“Há coisas que se dizem com a dança e não com palavras”

Marlene Monteiro Freitas
Fotografia de Andreas Merk

Marlene Monteiro Freitas nasceu e cresceu em Cabo Verde, entre música e dança. Descobriu que queria ser coreógrafa e bailarina depois de ver um espectáculo da companhia da bailarina e coreógrafa Clara Andermatt, ainda em criança.

Assim que teve oportunidade concorreu a uma bolsa para vir estudar para Lisboa, mas teve azar: só havia vaga na Faculdade de Motricidade Humana. Veio na mesma e o destino tratou de colocá-la no caminho certo. Cruzou-se com uma professora de dança que lhe reconheceu talento e ajudou-a a entrar na Escola Superior de Dança. No último ano do curso perdeu o pai e assim que terminou a licenciatura quis deixar a capital e as más recordações.

Concorreu a uma vaga para a P.A.R.T.S., uma escola de dança em Bruxelas, e ficou. Conheceu outros coreógrafos e bailarinos. Cresceu, dançou e começou a criar os seus próprios espectáculos. Hoje é considerada uma das mais carismáticas figuras da sua geração e está de regresso a Lisboa para apresentar o seu espectáculo mais recente, De Marfim e Carne – As estátuas também sofrem. Vai estar em exibição no Centro Cultural de Belém esta sexta-feira e sábado, às 21h00, no Pequeno Auditório.

Quando percebeu que a sua vida tinha de passar pela dança?

Sempre dancei muito, nasci e cresci em Cabo Verde, onde a relação com a dança e a música é muito próxima, faz parte do quotidiano. Costumo dizer que quando uma rapariga está interessada num rapaz não vai conversar com ele, comunicam através de olhares, da maneira como se agarram para dançar. Há ali uma relação com a dança e a música que é muito quotidiana, tem a ver com os afetos. Há coisas que se dizem com a dança e não com palavras. Isso é muito claro em Cabo Verde.

Mas apercebi-me de que o meu futuro passava pela música quando levei uma espécie de murro na cara enquanto vi a companhia da Clara Andermatt. Tinham residência artística em Cabo Verde e apresentaram o trabalho que estavam a desenvolver. Ao ver esse excerto de peça, ao vê-la e aos outros bailarinos em palco a dançar fiquei transtornadíssima. Foi um choque, mas tive a sensação de que podia fazer uma coisa assim apesar de não perceber como. Eu fazia parte de pequenos grupos de dança que faziam espetáculos, cresci a ver a minha irmã a dançar com os amigos. Dançávamos todo o tipo de músicas que nos interessavam, hip hop, salsa. Às vezes recebíamos cassetes de vídeo de dança – não havia a circulação de vídeos que existe hoje na Internet – e muitas delas estavam estragadas. Víamos uma parte da dança, copiávamos e na outra parte que estivesse estragada inventávamos. Também praticava ginástica rítmica quando era criança e tínhamos de escolher uma música, pensar num início e num final, desenvolver um vocabulário que no meio tivesse os elementos obrigatórios, os movimentos que iam ser avaliados pelo júri, e depois havia espaço para, entre um movimento e outro, fazer outra coisa qualquer. Os meus interesses estavam muito focados nessa direção e eu ajudava os monitores nesse campo, na escolha das músicas, esquemas e organização das coisas. Quando comecei a dançar com os meus colegas era igual. Havia um lado de cópia de coisas que já existiam e um lado de invenção.

Sente muita diferença nos países europeus nesse sentido?

Sim, é diferente, mas há muitos outros países que têm essa mesma relação com a música e com a dança.

Saiu de Cabo Verde para ir estudar para Bruxelas. Como se deu essa mudança?

Depois de ver a companhia da Clara Andermatt fiquei com aquele impacto em mim, mas não sabia o que fazer com isso. Na altura existia um sistema de bolsas de estudo em Cabo Verde. Os alunos com uma determinada média conseguiam uma bolsa de estudo para estudar no estrangeiro. Decidi que queria fazer dança e cruzei-me com um músico cabo-verdiano, o Vasco Martins, com quem aprendi o sentido da improvisação. Na altura eu tinha 15 anos e ele convidou-me para fazer a abertura de um festival de música onde ia dançar algumas músicas dele. Esse evento foi importante porque fui obrigada a fazer coisas que não sabia como fazer, mas fiz. A sensação de estar num grande palco, em frente ao público, ajudou-me a perceber que havia muitas ideias em relação à música que podiam ser transferidas e trabalhadas em dança. Acabei por trabalhar, na altura, guiada por um músico e isso também foi importante. Depois decidi vir para Portugal, mas só existia vaga na Faculdade de Motricidade Humana e não tinha muito a ver com os meus interesses. Comecei a estudar aí e cruzei-me com uma professora que foi muito importante para mim, a Helena Coelho, professora de Clássica na altura. Ela viu que eu tinha algum jeito apesar de aos 18 anos nunca ter feito nada daquilo antes. Com uma grande ajuda dela consegui entrar na Escola Superior de Dança e aí fiz o curso todo. Nos meus últimos anos de estudo, o meu pai esteve doente em Portugal, havia essa cooperação entre países. Os doentes que não podiam ser tratados em Cabo Verde eram tratados em Portugal. E ele faleceu no meu último ano. Dois meses depois disso, abriu uma audição para Portugal da P.A.R.T.S. [escola de dança em Bruxelas]. Inscrevi-me por insistência de um amigo e alguém me emprestou roupa. Foi uma coisa sem grande preparação, mas correu bem. Ao terceiro dia da audição em Bruxelas – foram quatro dias –, percebi que aquilo provavelmente era a sério. Mas, na verdade, não foi o desejo de entrar na escola que me levou para Bruxelas, eu queria sair de Portugal e a escola era uma boa opção.

Por que queria tanto sair de Portugal?

Por causa do que aconteceu ao meu pai. Queria mesmo afastar-me de Lisboa.

E acabou por conseguir ficar na P.A.R.T.S….

Sim. A ideia inicial era ficar apenas por um ano, mas depois percebi que tinha tido muita sorte em entrar nessa escola e ter ajuda da Gulbenkian. Pedi uma bolsa porque não conseguia estar lá e suportar todos os custos. Terminei o primeiro ciclo.

Sentiu que o ensino da dança em Portugal é muito diferente do que se faz lá fora?

É diferente. Não tenho muita experiência sobre o ensino da dança fora de Portugal, só tenho a experiência da P.A.R.T.S. e é uma escola bastante particular, muito eficaz e que quer passar o máximo de informação aos alunos porque defende que quanto mais praticarem e mais experiência tiverem melhor vão conseguir escolher a sua direção. Nesse sentido é muito eficaz porque alunos diferentes fazem escolhas diferentes. É uma escola muito boa. Em França trabalhei com um coreógrafo que estava na direção de um curso deste tipo e intervim em vários mestrados, mas são sistemas diferentes. A dança é uma área muito abrangente, existem muitas formas de aprender e ensinar, há muitas pessoas com desejos diferentes. O ideal é a pessoa procurar o seu próprio estilo, adaptando a informação aos seus interesses. É muito difícil, como em qualquer área, uma pessoa encontrar uma escola que responda a todos os seus interesses.

Já trabalhou com vários coreógrafos e dançarinos a nível internacional. Há algum que a tenha marcado mais?

Todos. Da primeira vez que fui a França fiz o curso de coreografia da Gulbenkian, que foi mesmo muito bom. Na altura, o Loic Touzé [coreógrafo francês] convidou-me para um projeto que ele ia desenvolver em França no ano seguinte e foi assim que comecei a trabalhar. Esse encontro não só foi importante a nível profissional como também foi a nível pessoal. Foi a primeira vez que fui a França e que comecei a trabalhar com vários coreógrafos nesse país, a desenvolver o meu próprio trabalho. Mas para mim todos são importantes, quer exista simpatia ou antipatia porque, independentemente de tudo, há movimento, há qualquer coisa que nasce. O choque entre ideias diferentes é sempre muito importante. Há ideias que começam juntas e de repente divergem. Isso é importante tanto para quem está a trabalhar como para quem se está a formar. Estar com diferentes coreógrafos também significa estar com diferentes bailarinos e outras pessoas da área, na maior parte das vezes. A pessoa com quem trabalho nas luzes, por exemplo, conheci noutro trabalho e agora é um colaborador essencial.

Há alguém com quem sonhe trabalhar que ainda não tenha trabalhado?

Lembro-me que na escola muita gente queria trabalhar com determinados coreógrafos ou na Escola Superior de Dança, cá em Portugal, muitos queriam trabalhar com certas companhias. Nunca tive esse desejo. Não há alguém em concreto com quem queira trabalhar, há muitos. Agora trabalho durante muito mais tempo nas minhas próprias peças, tenho muito menos tempo para dançar com outras pessoas e isso é uma coisa de que sinto falta. Nunca decidi que queria só coreografar ou só dançar, quero fazer tudo, para mim é tudo o mesmo trabalho. Danço para as minhas peças, mas é sempre diferente: estás mais focada nos outros do que em ti própria, apesar de passares muitas horas sozinha em estúdio e testares o teu corpo. Se estiver a trabalhar em peças de outras pessoas estou a ser surpreendida e há alguém que está a olhar para mim enquanto estou a dançar.

De todas as peças que fez até hoje, qual foi a mais especial?

Gosto de todas, mesmo aquelas que consideraram ter sido menos conseguidas. Avanço de projeto a projeto, de curiosidade a curiosidade, de desejo em desejo. Ontem a minha mãe, por exemplo, falava-me de carreira. Não trabalho numa perspetiva de construir uma carreira, não consigo ter uma visão global e dizer que gostaria de fazer isto ou aquilo, o que demonstra falta de qualquer coisa também. Provavelmente não está muito correto, mas eu não consigo. Não sei se isso também tem a ver com o facto de ser cabo-verdiana, mas preciso de avançar de projeto em projeto. Às vezes até me podem fazer um convite e eu ser surpreendida por aquele projeto vir de outra pessoa mas fazer muito sentido em relação a mim e ao que fiz até agora, ou seja, essa escolha não parte de mim. O Tiago Rodrigues, do Teatro Nacional D. Maria, por exemplo, vai realizar uma programação em que as peças partem de tragédias gregas e eu já tinha a ideia de fazer um projeto do género, veio encontrar-se com o projeto que eu tinha em mente, e com o meu último projeto.

O processo de criação de uma peça é difícil?

Essa parte de estar muito tempo em estúdio sozinha não é muito difícil, é uma coisa que consigo com facilidade e gosto. O processo só se torna difícil porque não há garantias, nunca se sabe se vai correr bem e muitas vezes tem-se a sensação de que está algo a faltar mas não sabes o que é. É como se o trabalho começasse a falar por si. Não é um processo exato, é complexo, há muitas coisas envolvidas, umas claras e outras mais obscuras. Onde há isso, há inquietude.

Onde costuma inspirar-se?

Primeiro tenho a ideia, que não sei de onde vem mas há sempre algo que me desperta a vontade de trabalhar numa determinada coisa. Depois começo a investigar. A inspiração faz com que surja a ideia, mas depois há muito trabalho para alimentar essa ideia, um trabalho muito consciente de recolha de informação e relacionar as coisas umas com as outras. Por fim experimenta-se.

Tem passado por vários países e trabalhado com muitas pessoas diferentes. Que importância tem essa interculturalidade na dança?

Estive numa escola internacional, as pessoas vinham de todo o lado, mas aprendíamos as mesmas coisas. O vocabulário que usávamos uns com os outros, que partilhávamos, não tinha a ver com o local de onde vínhamos mas com aquilo que estávamos a estudar. A dança não é um trabalho que tenhas de desenvolver num território geográfico específico, mas acredito que as diferentes culturas tragam coisas que não existam numa área com pessoas provenientes dos mesmo sítios, em que tenham de falar a mesma língua. No início da preparação de Marfim e Carne – As estátuas também sofrem era engraçado porque havia quem falasse apenas português, francês ou inglês e hoje todos partilham pelo menos uma das línguas, o que é engraçado ao fim de dois anos de um processo criativo. Há um vocabulário e língua que surge e não é só física, pode ser um inglês, francês ou português inédito, do próprio grupo.

O que as pessoas vão poder encontrar no espectáculo Marfim e Carne – As estátuas também sofrem?

Figuras petrificadas e estátuas que dançam, ossos que se transformam em carne e carne que se transforma em ossos, o branco que se torna vermelho e o vermelho que se torna branco. O Marfim é uma festa. A ideia era trabalhar a partir de estátuas e para isso precisava de uma ideia contraditória às próprias estátuas. Aí surgiu a ideia de baile, de pessoas que dançam, movem-se, comem, falam, vão à casa de banho, bebem de mais e imaginam coisas, criam uma realidade alterada. O Marfim nasceu desta ideia contraditória. A porta de entrada para trabalharmos foi a petrificação, a transformação do humano em pedra, em estátua. De alguma maneira essa foi a história que contámos a nós próprios e para isso tivemos a ajuda dos mitos de Orfeu, de Eurídice e de Pigmalião. Os limites entre a vida e a morte, ver e não ver. Na peça, as pessoas estão petrificadas mas nós conseguimos movê-las com o avançar da história.

O que acha do público português?

É diferente, mas gosto. Ficamos sempre muito contentes por podermos apresentar o nosso trabalho em Portugal. É especial para o grupo todo.