“Trouxemos apenas os documentos. Tudo o resto ficou para trás”

Aos 23 anos, Doaa Mansour faz parte da lista de mais de 4,8 milhões de pessoas (segundo dados da ONU, citados pela BBC) que abandonaram as suas casas na Síria depois de começar o conflito, em 2011.

Refugiada em Portugal há quase um ano, vive no primeiro andar de um edifício lisboeta, em Belém, onde tenta refazer a vida com os dois filhos e o marido Musaab Moatasem, de 30 anos.

De sorriso no rosto, o casal abriu a porta ao Delas e recebeu-nos na sua nova morada.

Muito poucas são as palavras que sabem em português, valem-lhes alguns conhecimentos na língua inglesa para comunicar quando é preciso.

Os sapatos ficaram no corredor, junto à porta, onde rapidamente nos deparámos com um post-it amarelo. “Sala” era o que estava escrito. Dentro dessa divisão encontrámos mais pedaços de papel espalhados por vários sítios: “Janela”, “Parede”… A ideia foi da voluntária da CRESCER – Associação de Intervenção Comunitária que tem ajudado na integração de várias famílias refugiadas em Portugal – que três vezes por semana visita a família para dar aulas de português, contou-nos Doaa Mansour.

Aprender a falar português era algo que nunca tinha pensado fazer, assim como abandonar Alepo, a cidade em que sempre viveu e onde casou e nasceu o primeiro filho, Mahmud Moatasem – agora com dois anos e meio.

Foi uma decisão difícil e que só aconteceu porque se tornou inevitável: “Nunca pensámos: ‘Vamos sair daqui’, isso era algo que não queríamos e que não tínhamos em mente. Seria o último recurso”.

Tentaram aguentar o máximo possível. Depois de cinco anos, em março de 2016, acabaram por abandonar o país. Com eles vieram a família de Doaa e a de Musaab, o marido.

“Fizemos o percurso todo a pé, juntamente com os passadores a quem tivemos de pagar para nos deixarem ir com eles. Andámos bastante e houve alturas em que tivemos que correr muito”

“Não sei o dia ao certo, mas quando começaram a mandar mísseis não conseguimos aguentar mais lá [em Alepo]. Decidimos ir para outra cidade, mas também aí começaram a mandar bombas. Percebemos que não estaríamos seguros em lado nenhum e então tomámos a decisão de sair da Síria”, lembra Musaab. “Trouxemos apenas os documentos. Tudo o resto ficou para trás. Pegámos numa mala, onde colocámos também alguns agasalhos e saímos”.

Sem saber qual seria o destino final, partiram em direção à Turquia. “Fizemos o percurso todo a pé, juntamente com os passadores a quem tivemos de pagar para nos deixarem ir com eles. Andámos bastante e houve alturas em que tivemos que correr muito. Só quando chegámos à Turquia, e apanhámos o barco para a Grécia, é que pudemos descansar. Ao todo demorámos 9 dias. Nessa altura já a minha família e a da Doaa não estavam connosco. Os nossos pais ficaram em terra”.

Já na Grécia, Doaa engravidou e em dezembro de 2016 nasceu Abdullah Moatasem – atualmente com um ano de idade. A família permaneceu na Grécia até ao dia de voar para Portugal: 1 de fevereiro de 2017.

Um novo país, um novo começo

O balanço do primeiro ano em terras lusas é positivo. “Gostamos muito de estar cá e vivemos bem aqui”, conta o casal que já está fã do peixe da costa portuguesa. E quando perguntamos pelos doces, Doaa refere de imediato e em português: “Pastel de Nata”.

Também o clima foi uma boa surpresa, neste caso pelas semelhanças inesperadas. “O frio é quase igual ao da Síria, por isso já estamos habituados”.

A pouco e pouco têm-se integrado e até retomado alguns hábitos religiosos. “Sexta-feira é dia de ir à mesquita. Gostava de ir mais vezes, mas é muito longe e tenho de pagar para apanhar algum transporte. Mas faço questão de lá ir todas as sextas-feiras”, conta Musaab com o filho mais novo no colo. Doaa ainda não foi, não só devido ao dinheiro que se gastaria, mas também porque alguém tem de ficar em casa com os filhos. Em contrapartida, a jovem não prescinde do hijab, embora não seja de uso obrigatório na sua cultura e explica: “Na Síria há mulheres que não usam e mulheres que escolhem usar porque seguem o Corão. Optam por cumprir e colocar em prática o que está escrito. É o meu caso. Tem a ver com a forma como cada pessoa sente a religião”. Atento ao que a mulher diz e à cultura portuguesa, Musaab acrescenta: “É como aqui. Em Portugal, também há mulheres que colocam um véu na cabeça quando estão na igreja”.

Mais difícil tem sido mesmo a língua e tratar de toda a burocracia: “O facto de não percebermos o que dizem e de não podermos expressar-nos tem dificultado muito a integração. Não ter documentos também é um entrave, porque não podemos trabalhar e a falta de vagas nos infantários obriga-nos a ficar em casa com as crianças. É muita burocracia. Só há pouco tempo é que conseguimos uma autorização de residência provisória, até então só tínhamos uma declaração de proteção internacional”.

Ter tudo em ordem é fundamental para conseguir recomeçar de vez:Quero muito acabar os estudos. Gostava de vir a ser professora, mas neste momento qualquer oportunidade de trabalho é bem-vinda”, conta Doaa que além dos bens materiais que deixou para trás, abandonou o curso de literatura inglesa que estava a tirar na altura em que a guerra começou. Já Musaab espera encontrar trabalho como eletricista, a área em que trabalhava quando deixou Alepo.

Da Síria restam as memórias e as notícias que vão chegando pela televisão. Normalmente ligada no canal sírio, foi através dele que Doaa e Musaab ficaram a par da destruição que a guerra continuou a fazer: “A casa da família da Doaa já ardeu, a casa da minha família está metade destruída”, declarou Musaab. “Se as coisas continuarem assim não vamos voltar. Já houve mudanças, mas com este governo que está lá agora, não. Gostaríamos de voltar, mas nestas condições muito provavelmente não vai acontecer”.

[Imagem de destaque: Paulo Spranger / Global Imagens]

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