de vigilância que lidaram de perto com o caso foram acompanhadas. Mas isso conseguiu-se porque havia uma psicóloga que acompanhava a população reclusa adulta e aceitou estender os serviços às guardas”.
De resto, prossegue, “os nossos serviços não primam por esse acompanhamento”. Portanto, se o fazem é a título particular. Contudo, não duvida: “se houvesse, se fosse obrigatório, metade dos problemas não existiam e, se calhar, nem estaríamos na situação em que estamos.”
“Se houvesse, se fosse obrigatório [acompanhamento psicológico], metade dos problemas não existiam e, se calhar, nem estaríamos na situação em que estamos”
Para lá dos problemas mentais, há as questões físicas, numa profissão em que a força é uma fatia larga da mensagem. E, nesta matéria, também as mulheres se arriscam a ser o elo mais fraco. “Noto que nós, com o decorrer da carreira, nos vamos desleixando na preparação física. Acomodamo-nos à vida profissional e, com a vida familiar, acabamos por não ter tempo”, analisa.
Para Maria Oliveira, o ideal seria ter duas horas de trabalho físico para uma profissão que exige muito e, de preferência, “incluídas em horário de trabalho”. E vinca: “Quem está em cadeias mais complicadas, sai do serviço completamente arrumado e já não tem coragem para mais nada.”
“Nós, com o decorrer da carreira, vamo-NOS desleixando na preparação física. Acomodamo-nos à vida profissional e, com a vida familiar, acabamos por não ter tempo”
Esta guarda, que é também dirigente no Sindicato Independente do Corpo da Guarda Prisional, é uma das vozes que integra um grupo composto por 600 mulheres, num universo laboral – segundo dados da Direção-geral de 2017 – em que elas representam 15,8% do total e no qual existem 3801 guardas masculinos.
Realidades duras que adiam a maternidade
“As mulheres não têm só a profissão, têm os filhos, a casa, tudo e mais alguma coisa e os nossos serviços não estão preparados para lidar connosco”, atira esta chefe-adjunta, lembrando que “para despender de um elemento de vigilância feminino, desfalca-se noutro sítio, às vezes há um choque de direitos com as mulheres”, considera.
Uma colisão que a maternidade expõe de forma nua e crua, ainda que cada estabelecimento prisional procure entendimento entre as partes. “Assustava-me muito ouvir colegas minhas que tinham deixado os filhos sozinhos toda a noite enquanto faziam turnos ou responsáveis por fazer a sua comidinha, falamos de crianças de dez anos… isso assustou-me muito”, desabafa a chefe.
Por isso, a decisão de ser mãe foi sendo, por esta e por outras razões, protelada. “Entrei na tropa, adiei a decisão, fui entrando nos serviços prisionais e continuei a adiar. Ainda pensei em adotar, mas também fui adiando…”, revela. Atualmente, não duvida: “Até hoje, tomei a decisão certa, seria um sofrer de parte a parte.”
“Até hoje, tomei a decisão [adiar a maternidade] certa, seria um sofrer de parte a parte”
O facto de Maria Oliveira ter passado pelo Estabelecimento Prisional (EP) feminino de Tires e de ter estado na “zona das mães com crianças (até três anos)” não ajudou a mudar de atitude. Pelo contrário. “Na altura, estive a chefiar o pavilhão das mães com crianças e chocava-me bastante o tratamento que algumas reclusas davam aos filhos. Cá fora, a realidade é diferente, e ninguém advinha a luta constante que travamos com mães para não agredirem os filhos”, revela, contando que chegou mesmo a denunciar um caso à Comissão de Proteção de Crianças e Jovens e os filhos foram retirados.
A estas razões, Maria Oliveira alerta para uma terceira que atinge todos, em igualdade, os que trabalham neste mundo: “À medida que formos subindo na carreira, mais riscos corremos de andar de cidade em cidade, de EP em EP. Vivemos no Norte, mas podemos ter de ir para o Sul. A partir de chefes para cima temos de ir para onde fizer falta”. Em jeito de conclusão e com ironia, a chefe Vidigal – que esteve em Lisboa, Odemira, Porto, regressou a Lisboa e está agora em Viana do Castelo – lembra: “Olhe, é um bocadinho ao contrário dos professores…”
Prisões femininas e masculinas: vícios e virtudes
Tendencialmente, as guardas prisionais femininas estão mais alocadas a prisões para mulheres, ainda que as equipas contem com homens. “São muito importantes em situações limite como motins”, justifica a chefe Vidigal. Mas elas também têm lugar nos estabelecimentos prisionais masculinos, com funções mais adjudicadas a portaria, visitas e serviços administrativos.
Contudo, Maria Oliveira considera que as guardas femininas podem fazer mais nas alas deles. “Uma mulher, numa cadeia masculina, morre enquanto profissional.” E explica melhor: “Eu, como guarda feminina e chefe, acho que já podia entrar nas zonas prisionais, fazer refeitórios, entrar nas celas acompanhada (ninguém entra sozinho). Sou da opinião do subdiretor-geral dos Serviços de Reinserção Social e Serviços Prisionais, Paulo Moimenta, que não vê diferença nenhuma nestes trabalhos só porque se trata de mulheres. É que para irmos às celas, todas elas têm de estar em condições, todos os reclusos têm de estar vestidos.”
“Uma mulher, numa cadeia masculina, morre enquanto profissional”
Atualmente, numa cadeia em Viana do Castelo, a chefe Vidigal não tem ainda a liberdade que reivindica para todas, mas trabalha numa prisão que a surpreende. “A de Viana é masculina, tem muitas regras e tem uma coisa curiosa: os homens são muito, muito limpos. Fico espantada com a limpeza que fazem da EP. Nas femininas, incutir isso às mulheres é mais complicado”, conta, lembrando que passou por prisões femininas em que “às vezes, não se via o chão”.
Maria sublinha que sempre gostou mais de trabalhar em equipas masculinas do que femininas. “Nós, as mulheres, somos muito cobrinhas e, nestas profissões, ainda mais cobrinhas nos tornamos”, desabafa.
Imagem de destaque: Shutterstock