Inês Castel-Branco:”A Snu era tudo menos fria e tinha uma noção de justiça gigante”

Aceitou o convite antes mesmo de ler o guião e confessa que até aí não sabia nada sobre Snu Abecassis, a dinamarquesa que fundou a editora Dom Quixote, última companheira e grande amor do histórico líder do PSD, Francisco Sá Carneiro. Foi esta a mulher que coube a Inês Castel-Branco interpretar no filme ‘Snu’, dirigido por Patrícia Sequeira e com estreia marcada para o próximo dia 7 de março. E esta figura da história portuguesa recente, que passou a ver como inspiração depois de tudo o que ficou a conhecer sobre ela, que lhe dá o seu primeiro grande papel no cinema, como diz nesta entrevista ao Delas.pt.

O filme retrata o amor entre Snu e Sá Carneiro, no final dos anos 70. Ambos casados com outras pessoas quando se apaixonaram, enfrentaram uma sociedade a viver os primeiros anos de democracia mas ainda profundamente conservadora e moralista.

“O amor e a força que ele tem é uma mensagem que é transversal, que atravessa todas as épocas e que também é uma boa mensagem neste filme”, refere Inês Castel-Branco, que espera que o filme, estreado na véspera de se assinalar mais um Dia da Mulher, mostre às novas gerações quem era esta dinamarquesa que se apaixonou pela possibilidade de mudar um pouco de Portugal, “uma mulher que não tinha medo de uma ditadura e não tinha medo de uma cultura conservadora”, indo contra tudo e contra todos para assumir um amor.

Como é que se preparou para interpretar a Snu Abecassis, numa fase da sua vida que a expôs às polémica e uma sociedade portuguesa profundamente conservadora?
Quando a Patrícia Sequeira me convidou não sabia nada sobre a Snu Abecassis. Saí do encontro com ela com dois livros debaixo do braço, que ela me emprestou, e comecei assim a ler a ler tudo o que havia para ler: entrevistas, reportagens, biografias do Sá Carneiro, livros escritos por pessoas que privavam com eles. Este primeiro trabalho foi mais solitário. Numa segunda fase, com a ajuda da [produtora] Sky Dreams, começámos a entrevistar pessoas que privavam com eles, que trabalhavam com eles e eram amigos deles. E depois numa terceira fase, já com o Pedro [Almendra, ator que interpreta Sá Carneiro] e com a Sara Carinhas, que nos ajudou bastante na construção das personagens, enfiámo-nos numa sala com a Patrícia, algumas vezes, outras sem ela, a fazer improvisações em cima de tudo o que já tínhamos, principalmente do guião e começou a surgir o filme.

Durante essas entrevistas, sentiu algum tipo de constrangimento ou de retração nas pessoas com quem falou, em abordar a relação entre Snu e Sá Carneiro, que terminou com a trágica morte dos dois?
De todo. As pessoas que aceitaram falar connosco já sabiam exatamente o que é que o filme ia retratar, foram de uma generosidade gigante – é muito diferente ouvir pessoas falarem sobre coisas que viveram com a Snu do que ler informações. Depois, desde o princípio que tivemos algum pudor em invadir o espaço familiar. Nunca foi nossa intenção aborrecer ninguém, pelo contrário. Depois de ver o resultado, se algum familiar for ver o filme, eu já fico muito contente.

Porque é que diz isso?
Porque isto é também uma declaração de amor a esta mulher. Nunca foi nossa intenção invadir espaço nenhum. Depois, por outro lado, é, de facto, uma grande tragédia o que esta família viveu e é um sítio muito delicado. Portanto, se não forem ver, eu percebo perfeitamente também, mas adorava que fossem.

Como é que construiu o lado mais íntimo da Snu, da vivência dessa relação amorosa que não foi pública logo no início?
A Patrícia Sequeira desde o princípio sempre soube o que é que queria fazer e logo nos primeiros encontros deixou muito claro que não era intenção dela fazer um filme documental, pelo contrário, que nos dava muito maior liberdade se nós assumíssemos logo à partida que isto é uma interpretação nossa de uma história de amor que aconteceu. Tem, obviamente, de tocar na realidade, mas nós não queremos de todo que seja documental. E isso tira-nos um bocado a pressão de ser exatamente igual ao que era. Eu nunca poderia fazer uma coisa igual, até porque não há um único registo da Snu a falar, por exemplo. E, além disso, nunca poderíamos saber como é que era lá dentro de casa. Por mais que falássemos com a empregada que dizia que eles tinham uma grande paixão um pelo outro e que andavam de mão dada dentro de casa, que gostavam de ouvir música clássica os dois a olhar nos olhos um do outro, que jogavam às damas chinesas todas as noites… Isto tudo ajuda-nos a criar imagens, mas nós nunca vamos saber como é que era, de facto, a relação. Isto é uma interpretação nossa. Não sei se o Sá Carneiro era mais ou menos romântico do que aquilo que o Pedro fez ou se Snu sorria mais ou menos do que eu a ponho a sorrir. Foi um bocadinho ver o que é que foi esta história de amor nesta época, mas sempre com a salvaguarda que isto é uma interpretação nossa.

Imagem do filme que recria um momento real da relação de Snu e Sá Carneiro [DR]
Como é que trabalhou o sotaque da Snu, uma vez que não teve acesso a registos sonoros da sua voz?
Foi uma opção que fiz, muito solitária. Pela Patrícia, eu não precisava de fazer sotaque. E foi uma opção que me meteu algum medo, porque tinha receio que o sotaque acabasse por ser uma personagem também, que fosse maior que a interpretação. Estive muito tempo a trabalhá-lo, quis que fosse muito subtil, que houvesse uma diferença, quando ela está mais emocionada, quando ela está a trabalhar, quando ela se está a esforçar mais para não ter sotaque. Queria que houvesse uma diferença ao longo do filme nesse aspeto, porque as pessoas não falam sempre da mesma maneira. E depois fui apresentando coisas à Patrícia até que chegamos a este [sotaque]. E cheguei a este falando com amigas minhas com sotaque, anotando as diferenças delas para nós, o que é que elas fazem com as vogais, o jogo das consoantes que, para elas, é tão diferente do nosso e anotando no guião o que é que eu ia fazer de diferente.

A sua personagem também mostra sempre uma grande contenção…
Bastante.

Era assim a Snu ou foi também uma interpretação simbólica da dita frieza nórdica?
Era zero frieza, era mesmo contenção. As pessoas que trabalhavam e privavam com ela dizem que ela era tudo menos fria. Ela era um doce. Tratava as pessoas muito bem, tinha uma noção de justiça gigante, empregava pessoas independentemente da sua ideologia política, desde que fossem boas naquilo que faziam. Tinha alguns rituais com as pessoas da editora. Quando era o aniversário da editora fazia um almoço para os funcionários, muitas vezes em casa dela, em que ela tratava de tudo, quando um funcionário fazia anos ela fazia questão de fazer uma festa de anos a esse funcionário. Tinha sempre esta coisa de querer que toda a gente de Dom Quixote gostasse de lá estar e gostassem uns dos outros. Esta coisa do team building, que agora se fala, muito moderna, já ela fazia nos anos 60. Era uma pessoa também super justa ao nível dos ordenados. Portanto, eu acho que ela era tudo menos fria, mas, de facto, não era latina. Tinha mesmo uma contenção que não sei se vem só da cultura escandinava, se também da mulher que ela era. Era uma mulher muito culta, muito discreta, que não levantava a voz, que não gritava, que não era acelerada, tinha um tempo muito seu – o que não a impedia de querer mudar o mundo.

O que é que a surpreendeu mais nesta mulher?
Para mim, ela vai ser sempre um modelo de mulher. Ela é uma inspiração. Era uma mulher com uma coragem gigante, que não tinha medo de nada e que tinha como grande objetivo ajudar: ajudar a mudar as pessoas, a que as pessoas tivessem alguma liberdade, nem que fosse através da leitura. E ainda bem que ela está a ser falada, não só neste filme, mas também na série ‘3 Mulheres’, da RTP, porque ela merece esse destaque.

Este filme estreia na véspera do Dia da Mulher, numa altura em que os movimentos feministas crescem, mas há também retrocessos. De que forma é que este filme e a figura da Snu pode ajudar a entender a condição feminina, não só a da época, mas também a de hoje?

Eu acho que em relação à época, se servir para pessoas da minha geração e mais novas perceberem o que as mulheres passaram, já é bom. Depois, este lado de dar a conhecer uma mulher que não tinha medo de uma ditadura e não tinha medo de uma cultura conservadora, de um país conservador e que iria contra tudo e contra todos, ela e ele, para assumirem este amor. E o amor e a força que ele tem é uma mensagem que é transversal, que atravessa todas as épocas e que também é uma boa mensagem neste filme. Para o feminismo, para aquilo que estamos a passar atualmente, pode servir de inspiração, de como uma pessoa pode mudar muita coisa. Uma, duas, três pessoas…Pode ser que este filme também mude algumas mentalidades.

Esta história de amor foi acompanhada, ainda que de longe, por muitos portugueses, que ainda hoje se lembrarão dela, mas a nova geração não a conhece e talvez nunca tenha sequer ouvido falar. Como é que acha que o público vai receber este filme?

Eu sou suspeita, mas eu acho que nós fizemos um filme tão bonito, tão bonito, a todos os níveis: à forma como contámos o amor, começando no guião, depois vai à forma como a Patrícia filmou, como o João Ribeiro fez a direção de fotografia, depois a direção de arte, o guarda-roupa e os cabelos e a maquilhagem. Os anos 70 são lindos de morrer! Eu acho que é mesmo um filme muito bonito na mensagem, na estética, em tudo. E, para mim, marca um momento muito importante, porque é o meu primeiro grande filme.

É o seu primeiro grande papel no cinema?
Sim, sim. E ainda bem que foi pela mão da Patrícia. Tudo tem uma razão [risos].

 

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