Inês Pádua: “O cocktail de alterações de hábitos está a promover o aumento das alergias alimentares”

Estão entre as doenças do nosso tempo e afetam cada vez mais pessoas. As alergias alimentares não têm cura, apesar dos seus sintomas poderem ser tratados ou atenuados. Mas a sua prevalência e persistência estão a aumentar e podem torná-las num problema de saúde pública. Quem o diz é a nutricionista Inês Pádua, no seu mais recente livro ‘Tenho Alergia Alimentar e Agora?’, editado este mês, pela Pergaminho.

Inês Pádua é docente na Escola Superior de Saúde do IP de Leiria e investigadora e nutricionista na área clínica e comunitária. [DR]
Doutorada em Ciências do Consumo Alimentar e Nutrição, na área da alergia alimentar, Inês Pádua desmonta, neste livro, algumas confusões em torno dos conceitos de alergia e intolerância, explicando noções e factos básicos, sintomas e reações e debruçando-se sobre as formas de viver com uma doença que leva muitos a isolarem-se e a limitarem as suas atividades exteriores e contacto com os outros ao mínimo. Daí que uma das respostas à questão que o título do seu livro coloca seja, precisamente, a necessidade de, “dentro daquilo que é razoável”, a pessoa “não permitir que a alergia limite a sua vida social”, diz em entrevista ao Delas.pt a nutricionista que é também autora do livro ‘Manual de Alergia Alimentar para a Restauração’, editado em 2016, pela Direção-Geral da Saúde

O título do seu livro é ‘Tenho Alergia Alimentar e Agora?’. Como é que podemos responder a esta pergunta? Que três princípios básicos, por exemplo, devemos seguir se tivermos uma alergia alimentar?
O primeiro é sempre obter o diagnóstico médico adequado, porque infelizmente – e também é uma das preocupações manifestadas no livro – há muitas ideias erradas acerca do que é a alergia alimentar, muita confusão com intolerâncias alimentares, com outras doenças. Portanto, o diagnóstico médico – que vai pressupor ter um bom acompanhamento – é essencial. Depois, há que fazer uma exclusão total, à partida, do alergénio a que se é alérgico. Quando estamos a falar do leite, que é um dos mais comuns, exclui-se o leite e os derivados. Mas depois há toda uma gama de outros produtos processados que têm leite: bolachas, cereais, fiambre, salsichas, até em produtos não alimentares. Portanto, ter a noção de que a exclusão vai ter de ser total também é muito importante. E por fim, dentro daquilo que é razoável e que também é o que se pretende mostrar com o livro, é a necessidade de a pessoa não permitir que a alergia limite a sua vida social. A experiência que temos é que a doença tem um enorme impacto psicossocial, alguns doentes acabam por nunca mais sair de casa a não ser o estritamente necessário (para o trabalho e escola). Têm muito medo de ir a um restaurante, a um local público, de viajar. Por isso, há doentes que muitas vezes se sentem excluídos, isolados e mais deprimidos.

Este impacto pode agravar os próprios sintomas?
Sim, não tanto em termos de favorecer as alergias, mas pode tornar as pessoas mais ansiosas e preocupadas e, no limite, quando começa efetivamente a haver uma reação ao alimento, pode piorar um pouco o prognóstico dessa mesma reação. Ou seja, a reação até poderia, à partida, ser mais ligeira, mas numa pessoa ansiosa, mais deprimida ou assustada, a parte respiratória, por exemplo, pode, nessas circunstâncias, ficar mais comprometida.

Como é que as alergias alimentares se podem manifestar, que tipos de sintomas podem gerar?
É muito variável. Nós não conseguimos prever a gravidade da reação…

Associamos quase sempre ao choque anafilático, mas há outro tipo de reações.
O choque anafilático é a mais grave das reações todas, é uma reação já mais sistémica, em que todo o nosso sistema está comprometido. Mas as reações podem ser manifestações cutâneas – umas borbulhas, uma comichão -, podem ser respiratórias, gastrointestinais e a pessoa sentir-se indisposta, dores de barriga ou diarreia, e podem ser também cardiovasculares, a pressão arterial baixar e poder inclusivamente haver perda de consciência e desmaios. Isso pode acontecer, como pode acontecer serem cutâneas e respiratórias, ou serem respiratórias e gastrointestinais. Pode ser isolado ou combinado e quando afeta o sistema todo é que nós dizemos que está em choque anafilático.

Que é o mais perigoso.
É o mais perigoso e pode ser fatal, porque há um problema generalizado. Aquela ideia que temos todos do edema da glote, a reação que consiste em a garganta inchar e depois a pessoa asfixiar é um dos mais comuns choques anafiláticos e é, de facto, o mais grave. Mas não quer dizer que só se manifeste assim e que uma pessoa que tenha tendência para ter choques anafiláticos que não possa ter uma reação mais leve. Assim como uma pessoa com reações mais leves pode um dia ter um choque anafilático. É tudo muito imprevisível.

O mesmo alimento pode provocar as mais diferentes reações ou produz sempre o mesmo tipo de reação alérgica?
Geralmente, nós não conseguimos associar um alimento a um tipo de reação ou a um tipo de manifestação. Às vezes perguntam-nos quais são os alimentos que fazem anafilaxia. Nós temos alguns que são mais frequentes porque há mais casos descritos, o que não quer dizer que esse alimento possa fazer uma anafilaxia a qualquer pessoa que lhe seja alérgica. Também não é muito previsível.

Estará mais relacionado com o organismo da pessoa?
Sim, sim. Há muita variabilidade individual e a pessoa pode estar mais predisposta a fazer reação, mas também não quer dizer que vá ser sempre assim.

Há pessoas que vivem desde criança com alergias alimentares, mas há outras que as desenvolvem já na fase adulta. A que é que isso se deve?
Essa é uma grande questão e tem de haver mais investigação nesse sentido, porque nós, de facto, não sabemos. Não sabemos porque é que os adultos desenvolvem uma reação tardia. Aquilo que sabemos é que para termos uma alergia alimentar precisamos de ter sempre um primeiro contacto com o alimento, ninguém reage, à partida, que saiba, a um alimento que consome pela primeira vez. Tem de haver primeiro uma sensibilização e depois só num contacto posterior é que haverá uma reação. Agora, esse contacto pode ser na vez imediatamente a seguir ou pode ser 30 anos depois. Ainda não se sabe o que é que determina a altura em que isso vai acontecer.

O processamento dos alimentos e as alterações à sua produção, os químicos associados, também podem contribuir para isso?
Sim. Quando nos perguntam, a nós nutricionistas, o que é que pode estar na origem do aumento do número de pessoas com alergia alimentar – de facto, está a aumentar – nós não podemos dar uma causa única. É um conjunto de fatores. E, efetivamente, a alimentação, a forma como ela mudou, em termos nutricionais, por o nosso padrão alimentar se ter alterado, mas também o processamento, os agroquímicos, os agrotóxicos, tudo isso contribui para esse aumento da alergia alimentar. Há também o facto de nós estarmos mais sedentários, porque o exercício fortalece o sistema imunitário, e de termos uma menor exposição solar. Hoje em dia, fala-se muito que estamos todos com défice de Vitamina D. É uma realidade, e a vitamina D tem aqui um papel importante. Além disso, cada vez mais recorremos a antibióticos e outros medicamentos, muitas vezes sem receita médica ou sem os tomarmos até ao fim, o que também vai enfraquecer o sistema imunitário. Há ainda a hipótese da higiene, como o facto de as nossas crianças crescerem, desde muito pequenas, em ambientes muito estéreis, sem contacto com animais, com terra, com o exterior. O sistema imunitário acaba por não combater aquilo para que foi programado e por combater antes coisas mais básicas como a alimentação. Hábitos tabágicos também. Tudo isso junto, todo este cocktail de alterações de hábitos no estilo de vida é o que promove este aumento das alergias alimentares.

Os fatores genéticos também têm influência?
A genética também tem um peso na alergia alimentar. Não podemos dizer que a alergia alimentar é hereditária, mas tem uma componente genética. Se uma criança tiver pais com uma doença alérgica, qualquer que seja, não tem de ser alimentar – pode ser asma, rinite, alergia a fármacos ou até ao veneno das abelhas –, isso faz com que ela tenha um risco muito maior de desenvolver uma alergia alimentar, do que uma criança cujos pais não tenham qualquer problema desse tipo.

Mas quais são os fatores que pesam mais, os ambientais ou os genéticos?
Acreditamos que o fator ambiental, as alterações que referi antes, terão um pouco mais de peso.

Há diferenças biológicas que façam, por exemplo, as mulheres fazerem mais reações alérgicas, ou mais reações alérgicas a determinados alimentos, que os homens? Ou vice-versa?
Não, não há nenhum género com mais propensão que outro para desenvolver alergias alimentares. Não há indicação que o género determine o que quer que seja. É mais uma questão de ambiente e de consumo. Se se verificasse que as mulheres tinham um consumo maior de um determinado tipo de alimento, se esse alimento fosse mais prevalente no consumo das mulheres do que dos homens, isso, de facto, podia aumentar o risco de serem mais as mulheres a ter alergia a esse alimento. Mas à partida, que eu saiba, não existem diferenças.

Mesmo sendo as mulheres mais propensas a fazerem dietas e alterarem mais vezes os seus hábitos alimentares?
O que acaba por acontecer é talvez aparecerem mais mulheres a acharem que têm alergia alimentar, ou porque a confundiram com uma intolerância, porque estão mais atentas. Se estão mais inchadas, procuram-nos. Se calhar porque podem ser intolerantes à lactose ou ao glúten, mas confundem isso com alergias. Nesses casos, sim, as mulheres preocupam-se um pouco mais.

Qual é a diferença entre uma alergia alimentar e uma intolerância alimentar?
A diferença principal e central é se o sistema imunitário está envolvido ou não. Na alergia alimentar está envolvido, é o sistema imunitário que é afetado e chamado a responder quando existe uma alergia. Neste caso, o alimento é reconhecido como um agressor ao organismo e o sistema imunitário é chamado a combatê-lo da mesma forma que combate vírus e bactérias. A intolerância é uma questão gastrointestinal, que tem a sua importância, mas nunca vai desencadear um choque anafilático, nunca vai por a vida da pessoa em risco.