Iva Viana fez do estuque um modo de vida

Iva Viana
Lisboa, 08/10/2016 - Iva Viana, Escultora, fotografada esta manhã no Memmo Hotel Príncipe Real em Lisboa. Iva Viana ( Pedro Rocha / Global Imagens )

Estudou Belas Artes, no Porto, e nesta cidade viveu os seus três primeiros anos sozinha. Diz que o grau de inocência era tal que só mais tarde percebeu que as senhoras que costumavam estar nas imediações do prédio onde vivia eram prostitutas. Hoje, Iva traz a mesma inocência no olhar, mas há muito saiu daquela rua da Invicta. Através das suas peças, criadas no ateliê em Viana do Castelo, a artista ‘anda’ pelo mundo. Está, por exemplo, no recém-inaugurado Memmo Príncipe Real, em Lisboa. Quando entrar neste hotel, olhe para a esquerda e aprecie a delicadeza de Jasmim, um painel assinado por Iva Viana, que usa a sua página de Facebook como principal janela para o mundo. Do outro lado, um fã, do mundo, publicou: “Me emociono mucho con tus obras”. Nós também!

Trabalha com estuque ou com gesso? Qual é a diferença entre ambos?
Estuque é uma mistura de cal com gesso. Eu uso só gesso decorativo. Eu gosto de chamar de estuque, porque a minha ideia também é recuperar os estuques tradicionais que nos anos 70, 80, e até um pouco antes, se começaram a perder. Recuperar não no sentido de restaurar, porque eu não faço restauro, mas sim de despertar consciências. Há um património que nós temos de preservar e de lembrar, e por isso gosto de usar o termo estuque decorativo.

O que a fez apaixonar-se pelo estuque decorativo?
Apesar de eu ser de Viana do Castelo, que é conhecida como a terra dos estucadores, antes de entrar neste caminho não gostava nada de trabalhar com gesso. Quando saí da faculdade, surgiu uma proposta de trabalhar como técnica de escultura para uma empresa de gessos decorativos, francesa, e foi aí que tive o primeiro contacto com este trabalho. A empresa estava sediada no Norte; lá produzi centenas de trabalhos. No meu portfolio está o Four Seasons de Londres e o Shangri-La de Paris, apesar de nenhuma dessas obras ter sido assinada por mim, porque eu era uma técnica. Seis anos depois, resolvi dar o salto, sozinha.

Não haverá muitas mulheres a trabalhar este material. Porquê?
Em Portugal nunca conheci outra mulher a fazê-lo. É uma área tendencialmente masculina, em grande parte porque está muito ligada à construção civil, estamos a falar de obra, de ‘trolhice.’ Trabalho muitas horas em ateliê, estou sempre suja dos pés à cabeça e é preciso ter algum espírito para isso. O que estou a conseguir mostrar é que esta é uma área que não tem género.

Como conquistou o respeito dos seus pares, masculinos?
Foi visitando os mestres, da Areosa e de Afife, e convidando-os para conhecer o meu trabalho. A primeira reação foi um bocado de incredulidade, mas quando viram o que eu fazia ficaram surpreendidos e de certa forma felizes. E sem dúvida nenhuma que, mesmo apesar da idade, que é outra barreira, há um respeito muito grande entre partes.
O que está acontecer, sobretudo no Norte, é que os estucadores, não tendo a quem deixar o seu legado, porque os filhos não lhes deram continuidade, estão-me a ceder o espólio. Tenho um projeto para o futuro que passa por criar um espaço de memória para estas pessoas. A minha ideia não é, de todo, usar os trabalhos deles ou os moldes; é realmente preservar. Na brincadeira já me chamaram a herdeira do estuque.

Da interação com os pares, há algum episódio que lhe vá ficar na memória para sempre?
Os 6 anos na empresa foram difíceis, porque eu era a única mulher e era a única escultora. Todos os outros trabalhadores eram homens e estucadores. Existe a técnica do estuque e depois há a parte mais decorativa que é onde entra o trabalho do escultor. No entanto, eu fiz questão, durante aqueles seis anos, de aprender a técnica deles para me tornar independente e tive casos graves de machismo.

E como os superou?
Superei-os mostrando o trabalho.

Apesar de ter feito a Faculdade de Belas Artes, o seu trabalho é sobretudo na área das Artes Decorativas. Sentiu, no início, algum tipo de preconceito?
Este meu período naquela empresa foi muito importante, talvez o equivalente a um doutoramento. Meti muito as mãos na massa, que era coisa que não fazíamos na Faculdade de Belas Artes, que é extremamente conceptual. Aquilo que faço hoje não é bem Belas Artes, são Artes Decorativas. Eu fui formatada para uma arte conceptual e de repente estava a fazer artes decorativas. Sentia alguma vergonha. Mas depois de seis anos a trabalhar muito, quando dei o salto pensei: ‘há aqui pano para mangas. Eu posso continuar a fazer isto, desde que o faça bem’. E na verdade, neste momento, sinto que estou a ser bem recebida pelo meus pares que começam a encarar as artes decorativas de uma outra forma.

Quando decidiu deixar a empresa e lançar-se por própria conta e risco estávamos em plena crise…
Sim e eu tinha um salário fixo simpático, mas precisava mesmo de dar o salto. E de repente vejo-me a criar tudo sozinha, toda a produção criativa, técnica, a comunicação…

Nessa altura de transição qual foi o grande desafio/obstáculo?
Foi colocar este tipo de trabalho no mercado e fazer com que o mercado reconhecesse as suas imensas potencialidades. Por sorte, no momento em que me despedi houve um arquiteto do Norte, o Vítor Vitorino, que teve a capacidade de entender este trabalho e arriscar comigo. Portanto, quando saí da empresa já me encontrava a projetar para ele, ou seja, nunca parei nem sequer na fase de transição.

Qual a grande vantagem em ter o seu próprio ateliê?
Uma das maravilhas em ter o meu próprio espaço é poder mostrar o que faço a toda a gente. Faço parte de um grupo em Viana do Castelo que se chama Inauguro. Somos um conjunto de seis espaços que abrem de seis em seis semanas e inauguram uma exposição. Eu costumo convidar um outro projeto para se apresentar o meu ateliê: já fiz lá um jantar com o chefe Pedro Limão, convidei o Peixe, dos Ornatos Violeta, para dar lá um concerto, ateliês de gravura… Este tipo de iniciativas, por exemplo, só acontecem porque agora tenho o meu espaço, que giro como bem entender. Não funciono sob o modelo de empresa, não quero uma produção em série, quero que seja muito cuidado, muito eu. Quero que em cada peça vá a Iva.

Mesmo nas mais comerciais?
Sim, sem dúvida nenhuma.

O que é que realmente a inspira.
É a matéria. É o gesso. É o tentar explorar ao máximo aquilo que o gesso me dá. Tenho peças muito clássicas, outras mais contemporâneas, de art deco e todas elas resultam dessa exploração.

O resultado final corresponde sempre ao imaginado?
Não, porque com o processo de trabalho a coisa vai sendo alterada. Ela não fica como o imaginado, porque há sempre uma evolução neste processo. Às vezes chego a desfazer tudo e recomeço.

Que peça gostou mais de produzir? Porquê?
Talvez o painel para o Sour Seasons de Londres. É um painel tem 15mx8m, é enorme. A primeira vez que o vi montado foi incrível, estava tão estupefacta a olhar para aquele enorme trabalho… Deu-me muito gozo.

Abriu o seu ateliê em Viana do Castelo. Não teve receio de ter pouca visibilidade?
No início pensei: será Porto, será Lisboa? Mas cada vez tenho mais a certeza de que aquela cidade é a ideal para mim. Oferece uma enorme qualidade de vida: tenho o ateliê no meio do campo, na rua onde eu nasci. Sou remadora, ao final do dia pego no meu barco e vou remar. E agora as distâncias estão tão curtas, é tão fácil. De Viana, eu trabalho para o mundo inteiro.

Há a ideia generalizada de que para um artista é difícil desempenhar o papel de comercial. É assim?
Para mim não. Aquilo que eu acho é que temos de dar bom uso às plataformas de que dispomos. Já há um cuidado meu voltado para a comunicação. Não acredito em exposições, aposto nas aberturas de ateliê, em obra e no online. As pessoas chegam a mim maioritariamente através do Facebook.

Por onde andam, agora, as peças com a sua marca?
Quando abri o ateliê queria muito concentrar-me no nosso mercado, apesar de muitos dos meus clientes de Portugal serem estrangeiros. Depois, tenho trabalhos na Austrália – através de uma arquiteta portuguesa, França, Angola e quase cheguei à China!

E onde as podemos comprar?
Elas estão em lojas: na Objetos Misturados, em Viana; na Pura Cal, em Lisboa; na Improviso, em Leiria.

Vive-se bem da escultura, em Portugal?
Vive-se. Mas há que ver o que significa a expressão ‘viver bem’. Eu não sou uma pessoa muito materialista: continuo com a minha casa de 30 metros quadrados e o meu Opel Corsa, feliz da vida. O meu objetivo é viajar. Por isso desde que eu tenha o meu ateliê, que o consiga manter, e possa viajar… estou a viver bem!

O que mais gosta nas viagens?
Comer (risos)! Sou muito curiosa, gosto de descobrir o pequeno restaurante, gosto de falar com as pessoas, estou sempre à procura daquele ateliê, daquele espaço…

Ver-se-ia a fazer outra coisa qualquer?
Sim, a ser bailarina. Gosto muito de música e de dançar.

E a trabalhar com outro material, que não o gesso?
Não. O casamento está feito, sem dúvida nenhuma (risos.) E tenho ainda tanto para fazer. Quero que o gesso seja considerado uma matéria nobre.