Isabel Ferin Cunha: “Abordar a conciliação casa-trabalho numa novela podia ser muito interessante”

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Professora universitária, especialista em análise dos media e com trabalhos desenvolvidos na área da ficção nacional e da representatividade dos géneros, Isabel Ferin Cunha olha para ficção que se faz em Portugal e traça o retrato a estes argumentos.

Isabel Ferin Cunha
Isabel Ferin Cunha [Fotografia: Fernando Fontes/Global Imagens]

Nega que a vitimização feminina seja o principal eixo narrativo das produções nacionais de longa duração, embora admita que haverá sempre mulheres e homens a dar corpo a essa narrativa. Diz, contudo, que nos últimos 30 anos os papéis femininos saíram de casa, procuraram a independência, buscaram uma nova intimidade e outras formas de conquistar a felicidade.

Pede, no entanto, que se trabalhem outras temáticas a bem da igualdade de género e elege a conciliação casa-trabalho como uma história que tem mesmo de ser tratada e o quanto antes.

Há vitimização das personagens femininas nas novelas nacionais?

De uma maneira geral não concordo que a ficção seriada em Portugal torne as mulheres vítimas constantes. Muito pelo contrário, as telenovelas têm vindo a empoderar as mulheres, no sentido de as tornar as heroínas, donas do seu destino, com capacidade de decisão e, inclusive, dar-lhes a possibilidade de optar por outros modelos ou outros comportamentos sociais.

Como por exemplo?

As questões relacionadas com o divorcio, a forma de se relacionarem com os filhos, fazem um conjunto de opções que não as torna necessariamente vitimas. Evidentemente que há sempre perfis de mulheres que são subjugadas e incapazes de lutar contra o destino. Mas, de uma maneira geral, até pelo facto de estas produções se direcionarem mais para as mulheres, a ficção tende a criar-lhes outras possibilidades de estar em sociedade e de as autonomizar.

De que forma é que as novelas são palco para tratar dos problemas sociais?

As telenovelas tiveram e têm a vantagem de chamar as audiências a pensar sobre temas novos, temáticas que são muitas vezes mal discutidas na sociedade, e que através da ficção adquirem uma dimensão social importante.

Quais foram as novelas que mais fizeram a diferença na representação social da mulher em Portugal?

Tirando a clássica Gabriela, em que a protagonista operou uma revolução sexual a partir de casa e a apresentou como uma forma de luta de machismo, as que considero de maior impacto são aquelas que trabalharam com a questão colonial.

Quais? Equador, Jóia de África, ambas na TVI, por exemplo?

Onde aparece a mulher sob diferentes aspetos: a negra, a branca, as questões raciais.

A novela que mexeu com os casamentos em Portugal está de volta

E em matéria de igualdade, qual a mais relevante no seu entender?

Não me lembro de nenhuma. Não há nada que seja parecido às séries americanas. As de advocacia tratam as questões das mulheres e há uma densidade. Temos a Law&Order que trabalha as mulheres e as vítimas sociais, a violência doméstica e que cá era uma coisa que era preciso trabalhar. É uma questão de violência doméstica.

A RTP1 anunciou que está a preparar uma série em torno das mães de Bragança. É por aí o caminho?

Como digo sempre, tudo depende da forma como for tratado. O tema é ótimo, mas tudo depende.

Nas novelas nacionais e no que diz respeito às mulheres, elas ainda lutam pelo ‘felizes para sempre’?

No caso das mulheres, cada heroína, cada personagem, pode optar pelo modelo de felicidade que pode ser mais instantâneo ou mais ‘feliz para sempre’. Há sempre perfis, personagens que são apresentadas como vítimas e merecedoras de destinos muito infelizes, mas isso faz parte dos enredos, assim como há homens infelizes e comandados pelo destino. Não tenho essa visão de que a ficção televisiva é um lugar de subserviência da mulher.

Como é que a representação das mulheres é feita hoje?

Está perante a possibilidade da escolha, e que muitas vezes escolhe ir contra a sociedade ou mesmo o seu núcleo familiar. Eles já não se movem apenas pelo amor. Na ficção nacional, atualmente, a felicidade feminina pode estar aí, mas também naquilo que for a sua decisão.

“De uma maneira geral, a mulher na ficção está mais fora de casa”, diz Isabel Ferin Cunha

E em que aspetos concretos?

As mulheres estão mais em situações de trabalho e também aparecem já muitas vezes em cargos de direção, apesar de serem mostrados todos os contratempos que uma direção feminina pode sofrer, pelo facto de ser uma sociedade patriarcal e masculina) e por fatores mais pessoais. Mas, de uma maneira geral, a mulher na ficção está hoje mais fora de casa.

E na intimidade?

Já é mais autónoma, escolhe os parceiros e tem comportamentos que há 20 ou 30 anos seriam masculinos.

Que futuro para as mulheres neste tipo de narrativas televisivas?

A grande questão da ficção nacional é o ritmo. A narrativa portuguesa é demasiado cortada.

Cortada? Ela é tão longa, com tantos episódios.

(Risos) Sim, por um lado é muito longa, mas depois é muito cortada em eventos. Não há uma sequência, uma lógica narrativa na qual as personagens construam uma densidade para a sua personagem. Uma história que começa por ser de violência doméstica, pode evoluir depois para uma doença, um cancro, uma perda. Tudo isto para que as pessoas, durante uma história tão longa, não se desliguem. Por isso, vão colocando mais elementos na história daquela personagem, e o cerne da questão que queria ser passado, acaba por não ter lugar. No fim, perde-se a violência doméstica, o cancro e tudo devido a uma sobreposição de eventos.

As novelas são o palco de eleição para passar mensagens de género?

Elas são muito importantes para passar a igualdade de género, sem dúvida.

“Abordar [na novela] a conciliação casa-trabalho podia ser muito interessante”

Que temas em torno da igualdade gostava de ver retratados na ficção nacional?

Gostaria de ver mais questões relacionadas com a gestão da família, como hoje uma mulher que trabalha e que está 10 horas fora de casa consegue conciliar a divisão de tarefas com o marido. Abordar a conciliação casa-trabalho numa novela podia ser muito interessante. Devia ser falada a questão relacionada com os atributos que a mulher casada tem de manter: tem de continuar a ser uma fada do lar, a ser uma namorada do marido, um mãe exemplar, uma filha irrepreensível e uma profissional de exceção. E é a própria mulher assume isto.

Como o fazer?

Tudo depende da forma como a narrativa é apresentada. Aqueles temas podem não ser o issue central, mas pode correr em paralelo, os autores podem fazer essa construção, eles é que são os arquitetos. Repare, uma história banalíssima pode ter tudo isso. É tudo uma questão de construção.

Como olha para a forma como as revistas da especialidade retratam as personagens nas suas páginas?

A ficção é mais representativa que as revistas. Elas como têm que captar a atenção num olhar, nas chamadas de capa, elas são muito mais apelativas, são mais machistas e traumáticas do que a ficção em si. As estratégias machistas são as que estão incorporadas, tem-se medo de experimentar outras soluções. Tem de se exigir mais criatividade e mais capacidade de incorporar outras estratégias. Esta tendência é, infelizmente, internacional. Não é só cá.

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