Jessica Silva: “Quero estar e ser distinguida entre as melhores do futebol feminino”

Não pode garantir que gosta de jogar à bola desde que nasceu, mas certo é que, pelo menos, desde os dois anos que há provas fotográficas que documentam que Jessica Silva aproveitava todos os objetos que pudessem assemelhar-se a uma bola para dar uns pontapés.

As bonecas da irmã gémea desta atleta do futebol feminino foram, provavelmente, as primeiras vítimas do talento da extrema que foi convocada para integrar a seleção nacional de futebol para Europeu de 2017, que está a decorrer na Holanda, mas que foi substituída devido a uma lesão no joelho esquerdo e que contraiu durante um treino.

Está triste, é claro, mas conta que ter sido convidada pela Eurosport para comentar os jogos da equipa das quinas, na fase de grupos, a está a ajudar a superar esta fase. Portanto, este domingo, 23 de julho, pelas 17h00, vai poder ouvir e conhecer Jessica Silva, filha do já falecido jogador do Belenenses, Valter Silva.

Diz-se “mimalha”, próxima da família – o que lhe valeu muitas lágrimas quando, aos 18 anos, foi para Suécia jogar -, mas sabe muito bem o que quer.

A dias de se mudar para Valência, Espanha, onde vai jogar pelo Levante UD Femenino, Jessica Silva – que acaba de deixar o Sporting de Braga – sabe que quer “marcar a sua geração do futebol feminino”. Como Cristiano Ronaldo tem feito na dele.

Até a lesão, que implica cinco semanas de fisioterapia, é igual: “Tenho exatamente a mesma lesão que o Ronaldo teve na final do Europeu, mas a dele foi um grau acima da minha. É muito comum e não vai comprometer a minha época”.

Conheça esta atleta de 22 anos, já galardoada como a melhor jogadora do campeonato nacional e natural de Vila Nova de Mil Fontes.


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Vai comentar o jogo da seleção portuguesa frente à Escócia na Eurospport [domingo, 23 de julho, às 17h00, transmitido também na RTP]. O que significa isto para quem já esteve convocada para o Europeu e foi afastada devido a uma lesão?

Vai ser uma experiência diferente. De facto, preferia mil vezes estar mais perto delas, mas, no fundo, acaba por ser gratificante ter recebido este convite, fiquei muito feliz porque é uma forma de me sentir ainda mais perto das minhas colegas. E ajuda-me a ultrapassar, um bocado, esta situação de estar fora deste Europeu.

O que se sente? Frustração?

É um misto de sentimentos, porque quando estiver a ver o jogo e saber que tive a oportunidade de estar lá, de viver aquela atmosfera e não estar nesta fase final que é especial – e será sempre porque foi a primeira vez que nos qualificamos para um campeonato desta natureza – acaba por ser um bocado frustrante. Por outro lado, comentar o jogo delas vai dar-me algum orgulho (sorriso).

É a sua primeira vez como comentadora?

Sim. Nem sou muito de dar palpites, nem no campeonato nacional. Mas é muito diferente estar a comentar o trabalho delas.

O que acha importante explicar às pessoas sobre futebol feminino?

É diferente do futebol masculino

Que exemplos concretos pode dar?

A realidade competitiva é muito diferente. Só a nível de ranking das seleções, a nossa masculina está muito bem posicionada e é das melhores do mundo, e nós, a feminina, somos humildes – não gosto muito de utilizar esta palavra -, estamos conscientes das nossas dificuldades, mas cientes do que somos capazes de fazer. É preciso tentar fazer com que as pessoas percebam qual é o e enquadramento da nossa seleção feminina. Jogámos contra a Espanha e, se calhar, toda a gente achava que ia ser um jogo equilibrado, mas sabemos que é a seleção favorita a ganhar o Euro, assim como a Inglaterra. Mas nós também temos a nossa qualidade, os nossos pontos fortes.

Voltando atrás, não gosta de usar a palavra humildade. É só a palavra mais usada no futebol e nas flashinterviews.

Acho que pode não demonstrar o devido valor das pessoas. Ser humilde significa algo diferente daquilo que a maioria das pessoas usa, por vezes como sinónimo de inferioridade. “Nós temos o nosso valor, elas têm o delas”, isso para mim é humildade. E não ser inferior.


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Portugal-Escócia. Que expectativas tem?

São dois jogos muito importantes. A Escócia está mais perto de nós no ranking, mas vai ser um jogo difícil. Ainda assim, sinto que a equipa tem argumentos para entrar para ganhar.

Que argumentos?

Qualidade e valor. A seleção escocesa é uma equipa muito boa, com jogadoras com boas referências, é uma equipa possante, muito agressiva, mas sinto que somos capazes de contrariar as dificuldades.

É possível sair com vitória ou empate?

Sim, acredito. Não vai ser fácil, mas acredito.

E a Inglaterra [quinta-feira,27 de julho, 19h45, com transmissão na RTP e Eurosport]?

Bom, bom, era vencê-las. Mas isto é jogo a jogo. A nossa missão é mostrar que não viemos ao Europeu porque tivemos sorte ou porque fomos a play-offs, estamos por mérito, por valor.

Que tipo de impacto pode a derrota com a Espanha ter deixado na seleção nacional?

Claro que estávamos preparadas para a dificuldade daquele jogo. Deixamos tudo em campo, mas se calhar conseguíamos ter sido um bocadinho melhores.

Em quê?

Foi o primeiro jogo, é sempre complicado. Mas também é o primeiro para as duas equipas, embora para nós fosse uma estreia. Se calhar, as situações de golo que acabaram por ser criadas por elas, se calhar, como equipa, tivemos demérito nos dois erros defensivos que geraram dois golos.

( Paulo Spranger / Global Imagens )

O que acha mesmo importante explicar às pessoas sobre o futebol feminino em Portugal?

É preciso explicar-lhes que é um jogo rápido, onde há qualidades, muito boas jogadoras, futebol bem jogado, e é isso que as pessoas precisam de entender. Acredito que a ideia de que o futebol é só para homens já está a desaparecer, mas Portugal ainda é uma realidade muito pequena e há muito esse pensamento: ‘Ah, elas são lentas!’ e ‘ah, elas parecem umas galinhas a correr atrás de uma bola’. Sugiro que vejam um jogo do da nossa seleção no Europeu.

Somos uma sociedade machista a esse nível?

Hum… acho que já foi mais. A mentalidade está a mudar aos poucos. Também tem havido um apoio grande por parte da Federação que, em ações de sensibilização, tem levado a que as pessoas percebam do que somos capazes. Foi uma campanha feita de forma muito agressiva, mas acho que ajuda toda a gente a perceber melhor.

Quando o Algarve Cup teve lugar, as jogadoras suecas envergaram T-shirts com mensagens feministas. A Jessica jogou na Suécia [Linköpings FC, de julho a dezembro de 2014]. Eles também são machistas para com o futebol feminino? É uma realidade mais global?

Talvez possa haver um pouco de preconceito relativamente às mulheres.

Mas há a ideia de que a igualdade de género nos países nórdicos está mais à frente do que nos do sul.

A realidade é completamente diferente e nunca senti qualquer tipo de preconceito.

Então porque tomaram aquela iniciativa?

Não sei, talvez possa ter sido uma forma de comunicação. Eu não senti na pele e acho que a Suécia está muito mais à frente do que nós nesse sentido. Notei diferenças no tipo de infraestruturas, nos recursos humanos que disponibilizam para as atletas, na Suécia.

Os salários são igualmente desiguais?

Não sei dizer. Creio que isso é transversal. Acho que só nos Estados Unidos da América é que se está a aproximar.

Mas foi preciso uma decisão judicial.

Exatamente.

Em Portugal, há a realidade dos jogadores e das jogadoras: os salários, os campos, os horários dos treinos. Calculo que os balneários sejam os mesmos…

Não. Também não. Os balneários não são os mesmos. Eu estive a jogar no Sporting de Braga e a realidade lá até um pouco diferente da que se vive no resto do país. Nós temos dois clubes grandes em Portugal a aturar na Liga de Futebol: o Sporting e o Sporting de Braga. Mas só esses dois clubes estão mais perto de dar as mesmas condições às atletas.

E o Benfica? E o Porto?

(Sorriso) Não têm. Mas no Braga não me posso queixar. A equipa B masculina tinha as mesmas condições que a equipa feminina.

Pois, mas a B não estava na primeira liga como estava a equipa feminina.

Sim, mas no Braga não havia essa distinção. O presidente [António Salvador] sempre nos aproximou muito da realidade masculina. Não em termos salariais, mas ao nível das infraestruturas, tentou sempre dar-nos as melhores condições. Treinamos muitas vezes no relvado, mas também treinávamos no sintético. Em Portugal, há dois grandes, mas há mais dez equipas em competição e acho importante falar delas. Eu sou profissional, mas há muito mais colegas que sonham chegar a esse nível e não conseguiram. Eu comecei num clube pequeno, com muito poucas condições orçamentais, e eu gostava de puxar por esses.

Consegue viver só da bola?

Sim. Consigo. Se se está em Portugal e se se é profissional da bola, consegue-se viver. Mas o futebol feminino em Portugal é amador e as jogadoras, para serem profissionais, deveriam poder treinar a horas. Muitas vezes, elas saem dos seus trabalhos e vão treinar às oito ou nove horas da noite e no dia seguinte têm de ir trabalhar. As masculinas treinam durante o dia e podem descansar. Na maior parte dos clubes portugueses femininos, as atletas ou estudam ou trabalham. Não há ninguém que esteja no futebol apenas.

( Paulo Spranger / Global Imagens )

E agora, caminho do Levante UD, em Valência, o que espera?

É uma liga mais competitiva, rápida, com muita técnica, com jogadoras muito boas e o futebol está em ascensão. Houve um investimento muito grande nas últimas duas épocas, com a entrada de patrocinadores e com a profissionalização da Liga. Eu tenho algumas ambições, quem me conhece sabe que sou uma pessoa muito ambiciosa e sabe que eu quero marcar a página do futebol feminino português.

Que objetivos pessoais tem em mente?

Quero ser uma profissional de referência no mundo de futebol – nacional e internacional-, não quero ser mais uma jogadora. Quero estar e ser distinguida entre as melhores do futebol feminino. Tenho boas referências a nível nacional e que são também a nível internacional como a Cláudia Neto [capitã da seleção nacional], que já esteve na lista das melhores jogadoras. Não me equiparo a Ana Borges [número 9 da seleção], mas a nível pessoal e futebolístico é uma referência para mim. Ela está a fazer mito pelo futebol feminino, tem muita experiência, faz a minha posição em campo [extremo] e sempre me ajudou. Mesmo quando cheguei à seleção A, foi ela quem me acolheu e protegeu.

Portanto, isso contraria a ideia de as mulheres são muito competitivas entre si e se boicotam.

Exatamante (sorriso).

A Jessica está na mesma posição em campo que o Cristiano Ronaldo.

Sim (risos). Mas vê-las, a essas jogadoras, é inspirador. Quero ser também uma referência a nível internacional. Adoro o Ronaldo, é o melhor do mundo. E como o Ronaldo marcou, também eu quero marcar a minha geração do futebol feminino. Agora, a nível colectivo, quero muito ajudar o Levante UD a conseguir os objetivos e, a nível da seleção nacional, quero ajudar a chegar longe e a conquistar mais uma fase final, neste caso o Mundial (sorriso).

Como é que despertou para o futebol?

Desde muito pequena que gostava de bola, tudo o que fosse redondo me interessava. Se fosse para o quintal e tivesse uma laranja ainda verde, dava-lhe pontapés. Fazia isto sozinha.

Tem irmãs?

Tenho uma irmã gémea, mas ela sempre foi mais dada às bonecas. Eu gostava de arrancar a cabeça das barbies (risos).

Para dar chutos?

Possivelmente (risos). E a dos nenucos, que eram maiores e davam para dar mais chutos (risos). Houve algumas chatices (mais risos). Mas somos seis irmãos e nós, as gémeas, somos as mais velhas. Temos mais dois rapazes, também jogadores de futebol. Um deles tem 19 anos e este será o primeiro ano sénior e ainda não sei se vai assinar um contrato profissional. O mais novo, o Gabriel, de dez anos, assinou pelo Sporting de Portugal este ano.

Há aí talento na família…

(Sorriso) Pois. O meu falecido pai foi jogador da bola, foi profissional: Valter Silva, jogou no Belenenses, mas teve um azar, um acidente muito grande e teve depois muitos problemas. Acho mesmo que nasci com isto da bola e acredito que tenha sido uma dádiva do meu pai. Era muito nova quando ele faleceu. Gostava muito que ele e o meu avô estivessem perto para me poderem acompanhar e para verem que eu tinha conseguido ser profissional. Tenho a minha avó que gosta muito de ver a neta na televisão. Vou continuando a minha caminhada, sempre ambiciosa.

Para lá do futebol, o que será o futuro?

Acredito que a minha profissão será depois no mundo do desporto, mas é uma formação que posso fazer mais tarde. Não sei o que farei amanhã e, quem sabe, se em Espanha consigo conciliar… Mas nunca me vi como treinadora de futebol. Já me vi a treinar em atletismo, é-me mais fácil ver-me a treinar alguém nessa modalidade.

Porquê?

Porque comecei no atletismo, que sempre gostei muito. Foi já na zona de Aveiro que comecei a praticar desporto. Primeiro atletismo e depois futebol, no Ferreirense, que nem sabia que tinha equipa feminina. Depois, fui para o Albergaria e as coisas começaram a ser muito rápidas. Fui logo convocada para a seleção sub-19 no meu primeiro ano de futebol. Comecei a levar as coisas mais a sério e acreditar que podia ser profissional um dia. Aos 18 anos, estive na Suécia, mas foi muito complicado. Sou muito mimalha, agarrada à família e foi um período difícil para mim. Voltei depois para o Albergaria e, na época passada, fui para o Sporting de Braga. Agora estou a caminho de Valência.

( Paulo Spranger / Global Imagens )

Como mulher, que cuidados tem antes de entrar em campo?

(Risos) Ah, tenho alguns. Passo sempre lápis preto nos olhos antes de entrar no campo. E tenho sempre as unhas pintadas ou de vermelho ou rosa mais choque. Até entre nós existem por vezes graças – embora agora nem tanto – de que quando alguém se arranja, pergunta-se se vai para a passerelle. Mas tenho alguns cuidados. Não é que ache que tenha o dever de desmistificar esta ideia de que as futebolistas são todas masculinas, mas também não somos todas assim. As mulheres não devem ter problemas em mostrar a sua sensualidade, a sua beleza. Sou um bocado feminista, não sou ativista, mas lá por ter decote, não quer dizer que me esteja a fazer ao gajo ali à frente. Não, eu gosto do meu decote, eu tenho os lábios pintados porque acho giro e sou um assim. Tenho alguns cuidados comigo.

E com o equipamento?

No futebol, tenho até algumas particularidades. Adoro os calções mais justinhos. Na nossa seleção – e isso não acontece em todos os clubes – os equipamentos para as mulheres são diferentes, são mais cintados. Nós temos os calções femininos, mas eu ainda dou mais três dobras na cintura porque é assim que eu gosto. E oiço comentários como ‘usas calções dos Sub15?’ (risos).

E para as flashinterviews também se arranja?

Não apareço despenteada, arranjo-me sempre. À entrada do jogo tenho até algum cuidado. Dizem que a maquilhagem é a prova de água, mas nunca funciona (risos). Há muitas raparigas assim no futebol e sei que cada vez há mais.

Imagem de destaque: Paulo Spranger/Global Imagens