Inês Pedrosa: “Em Portugal, o chamado ‘elevador social’ continua perro”

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‘O Processo Violeta’ é o novo romance de Inês Pedrosa e o primeiro que a escritora edita pela Porto Editora. Neste livro, a autora inspira-se na história real de uma professora americana que, nos anos 90, se apaixonou por um aluno adolescente, 22 anos mais novo, de quem engravidou. Acabou por ser condenada a sete anos de prisão. Quando foi libertada casou-se com o aluno e hoje são pais de duas raparigas.

No livro de Inês Pedrosa a história passa-se no Portugal do final da década de 1980, entre Violeta, uma professora de 32 anos, e o seu aluno Ildo, de 14, filho de uma mãe solteira cabo-verdiana, e do qual engravida. Ao mesmo tempo que o escândalo produz o que se designará de “processo Violeta” – investigado pelo jornal O Insubmisso – Ana Lúcia, amiga de Violeta, oculta a sua violação por um outro aluno de 14 anos da mesma escola.

A linha que separa o abuso e o amor que envolve menores pode ser ténue, mas será ela amenizada no caso de o adulto ser uma mulher? “A idade continua a ser um estigma das mulheres: é sempre de menos ou de mais. E o amor alheio nunca é fácil de ver”, responde Inês Pedrosa, numa entrevista ao Delas.pt, por email, a propósito deste novo livro.

Além do amor proibido, esta obra cruza também problemáticas como o racismo, as diferenças socioeconómicas e as questões de género. Numa altura em que na ordem do dia estão acontecimentos que expõem algumas fraturas sociais do país, perguntamos à escritora se, afinal, não mudámos assim tanto nos últimos 30 anos. “Basta olharmos à nossa volta: quantas pessoas de etnias diferentes encontramos no Parlamento, nos jornais, nas televisões, na administração das empresas? E quantas encontramos a trabalhar em limpezas e na construção civil?” Já as mulheres nem sempre viram o que conquistaram em mobilidade social e laboral refletido em respeito pessoal. “Mas estão mais atentas, e já não deixam passar tudo.”

Por que quis fazer um romance a partir de um caso real americano e transpô-lo para a realidade portuguesa?
O caso americano foi apenas um dos rastilhos para este romance, cuja questão central é a reflexão sobre o que é a maturidade, conceito que utilizamos quotidianamente na apreciação de relações humanas ou objetos artísticos, mas sobre o qual refletimos pouco. Vivemos num mundo global; pessoalmente, sinto-me uma cidadã do mundo que escreve em língua portuguesa – entendo que é a língua e o modo como nos apropriamos dela aquilo que define o território literário, não a geografia. Cada romance cria o seu específico universo paralelo como um laboratório de reflexão sobre a existência e as suas inquietações fundamentais.

Além do amor proibido, o seu livro cruza também outras questões, como o racismo ou as diferenças socioeconómicas. É por isso que a personagem Ildo é um jovem cabo-verdiano, filho de mãe solteira e pobre, fruto de uma relação com um cavaleiro tauromáquico?
Os meus romances partem das personagens e dos seus nós existenciais: o trajeto é sempre e só esse. O racismo ou a xenofobia e as diferenças socioeconómicas subjazem a muitíssimos romances, como elementos constitutivos das sociedades em que vivemos. Este romance principiou com as figuras de Ildo e Violeta, sob o fundo da eufórica década de 80, no Portugal ainda estremunhado da longa noite da ditadura. A profissão do pai de Ildo surgiu depois, sem premeditação: a tauromaquia tinha – e tem ainda – uma presença fortíssima no imaginário português, e pareceu-me um elemento importante para a compreensão do que se entende em Portugal por «maturidade» – ideia que se prende também com uma bateria de estereótipos sobre masculinidade, virilidade, força, fraqueza, responsabilidade…

Este livro é passado nos anos 80, mas ficamos com a sensação de que, em termos sociais, há muito coisa que não mudou. Socialmente, e à luz dos acontecimentos recentes – no bairro da Jamaica e tudo o que se lhe seguiu – pode dizer-se que há um ressurgir da mentalidade dessa altura?
Não um ressurgir, mas um prolongamento… As formatações socioculturais prolongam-se para lá das aparências e das mudanças legais. Parece-me evidente que, em Portugal, o chamado «elevador social» continua perro, apesar dos aparentes esforços legislativos. Basta olharmos à nossa volta: quantas pessoas de etnias diferentes encontramos no Parlamento, nos jornais, nas televisões, na administração das empresas? E quantas encontramos a trabalhar em limpezas e na construção civil?

No seu livro, encontramos mulheres socialmente diversas e com perfis de emancipação diferentes. Como era a situação das mulheres na sociedade portuguesa dessa década? Que principais mudanças se verificaram até agora, além das estatisticamente conhecidas, e o que continua igual?
Na década de oitenta, que foi também a da minha juventude, muitas mulheres começaram a ganhar consciência dos seus direitos e procuraram afirmar-se e realizar-se profissionalmente, mas tinham interiorizado uma cultura de duplo padrão que fazia com que encarassem como «naturais» uma série de abusos verbais, morais, laborais e até sexuais. O romance dá conta dessa realidade. Parece-me que a principal mudança – e muito positiva – é a intransigência face a esses comportamentos, por parte das mulheres e por parte da sociedade, alertada (ou, pelo menos, atemorizada) pela explosão do movimento «me too». Mas ainda há muito caminho a percorrer. Quando, numa reunião de trabalho, discordo de alguma proposta, ainda me acontece ouvir frases manipuladoras como: «Muita gente diz que tu tens mau feitio, mas, apesar disso, eu gosto muito de ti». Trata-se de um estratagema de menorização da oponente através da armadilha afetiva: a nenhum homem se faz, em contexto laboral, este tipo de chantagem. A diferença é que, agora, ao contrário do que sucedia há 30 anos, eu desmonto imediatamente a estratégia, em vez de me calar e fingir acatá-la. É óbvio que a discriminação das mulheres persiste, mais ou menos encapotadamente, em todos os setores – incluindo o, supostamente iluminado, das artes e da literatura. Mas as mulheres estão mais atentas, e já não deixam passar tudo. E há cada vez mais homens a entender que o machismo é um garrote que os prejudica também muito a eles.

“A tauromaquia tinha – e tem ainda – uma presença fortíssima no imaginário português, e pareceu-me um elemento importante para a compreensão do que se entende em Portugal por «maturidade»”

Por que quis trazer para o livro o mundo dos jornais, com a associação ao ‘O Independente’ deste ‘O Insubmisso’?
A emergência de novos meios de comunicação foi um fenómeno central na segunda metade da década de 80, exponenciado nas décadas seguintes. Fiz parte da equipa fundadora d’O Independente, que foi um vendaval (para o melhor e para o pior) no panorama da comunicação portuguesa. Era um jornal feito por jovens – um romance sobre a maturidade não poderia dispensar a memória desse jornal. No entanto, sublinho que, embora O Insubmisso traduza os valores, ambições e objetivos que O Independente lançou, não é um retrato desse jornal; as personagens, histórias e ambientes são ficcionais, criados a partir da minha experiência em muitos jornais – de O Jornal ao JL e ao Expresso, jornais em que trabalhei durante essa década, além d’O Independente, onde, de resto, só estive no primeiro ano e meio.

Hoje, com o movimento #MeToo e as redes sociais, o caso Violeta, ou o caso real em que se inspira, teria alguma possibilidade de ser visto como um caso de amor?
Vindo dos Estados Unidos da América, o movimento #MeToo assume um puritanismo extremo que me parece curtocircuitar a sua capacidade transformadora. A professora americana casou em 2005 com o jovem aluno, então já maior, e treze anos depois ainda é referida pela imprensa local como «a infame». O filósofo Slavoj Zizek escreveu que esta é a grande história de amor do século XXI, e eu concordo com ele. Mas, para a América, nunca foi, nem é.

Num caso destes, que envolve um menor, onde está a fronteira entre o abuso e o amor?
O amor não conhece nem reconhece fronteiras. Nem justiça ou injustiça. É essa a sua beleza e o seu extraordinário poder, desde Heloísa e Abelardo até aos dias de hoje.

Quando há grandes diferenças de idade, na fase adulta, entre um casal, normalmente o estigma recai mais sobre a mulher quando ela é a mais velha. Num caso assim, como o de Violeta e Ildo, é mais fácil ver o amor, em vez de uma relação de abuso, quando o adulto é uma mulher?
A idade continua a ser um estigma das mulheres: é sempre de menos ou de mais. E o amor alheio nunca é fácil de ver.

“O filósofo Slavoj Zizek escreveu que esta é a grande história de amor do século XXI, e eu concordo com ele. Mas, para a América, nunca foi, nem é.”

Por que quis contrapor o romance de Violeta com um aluno menor à violação da sua colega e amiga Ana Lúcia, também por um aluno menor?
Não quis; aconteceu. Ana Lúcia é uma personagem de um anterior romance meu (Os Íntimos) que resolveu reaparecer neste (como Clarisse, personagem de Desamparo, que aqui reencontramos). Associamos menoridade a candura e inocência, Ana Lúcia veio recordar-me o perigo dessas associações genéricas e abstratas, desses pré-conceitos em que pretendemos arrumar as relações humanas, por facilitismo.

“Embora O Insubmisso traduza os valores, ambições e objetivos que O Independente lançou, não é um retrato desse jornal.”

O seu livro ‘Nas Tuas Mãos’ ganhou recentemente edição e tradução americana, colhendo boas críticas em alguns dos jornais mais reputados dos EUA, como o New York Times. Já teve reações de leitores americanos? O que é que eles lhe dizem sobre o livro?
Além da excelente crítica do New York Times, alegrou-me que o livro tenha sido considerado como um dos dez melhores romances LGBTQ de 2018 pela revista The Advocate – porque significa que um livro originalmente publicado em 1997 continua a fazer sentido para leitores de outro continente vinte e um anos depois…Tenho tido ecos de leitores através de blogues, falando da descoberta de Portugal que o livro lhes proporcionou (a história começa na década de 30 e vai até ao fim do século XX), e elogiando o trabalho sobre a linguagem, o que me agrada e me estimula muito, evidentemente. O mérito é também da tradutora, Andrea Rosenberg, que fez uma tradução excelentíssima, de grande sensibilidade, inteligência e rigor.

Criou, há um ano, a Sibila Publicações, dedicada à edição de obras de todos os géneros de autores do sexo feminino e ensaios de autores de ambos os sexos. Que balanço faz do trabalho até agora realizado?
O balanço é positivo. Avançamos devagarinho, mas os nove livros que já publicámos têm encontrado leitores entusiastas. Estamos a construir um catálogo de autoras e autores que não estavam disponíveis em Portugal e que, sem dúvida, merecem ser lidos. A editora é um sonho antigo que finalmente se concretiza.

Quais são as próximas edições?
A Sibila publicará em breve os seguintes livros: “O super-homem é árabe”, ensaio da escritora libanesa Joumana Haddad; “Ambições”, romance de Ana de Castro Osório; “Herança de Lágrimas”, romance de Ana Plácido; “Herland”, romance da escritora norte-americana Charlotte Perkins Gilman; e a tradução integral e literária de “A Cabana do Tio Tom” (vulgarizado como “A Cabana do Pai Tomás”), da escritora norte-americana Harriet Beecher Stowe.

Pré-publicação: Leia um excerto de ‘O Processo Violeta’, o novo romance de Inês Pedrosa