Ivan Jablonka:”Num mundo ideal o feminismo seria uma luta comum de homens e mulheres”

Ivan Jablonka

Ivan Jablonka é historiador e sociólogo. Em 2016, lançou um livro que conta a história de Laëtitia, uma jovem de 18 anos, violada e assassinada brutalmente, em 2011. O caso abalou os pilares da democracia francesa e até Nicolas Sarkozy, Presidente da República na altura, o comentou em discursos oficiais. Mas esta é apenas uma das perspetivas deste livro intitulado ‘Laëtitia – Ou o Fim dos Homens’, que ganhou o Prémio Le Monde 2016 e que agora é editado em Portugal, pela Bertrand. Mais do que o crime, interessou ao investigador descobrir e revelar quem foi Laëtitia antes de morrer. “A parte importante da sua existência passou-se quando ela estava viva e não quando já era um cadáver”, disse em entrevista ao Delas.pt, na sua passagem por Lisboa para apresentar a obra. O autor esteve, esta semana, na capital portuguesa no âmbito do Dia Internacional para a Eliminação da Violência contra as Mulheres, que assinala este sábado, 25 de novembro. A violência sofrida por Laëtitia ao longo da vida é a mesma que muitas outras mulheres conhecem e que partilharam com o escritor, através de cartas e emails. É sobre todas as ‘Laëtitias’ que existem no mundo e sobre o que se pode fazer para mudar que se desenvolve a conversa com Ivan Jablonka.

Por que é que quis contar a história de Laëtitia Parrais?
Bom, como qualquer outro francês eu “conheci” a Laëtitia na sua morte. Quando eu ouvi o seu nome pela primeira vez ela já estava morta e foi revoltante para mim imaginar essa jovem mulher está confinada ao seu estatuto de morta, como se o mais importante da sua existência não tivesse sido a sua vida, mas a sua morte. Então senti a responsabilidade de a retirar da sua morte, contar o que foi a sua vida para lembrar que a parte importante da sua existência passou-se quando ela estava viva e não quando já era um cadáver. Senti essa ligação a ela e a vida dela foi interessante de um ponto de vista histórico, porque ela foi uma criança institucionalizada e adotada e eu escrevi muitos livros sobre crianças abandonadas e adotadas. Além disso, ela representou a violência masculina, porque a sofreu ao longo da sua vida. Por isso, para mim como historiador, havia essas duas dimensões históricas: a vulnerabilidade de uma criança e a violência contra as mulheres. E, por fim, senti-me ligado à Laëtitia porque ela era uma boa pessoa, de quem os outros gostavam logo à primeira vista e eu quis captar essa luz interior que ela tinha e trazê-la para o meu livro.

Normalmente na ficção e na não-ficção, nestes casos de homicídio ou de violência, focamo-nos no agressor e no crime em si. Por que é que esquecemos as vítimas?
Em primeiro lugar, não quero usar a palavra “vítima” para a Laëtitia. É claro que ela o foi e foi-o até à sua morte. Se eu disser vítima volto a colocá-la sempre na sua morte. Portanto, não quero dizer vítima porque ela foi muitas outras coisas. Preferia usar a palavra “ausente”, alguém que já cá não está para contar a sua história. Até porque ela própria não se via como uma vítima. Teve uma infância e uma vida difíceis, mas era uma guerreira, uma sobrevivente de toda aquela violência. Claro que do ponto de vista judicial era uma vítima. Agora, muitos livros focam-se no homicídio e nos assassínios e passa-se o mesmo com os historiadores. Muitas vezes história é a narrativa dos assassinos, dos genocídios, das guerras. Frequentemente lembramo-nos de quem mata e não das suas incontáveis vítimas. Por isso quis reverter essa perspetiva e prestar atenção a quem está ausente, à Laëtitia. E, além disso, Laëtitia era uma mulher e na História as mulheres são muitas vezes silenciadas, porque ninguém lhes prestava realmente atenção, eram vistas como seres menores, como pessoas menos importantes. Por isso, temos menos documentos e arquivos sobre mulheres do que temos sobre os homens. Dedicar um livro a esta mulher anónima e desconhecida foi uma forma de inverter essa realidade, de lidar com a sua perda e de prestar atenção às mulheres, em vez de a nos focarmos nos homens. A única heroína do meu livro é a Laëtitia.


“Até certo ponto, a Laëtitia corporiza a França. Pelo crime, e pelo que gerou no Estado, e pela sua vida e no que esta diz sobre a experiência diária das mulheres.”


E como se transforma uma “vítima” – ainda que prefira outra palavra para a Laëtitia – numa heroína?
Bom, simplesmente fiz o meu trabalho e o meu trabalho é reunir provas, fontes, documentação para tratar vidas que não são conhecidas. E é exatamente essa a definição do que é a História, a narração de vidas que já desapareceram. Para a Laëtitia juntei provas, por exemplo velhos testemunhos, encontrei-me com antigos familiares dela – a irmã, os pais -, com amigos, namorados, encontrei-me com os atores do caso criminal – advogados, juízes, procuradores, polícias –, tive acesso a ficheiros, à sua conta do Facebook, ao seu arquivo na Segurança Social e, em 2015, estive no julgamento do seu assassino. Toda essa documentação oral e escrita é uma maneira de contar a história de uma vida humana.

Ivan Jablonka tem também vários livros editados acerca do abandono e da violência sobre as crianças.

 

As mulheres, além de vítimas, esquecidas muitas vezes, são frequentemente culpabilizadas pelos crimes de que são alvo (violência doméstica, abusos, violação, homicídio).
Sim, é algo que é muito perturbador, porque não só as mulheres são constantemente vítimas de violência física, sexual e verbal, mas enquanto vítimas ainda é suposto que sejam culpadas do crime que sofreram. E isso tem um efeito muito perverso. Em vez de se combater essa discriminação, desigualdade e injustiça, questionamo-nos se a mulher não será um pouco culpada.

Qual é a responsabilidade que os homens devem ter para mudar isso, uma vez que são na maioria das vezes os agressores?
Diria que entre os homens, e falando grosso modo, há dois grupos. Há um que é a parte culpada, onde se encontram os violadores, os assassinos, os abusadores e, demasiadas vezes, o segundo grupo inclui homens que são inocentes mas que não prestam a devida atenção ao que acontece. Não são culpados, não violentos mas são frequentemente indiferentes. Depois há outro subgrupo composto por homens que são conscientes do que se passa e que combatem essa violência. Não apenas porque essas violências podem recair sobre as suas próprias mãe, irmãs, esposas e filhas, mas simplesmente porque são uma questão de direitos humanos. Não falo dos agressores porque essas apenas merecem ser julgados e condenados, falo dessa maioria silenciosa que é indiferente, que sente que o feminismo é dirigido contra todos os homens, o que não é verdade. O que é importante é percebermos o que é que entendemos como feminismo. Para mim, sou feminista, se isso significar a necessidade de alcançar a igualdade e a igualdade de oportunidades e de lutar contra a violência e a discriminação. Mas há feministas radicais que dizem que os homens são todos igualmente culpados, ou que a cultura da violação está em todas as sociedades, o que para mim não é justo se se tiver em conta que há homens inocentes e tão diferentes. Além disso, há mulheres que também não são feministas de todo.

Sim, é verdade.
Tal como no século XIX , hoje há mulheres que continuam a dizer que o lugar de uma mulher é na cozinha, a tomar conta dos filhos, em casa. Não é possível ignorar essa conceção e primeiro temos de prestar atenção para o que essas mulheres estão a dizer quando estão a manifestar essa vontade de ficar em casa a tomar conta dos filhos e do marido. E no segundo momento, podemos expressar a nossa maneira de ver o feminismo. Num mundo ideal o feminismo seria uma luta comum de homens e mulheres.

Voltando a Laëtitia, foi um caso que não foi nada esquecido, nem “silenciado”. No livro diz que se tornou um assunto de Estado, em França. Porquê?
Porque dias depois do seu desaparecimento, o presidente francês na altura [Nicolas Sarkozy] interveio publicamente, em dois discursos, para dizer que a lei devia ser mais dura e que os juízes eram igualmente culpados, porque libertaram “o monstro” [o homicida]. Depois dessas acusações, os magistrados franceses protestaram nas ruas, porque estavam cansados de todos esses ataques. E foi assim que o caso de Laëtitia se tornou um assunto de Estado, porque abanou os três pilares da nossa democracia: os media, o governo e a justiça. Como historiador, isso foi fascinante para mim, não a morte da jovem, claro, mas ver como um crime específico foi usado para tornar as leis cada vez mais duras, a mistura entre as emoções e a lei, ou a instrumentalização do medo, como se os cidadãos não estivessem rodeados de concidadãos mas de criminosos e assassinos. Por isso quis estudar o crime de esta perspetiva histórica e política e o que diz da nossa sociedade.

E o que é que o caso de Laëtitia diz da violência contra as mulheres em França?
Em França, 123 mulheres foram mortas em 2016, pelos seus companheiros ou ex-companheiros. Penso que em Portugal o número é cerca de 40 [43 foi o número de mulheres mortas em 2014] e comparando os dois valores com o número de habitantes dos respetivos países, a taxa portuguesa é pior. Se virmos a vida da Laëtitia do início ao fim, podemos perceber quantos tipos de violência masculina ela sofreu. Quando ela tinha três anos, o pai violou a mãe, depois foi enviada para uma família adotiva e voltou a haver abusos sexuais e, por fim, ela é assassinada com 18 anos. Tanto como vítima, como como testemunha de violência masculina contra as mulheres, ela simboliza o que acontece regularmente na sociedade francesa. Vivemos num mundo onde as mulheres são recorrentemente assediadas, agredidas, violadas e mortas. Felizmente nem todas são assassinadas, mas há muitas Laëtitia no mundo. Em Portugal, podem chamar-se Rita ou Maria.


“Talvez a diferença entre França e Portugal seja a lei. E também outra coisa: em França, a maioria dos juízes são mulheres. 70% dos juízes ou procuradores são mulheres.”


O facto de alguém crescer a ver esse tipo de abusos e a sofre-los, como Laëtitia, faz com que essa pessoa seja uma vítima no futuro?
Sim. Quando se é vítima de violência – não necessariamente violência masculina, mas dos pais, da sociedade, vítima de violência física -, desde nascença, está-se mais predisposto a sê-lo mais tarde. E foi o que aconteceu a Laëtitia, que andou todo o dia atrás do homem que a acabaria por matar. E a polícia questionou-se porquê? Por que é que esta rapariga, que não era estúpida, que já tinha atingido os 18 anos, fez isso. E a razão é que o seu sistema defensivo tinha sido desativado por toda a violência anterior. E a triste verdade é que aquele homem, nesse dia não era pior que os outros. Era como os outros: ao mesmo tempo, carinhoso, meigo, manipulador, violento e violador. Como os outros [que ela conhecia] e por isso é que ela foi com ele.

E como é que se rompe esse padrão?
Não sei e é essa a parte pessimista do livro – a parte positiva é que a irmã da Laëtitia está bem, conseguiu emancipar-se e é hoje uma mulher independente. Mas a parte negativa é a de que há um círculo de violência de pais para filhos e depois dos filhos para os netos. No caso de Laëtitia juntaram-se a isso fatores sociais e a questão da pobreza. Se soubesse como se quebra o padrão ganharia o Nobel da Paz. Mas daquilo que tenho estudado sobre o abandono e da violência ao longo do século XIX, talvez a reposta seja mais e mais Estado social, mais apoio público para ajudar as pessoas. Provavelmente, não será o Estado social, em particular, a erradicar a violência física e social, mas criar consciência entre as pessoas, especialmente nos homens, e ouvir as vítimas, tornar as leis e as investigações mais efetivas, todas essas iniciativas poderão indicar o caminho certo.


“Quando se é vítima de violência – não necessariamente violência masculina, mas dos pais, da sociedade, vítima de violência física -, desde nascença, está-se mais predisposto a sê-lo mais tarde. E foi o que aconteceu a Laëtitia, que andou todo o dia atrás do homem que a acabaria por matar.”


Sentiu que o seu livro fez diferença nessa consciencialização em França?
Não acho que um livro só possa mudar as coisas, mas o sucesso do meu livro talvez fosse uma pista para perceber que as coisas estão a mudar. Quando ele saiu, em 2016, recebi muitas cartas, emails, ou mensagens no Facebook, de mulheres que depois de o lerem decidiram contar-me as suas experiências. Descobri tantas histórias de abusos ou de violência. E um ano depois aparece o #metoo em todo o mundo. Tive a sensação que esse movimento já estava presente nessas mulheres que me escreveram e que estavam a dizer “comigo também” (#metoo), ainda que de forma privada.

E o papel da justiça? Em Portugal, houve recentemente o caso de um juiz que condenou a pena suspensa os dois agressores de uma mulher, porque ela tinha cometido adultério, que não é crime, atenuando o comportamento dos primeiros com considerações morais e religiosas sobre a atitude da segunda. Isto gerou muita controvérsia na sociedade, mas não altera a decisão judicial.
Não sou especialista no sistema judicial português, mas sei que em França isso não aconteceria. Não consigo imaginar um juiz a condenar a vítima em vez do agressor. Claro que há outros casos. Há mulheres que são violadas, vão à esquadra e a polícia não quer aceitar a queixa, alegando isto ou aquilo. Existe esse tipo de abusos. Talvez a diferença entre França e Portugal seja a lei. E também outra coisa: em França, a maioria dos juízes são mulheres. 70% dos juízes ou procuradores são mulheres. Não sei se é a solução – talvez seja –, mas é provável que num sistema judicial onde há uma maioria de mulheres, haja mais consciencialização.