“Hoje, o busto da República estaria completamente em perigo”. Será?

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Bilhete postal intitulado "Proclamação da República Portuguesa" [Fotografia: DR]

Há 108 anos, a República implantava-se em Portugal e deixava para trás séculos de Monarquia. A propósito deste 5 de outubro de 2018, evocamos a data questionando a mentalidade da sociedade. Como? Simples. Com a chegada deste novo regime, surgia também a imagem de uma mulher que, escultoricamente, era representada com um decote generoso [numa obra de Simões de Almeida tendo como musa Hilda Puga].

Busto da República da autoria de Simões de Almeida e tendo como musa Hilda Puga [Fotografia: Arquiv: Global Imagens]
De forma ainda mais provocadora, a iconografia fez-se mesmo representar com uma mulher de seios desnudos. Uma imagem, um postal que todos vemos – e já vimos – nos livros de História, na escola, e que agora ilustra a nossa peça.

Porém, numa sociedade atual cada vez mais politicamente correta, numa era em que as redes sociais censuram partes do corpo e denunciam todos os posts que aludam a isso e num momento em que, em Portugal, até assistimos à recente polémica em torno da exposição da obra de Robert Mapplethorpe, na Fundação de Serralves, o Delas.pt foi saber se, nos dias de hoje, a sociedade estaria disponível e aceitaria representar um novo regime mostrando uma mulher nas mesmas circunstâncias. As respostas estão entre o “não” e o “nem pensar chegarmos aí”.

Um regresso ao puritanismo?

“Acho que, hoje, o busto da República estaria completamente em perigo”, responde Lara Seixo Rodrigues. A curadora de arte urbana lembra que “tal diz muito do universo em que vivemos, atualmente”.

Lara Seixo Rodrigues [Fotografia: DR]
Na verdade, Lara considera que “parece que estamos a voltar um bocadinho atrás e a ficar um bocado puritanos” e refere que “estamos no mundo em que tudo é politicamente correto, todas as exposições, todas as manifestações têm um objetivo de ser não digo censura, porque é uma palavra muito forte, mas de apelo”.

“No mundo atual, existe o risco de haver regressões culturais graves”, alerta Fernando Rosas, historiador e especialista em Primeira República, tema, aliás, sobre o qual se prepara para lançar uma nova obra [A Primeira República 1910-1926], pela Bertrand Editora. O professor catedrático, fundador e ex-deputado do Bloco de Esquerda vinca que desde o início do século XX “se andou muito”, mas “há reações”.

Fernando Rosas [Fotografia:
Reinaldo Rodrigues/Global Imagens]
Para o especialista, o problema radica “num setor de opinião pública que reage e que é muito sensível a estas tentativas puritanistas e muito conservadoras”. É por isso, sublinha, “que a luta pela liberdade de expressão tem de ser permanente”.

E, para que não restem dúvidas, Rosas apressa-se a lembrar o que significa esta imagem. “Marianne é a mulher que conduz o povo libertado na Revolução Francesa”. “A mulher surge como símbolo da liberdade, mas também da maternidade e da prosperidade, daí ter seios grandes, peitos descobertos. Ora, tal representava a ideia da maternidade, da liberdade e da prosperidade e dos valores da Liberdade, Igualdade e Fraternidade”.

“Estamos na época alta do puro”

O escultor João Cutileiro crê que todos estes movimentos podem ser passageiros. “Estamos numa época alta do puro, e é muito recente. Mas vem a seguir uma época de despudor”. Se pode chegar ou não ao busto da República, Cutileiro reage: “Não sei!”

João Cutileiro [Fotografia:
(Reinaldo Rodrigues / Global Imagens]
Porém, logo de seguida, acrescenta: “Se pedissem a um artista para fazer um busto e pôr uma maminha à mostra, admito que a mulher do administrador que tinha encomendado a peça lhe diria para não fechar o acordo”. E João Cutileiro fala assim para estabelecer o paralelo com um episódio que viveu em 1968. “Nesse ano, pus uma escultura de uma figura de uma mulher, que não era bem impúdica, no Hotel do Alvor e, umas horas depois da inauguração –apenas, horas -, cheguei a casa e soube que a estátua tinha sido retirada porque as senhoras, mulheres dos administradores, não tinham gostado. Foi tirada, depois voltou, veio cá no ano passado para ser consertada”.

Lara Seixo Rodrigues também tem uma história para contar. Não sobre nudez, mas antes sobre provocação, e estabelece a comparação. “Num projeto recente de um mural em Estarreja, uma artista espanhola super-reconhecida que trabalha muito com a temática dos idosos, quis questionar a quantidade de plástico que usamos pintando um homem idoso que se divertia a tomar banho no mar de uma praia, rodeado desses detritos”, começa por explicar a curadora. E revela depois: “Houve quem censurasse e nos alertasse que talvez fosse mais correto não colocar lixo na imagem. Mas era um mural legítimo e urgente, até porque era um alerta para o que podem bem ser as nossas fotografias de férias já em 2025.”

A curadora, contudo, tem também uma história de sucesso e surpresa para contar e que não quer deixar cair no esquecimento. “Também já nos aconteceu o contrário. No centro histórico da Covilhã, levámos um artista argentino a fazer uma peça em que representava várias mulheres nuas. Estávamos rodeados de população mais idosa, mas não houve ninguém que nos dissesse que o que estávamos a fazer era indecente ou que tivesse de ser repensado.”

“Não devemos ter preconceitos sobre a arte”

Indignada com a pergunta, Iô Appoloni nem quer acreditar nessa possibilidade. “Naquela altura [Iª República], representava-se a mulher de peito à mostra porque significava a liberdade e a democracia, tinha e tem uma finalidade bem clara, bem precisa. Não se pode ser ignorante. Temos de saber o que significam estes símbolos, assim como todos têm de saber o que foi a IIª Guerra Mundial, o que foi Auschwitz, que a Inglaterra teve um papel importantíssimo nesse momento histórico e que agora está a sair da Europa. Não se pode estar a denegrir isto”, afirma a atriz. “Não devemos ter preconceitos sobre a arte”, pede.

Iô Appoloni [Fotografia: Facebook]
No entanto, a atriz também é taxativa quando, relativamente às redes sociais, discorda que “se mostrem as maminhas de todas as maneiras e feitios”. Pegando no seu exemplo, lembra: “Eu posso ter sido a primeira mulher que se despiu em palco, mas fi-lo num contexto bem preciso, com uma mensagem e defendendo sempre os direitos das mulheres”.

O caso não ficou por aqui.Pediram-me para voltar a fazer isso noutra peça e não aceitei. Aí já era gratuito”, distingue, exemplificando o que deve também ser encarado como diferente nos dias de hoje.

Para Lara Seixo Rodrigues, o eventual cerco à arte da representação e simbologia do corpo – seja mulher ou homem – pode dever-se ao facto de se estar “perante uma sociedade cada vez mais egocêntrica, menos empática, e tudo isto tem as suas consequências”. “A arte tem de ter um poder muito grande para continuar a espicaçar consciências”, acrescenta.

Mulheres de peito à mostra em regime de “machismo dominante”

Fernando Rosas considera que “é absolutamente difícil analisar esta simbologia [a da República] à luz de uma moral reacionária e conservadora porque se trata de uma imagem histórica que o liberalismo e a República herdaram”.

Para o historiador, “é completamente grotesto que a censura nas redes aconteça”, e “se se começa a instalar censura aos símbolos históricos, seja da liberdade, seja da maternidade… é importante lembrar que a mulher de seios descobertos vem da Antiguidade como símbolo da maternidade e da abundância”.

Porém, o autor do recém-editado livro A Primeira República também lembra as profundas incongruências – praticamente irreconciliáveis – entre as cidadãs e a curta ação que lhes estava permitida durante o regime. “É curioso lembrar que a Iª República tinha esse símbolo, mas nem sequer deu direitos às mulheres: Institui o divórcio, mas com muitas restrições, o voto, mas, até ao 25 de abril de 1975, elas não podiam abrir o seu negócio, não podiam viajar sem autorização do marido”, enumera.

Falamos, então, de um sistema “muito marcado pelo machismo dominante” em que os “direitos das mulheres avançaram muito pouco, e o Estado Novo menos ainda”, conclui Rosas.

Imagem de destaque: DR

Legenda: Bilhete postal intitulado “Proclamação da República Portuguesa”

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