Portugal defronta o Uruguai para os oitavos-de-final este sábado, 30 de junho, às 19.00 horas. O jogo vai ser transmitido na RTP1 e também no Cabo e, em todo o lado e em todas as emissoras, não faltarão comentadores que irão analisar o encontro do Mundial 2018 ao mais ínfimo pormenor.
E numa prova em que a seleção nacional convoca quase tantas mulheres como homens à frente do pequeno ecrã, certo é que essa igualdade de apoiantes não se reflete depois na análise desportiva técnica.
Auscultadas as televisões em sinal aberto e as do Cabo portuguesas (de desporto e associadas a clubes), o Delas.pt apurou que só haverá uma mulher a analisar o encontro deste fim de tarde. Para já, fique a saber que se chama Helena Costa, tem 40 anos e faz vida no mundo da bola masculina. Na galeria acima saiba melhor quem é e o que defende.
É um único olhar feminino, de uma treinadora que trabalha atualmente na Alemanha, que vai escalpelizar um embate considerado difícil. Uma única perspetiva de uma mulher face a um auditório médio, tendo em conta os dados dos três jogos da equipa das quinas na Fase de grupos, que ronda o milhão e 302 mil espectadoras. Menos cerca de cem mil que o público masculino (1 404 900).
“Já estou habituada a ser a única”
A frase é dita entre sorrisos e sem surpresa. Helena Costa estará, esta tarde de sábado, a comentar, espera, “a passagem de Portugal aos quartos de final do Mundial da Rússia”, ainda que com as “maiores dificuldades, acima das do encontro com Espanha”, antecipa. Mas Helena pouco reage quando fica a saber que será a única mulher a fazê-lo na televisão nacional.
Nos vários canais (RTP, SIC, TVI, Benfica TV, Sporting TV, Porto Canal e A Bola TV) existirão pivôs, jornalistas e apresentadoras femininas a falar de bola, mas ela será a única a fazê-lo na posição de analista, no canal do cabo Sport TV. “Já estou habituada a ser a única. Francamente, nem tenho uma resposta para isso”, atira, respondendo ao facto de estar isolada no comentário desportivo, sobretudo em campeonatos em que as mulheres compõem praticamente metade do auditório.
Confira os números de audiências de Portugal na Fase de Grupos no Mundial 2018
15 de junho, Portugal – Espanha (RTP1, 19:00h)
Total espectadores – 2 795 900
Mulheres – 1 346 100
Homens – 1 448 900
20 de junho, Portugal-Marrocos (SIC, 12.00h)
Total espectadores – 2 230 700
Mulheres -1 097 200
Homens – 1 133 500
25 de junho, Portugal-Irão (RTP1, 19.00h)*
Total espectadores – 3 121 300
Mulheres – 1 489 000
Homens -1 632 300
Fonte: CAEM/Marktest
*Resultados provisórios (Os restantes jogos apresentam os resultados consolidados)
“Já há narradoras na radio, não há comentadoras e não tenho uma explicação. Há cada vez maior número de treinadoras, não na área do futebol masculino, e talvez isso seja uma limitação”, aponta como justificação, lembrando que já existem “inúmeras equipas de mulheres treinadas por homens”.
Helena crê que “a mentalidade está a alterar-se um bocadinho, as coisas já evoluíram no terreno, mas não na projeção que ganham depois” na televisão. E o que está a retardar esta chegada? “É uma área que ainda envolve tabus, não sei…”
“O conhecimento não cai do céu”
Há quatro anos a comentar futebol, Helena Costa, atual ‘olheira’ do clube alemão Eintracht Frankfurt, revela que teve um convite de um canal noticioso do Cabo – sem identificar qual – mas acabou por escolher o desportivo por adorar o que faz. “Tive convites para um canal, mas a Sport TV apareceu na mesma altura e, como o meu grande gosto é o comentário, decidi enveredar por este e estou muito feliz”, revela.
Um trabalho que não tem outra forma de ser preparado se não em contínuo. “Este conhecimento não cai do céu. Conheço porque venho acompanhando o tema, por questões profissionais, pelo scouting que faço – mesmo que não seja para televisão, tenho mesmo de assistir a todos os jogos. Mas tento ver os anteriores, as notícias do dia a dia – porque isso influencia muito o comentário – e tento conhecer os jogadores que eventualmente não conheça”, revela.
“Desde 15 de julho de 2017 até agora já vi, ao vivo, 186 jogos de futebol”
Por isso, não há um dia em que Helena Costa não veja uma partida. Ou mesmo mais do que uma. E, a título de exemplo, lembra: “Desde 15 de julho de 2017 até agora já vi, ao vivo, 186 jogos de futebol, desde a primeira liga portuguesa, à espanhola e à francesa. Faz parte do trabalho”. Um número que não inclui os encontros do Mundial, nem todos os que já visionou na TV e muito menos os que ainda não tiveram lugar, porque a época continua.
“Sou uma felizarda”, sintetiza. “Às vezes gostava de não gostar tanto de futebol, isto é uma panca. Já não vejo como espectadora. Sendo treinadora, gosto de olhar o lado estratégico e tático, mas a análise do jogador é o que me ocupa mais”.
Não há mulheres a comentar? Não há argumentos
Se na RTP, justifica um dos responsáveis, os espaços de análise contam “apenas com ex-jogadores e ex-treinadores homens por ser um desporto masculino“, já na TVI, um dos elementos referia ao Delas.pt nunca ter sido “abordado por uma mulher” no sentido de esta poder vir a fazer comentário técnico de bola. Por sua vez um dos responsáveis de um dos canais associados a futebol perguntou “quem poderia” fazer tal, tendo em conta “eventual histórico no clube”?
Pois bem, Helena Costa não se compadece, nem se abala com estes argumentos. “Gosto muito de separar o género da competência, porque esta não tem género e tanto é válida para o treino, para a psicologia da equipa como para a análise do jogo”, afirma.
Teme, contudo, que o argumento do género no comentário desportivo possa vir, a prazo, a segregar ainda mais a análise. “Se esse argumento continua, acho que, com a chegada do futebol feminino, vai aumentar ainda mais essa separação: com homens a comentar jogo masculino e elas no feminino”, aponta, em tom de lamento.
E lembra que não faltam homens a treinar jogadoras. Mais: “Todos os jogos da seleção feminina que passaram em Portugal foram comentados por homens, não vejo mal nenhum.”
“Trabalho no futebol masculino e vejo homens a treinar equipas de mulheres”
Helena finta assim a argumentação que arreda o sexo feminino do trabalho e da análise do que se passa dentro das quatro linhas, mas não do sofá ou dos estádios. Hoje, a treinadora do Eintracht Frankfurt crê que a realidade pode vir a mudar. Uma perspetiva vinda de quem já passou pelo Celtic, pelas seleções femininas do Qatar (2010-2012) e do Irão (2012-2014) e que, há quatro anos, entrou e saiu da liderança da equipa masculina do clube francês da segunda divisão Clermont após falta de contacto com o diretor desportivo, numa situação polémica e que a própria chegou a descrever como de “total amadorismo”.
“Comecei nisto há alguns anos e não era tão habitual ver uma mulher trabalhar no futebol, nem com miúdos. Fui abrindo umas portas, não fui a única, e agora é mais vulgar. Felizmente que isso existe. As coisas estão a normalizar”, considera. No entanto, ela será, esta tarde, a única mulher a comentar analiticamente o jogo. Um olhar que continua dominado por homens.
Imagem de destaque: Matraquilhos Ella, criação da empresa RS Barcelona
Ter comentadoras desportivas mulheres “é uma questão de tempo”
Desenhos animados russos põem meninas a dar baile no futebol