Joana Espadinha: “Se quero um príncipe encantado não sou menos feminista por isso”

Joana Espadinha_Túnel (por Joana Linda) (2)
Fotografia: Joana Linda

margin: 2cm } P { margin-bottom: 0.21cm } -->

‘Leva-me a dançar’ é o single que serviu de ponto de partida para o novo disco de Joana Espadinha, ‘O Material Tem Sempre Razão’. Um tema feminino, ‘cliché’ das expectativas mais cor de rosa – “se o amor é sério, leva-me a dançar primeiro”, diz a letra da canção – anti-rótulo, ao mesmo tempo, daquilo que é suposto ser mulher nos dias de hoje, quando se é também cantautora e artista. “O mais importante é tirar os rótulos, perceber que homens e mulheres podem ser o que quiserem, mais cliché ou menos cliché. Se quero um príncipe encantado e que alguém me leve a dançar, não sou menos feminista por isso”, diz em entrevista ao Delas.pt, Joana Espadinha, em vésperas de lançar o disco.’O Material Tem Sempre Razão’ é editado na sexta-feira, 28 de setembro, mas antes é apresentado em palco, com dois concertos, no Cinema Passos Manuel, no Porto, esta quarta-feira, dia 26, e no Teatro do Bairro, em Lisboa, no dia seguinte.

“Gosto de falar sobre personagens, histórias que conheci, imaginei, ou vi num filme. Isso acontece em duas ou três canções. Há outras coisas que são autobiográficas, que tem a ver com a forma como vivi as minhas relações”, descreve a artista de 34 anos, que participou no último Festival RTP da Canção, com o tema ‘Zero a Zero’, composto por Benjamin, músico e cantor que produziu este disco.

Compor e escrever canções pop, para quem fez escola no jazz, a influência de Lena d’Água, as confusões de parentesco com Vítor Espadinha e os desafios neste caminho de crescimento artístico, pessoal e de género foram outros dos assuntos que guiaram a conversa.

Joana Espadinha fotografada por Joana Linda, que realiza o vídeo do segundo single, ‘Pensa Bem’.

O seu primeiro disco chama-se ‘O Material Tem Sempre Razão’, que é também nome de uma das canções. Diz que é inspirado na expressão que ouvia muito ao seu pai, mas diz que representa igualmente ‘esta viagem de ser artista e mulher nos dias de hoje’. Que viagem é essa?
É uma viagem de lidar com as expectativas que se tem e que estão completamente presentes na sociedade nos dias de hoje. E aquelas expectativas que nós mulheres temos, aquela coisa dos contos de fada, das comédias românticas, das coisas que têm “target” feminino…O que é que é isso de ser mulher? Mulher pode ser tantas coisas diferentes. Por um lado, acho que este disco tem essa visão do que significou para mim toda este processo de escrever a música, de perceber o que o público quereria, mas ao mesmo tempo sem querer comprometer aquilo que eu sou e aquilo que eu gosto de fazer. Trata-se de um processo pelo qual passei que me levou à conclusão, mais uma vez, de que não posso ser outra coisa do que aquilo que sou, embora queira constantemente evoluir e melhorar.

Como é que este disco apresenta a Joana Espadinha, como é que reflete esse compromisso entre o que é e o que o público pode querer?
Eu sou essencialmente uma cantautora, uma pessoa que vive da sua criatividade, de um olhar atento do que se passa à sua volta e que ao mesmo tempo tem este lado autobiográfico: a forma como vive as relações e as expectativas de vida. Acabo por sentir que se esse retrato for – e eu acho que foi – fiel reflete uma rapariga que já não é uma miúda, mas que ainda não é uma mulher madura, que quer ter um espaço para ser ouvida, que ainda está aberta a mudar de opinião e a ser surpreendida pela vida, mas que já tem alguma coisa a dizer.

E ser uma mulher e ao mesmo tempo artista, que desafios é que essa “viagem”, como diz, lhe tem trazido?
Tenho a sorte de estar muito bem acompanhada e ser muito bem aconselhada com as pessoas com quem trabalho. Há uma preocupação, e acho que isto acontece mais com as mulheres, com o lado da imagem e, por um lado, se queremos ter uma boa imagem, por outro, às vezes, infelizmente, isso faz com que quem vê teça um preconceito sobre o que é que aquela pessoa é. Parece que uma pessoa para ser valorizada como compositora não pode ser a miúda pop demasiado embonecada. A imagem tem um peso um bocadinho maior na mulher artista, embora as coisas estejam a evoluir e há também mais mulheres a escrever, tinham menos voz, e isso marca realmente uma diferença.

“o disco reflete uma rapariga que já não é uma miúda, mas que ainda não é uma mulher madura, que quer ter um espaço para ser ouvida, que ainda está aberta a mudar de opinião e a ser surpreendida pela vida, mas que já tem alguma coisa a dizer.”

Os videoclipes deste disco são de facto coloridos, com uma imagem muito pop, com brilho, embonecada, como disse. Essa Joana Espadinha que vemos neles é muito diferente da Joana Espadinha pessoa?
Acho que sou uma pessoa bastante alegre. A música que eu escrevi para este disco levou-me a ser um bocadinho mais exuberante, se calhar, do que era. E acho que isso não foi uma cedência, foi um caminho natural. Acho que deve transparecer a alegria e a leveza que algumas das canções têm. E também tem a ver com as canções que foram singles. O ‘Leva-me a dançar’ e, particularmente, o ‘Pensa bem’, que foi filmado numa espécie de feira popular.

O ‘Leva-me a dançar’ foi a primeira canção que terminou de gravar. O vídeo foi lançado no Youtube em janeiro deste ano. Quando é que começou a fazer o disco?
Começou muito atrás. Houve várias fases no processo de composição. Eu decidi que ia escrever este disco em português. Não tenho muito presente as datas, mas tenho a sensação no verão de 2017, passámos esse verão todo a fazer a pré-produção. Portanto, há canções neste disco que eu escrevi já há dois verões. Foi um processo longo, de escolher as canções, de as transformar e depois o processo de produção com o Benjamim, de olhar para as canções e de perceber a estética que ia fazer sentido. Ainda demorou bastante tempo até lançarmos esse primeiro single, no início deste ano.

Diz que essa é uma canção especial que abriu caminho para o resto do disco. De que forma?
Porque marcou uma fase. Eu já escrevo música há tempo, mas comecei a procurar escrever canções que fossem mais compactas, e eu acho que, no fundo, as canções pop são isso mesmo. Ou seja, estava a procurar a canção pop ideal para mim, sem pontas soltas, que não tem nada a mais. E porque eu estava habituada a escrever jazz, ou folk, ou inspiradas na MPB, foi um processo muito novo para mim escrever as canções deste disco – que eu sinto que são as que eu quero cantar e quero escrever. E o ‘Leva-me a dança’ foi a primeira em que eu senti que isso aconteceu. Mas como era uma coisa nova para mim e tinha, se calhar, uma letra mais naif, estava muito receosa e quando mostrei a canção ao Benjamim, ele adorou e foi a primeira canção na qual trabalhámos. E quando acabámos de gravar, olhámos um para o outro, e dissemos: ‘É por aqui que este disco se vai construir, é este o som que nós queremos’. A partir daí também ganhei confiança naquilo que estávamos a fazer e isso tornou o processo mais fácil ainda.

“A música que eu escrevi para este disco levou-me a ser um bocadinho mais exuberante, se calhar, do que era. E acho que isso não foi uma cedência, foi um caminho natural.”

Participou no Festival RTP da Canção com o tema ‘Zero a Zero’, com composição, precisamente do Benjamim. Isso trouxe-lhe mais público para a sua música? Que tipo de reações é que teve?
É inevitável que esse tipo de exposição mediática traga mais público. Eu acho que há muita gente que me conhece hoje em dia por causa do festival e estou muito grata ao Benjamim por me ter dado essa oportunidade. Foi uma experiência muito rica. E eu adorei. Não vou dizer que foi sempre fácil, porque ainda não trabalhei muito com televisão, fiz algumas coisas mas espero vir a fazer mais. Mas era um mundo relativamente novo para mim, portanto foi uma aprendizagem muito grande.

Essa música que levou ao festival acabou por ser composta durante o processo de criação do disco, ou foi feita à parte?
Houve um cuidado grande do Benjamim que casasse bem com as canções que escrevo. Essa canção é inteiramente dele e ele convidou-me para o festival e disse-me que tinha tido em consideração a estética das canções do meu disco para que elas funcionassem bem juntas, tanto que vou cantar essa canção no concerto ao vivo. Porque realmente ela funciona, apesar de não ter sido escrita por mim.

Ponderaram inclui-la no disco?
Ponderámos, mas o disco já estava mais ou menos fechado e acabámos por achar que não fazia sentido, até porque ela saiu numa coletânea do festival. Mas é uma canção de que gosto muito. Aliás, eu tenho grande admiração pelo Benjamim e adorei trabalhar com ele. Hoje em dia posso dizer que é um grande amigo, por isso tenho um carinho grande por essa canção.

Mas a vossa relação de parceria começa mais atrás…
Começa quando eu fui ter com ele para produzir o meu disco. Tinha algumas referências, tinha ouvido coisas que ele tinha produzido, conhecia o trabalho dele como cantautor, por isso achei que seria a pessoa indicada para fazer esse trabalho de produção. Mas quando trabalhamos tanto tempo com uma pessoa e percebemos que temos também coisas em comum, inevitavelmente, a amizade cresce e foi isso que aconteceu.

Com uma carreira já longa, sobretudo no jazz, Joana Espadinha tornou-se mais conhecida do grande público pela participação no Festival da Canção. [Fotografia: Joana Linda]
A influência da Lena d’Água é uma das mais imediatas quando se ouve o seu disco, sobretudo os singles. É uma influência recente, resultante de um certo revivalismo em torno da Lena d’Água e da música pop dessa altura, ou também ela vai mais atrás?
Não foi inteiramente consciente. Isto para mim é um elogio enorme porque eu adoro a Lena d’Água e é uma das minhas cantoras de referência. Ela, aliás, fez muita coisa e também cantou jazz. É uma cantora muito completa, que tem uma voz que não envelhece. Acho que não precisamos de uma segunda Lena d’Água, mas é uma referência inevitável porque é uma cantora e uma voz da pop, da canção portuguesa. Diria mesmo, das melhores vozes da pop portuguesa de sempre. Acho que é inevitável que ela me tenha influenciado de alguma maneira.

Como é que uma cantora com uma carreira iniciada no jazz passa para uma sonoridade tão pop?
Eu cresci nos [anos] ’90, portanto tenho muito a referência das cantautoras dessa altura: a Sheryl Crow, a Alanis Morissette. Gosto muito da música que foi feita nessa altura. E quando fui estudar música é que acabei por ter contacto com o jazz e mergulhar no jazz. Não foi uma coisa que ouvisse em casa. Em casa, se calhar, ouvia cante alentejano, porque a minha família é alentejana, Dire Straits, Eric Clapton, os Queen. O jazz foi para mim um percurso muito ligado ao lado académico, da minha formação em música, e é uma casa onde regresso muitas vezes e que está presente na minha vida. Eu dou aulas de jazz e tenho muitos amigos músicos de jazz. Acho que vou ter sempre esse contacto e acabou por ser uma ferramenta muito importante, em termos de composição.

E as letras deste disco são todas suas. Foram muito retocadas, nos temas, considerando o tempo do processo do disco até à sua finalização?
Nos assuntos das letras, há coisas que são recorrentes. Às vezes gosto de falar sobre personagens, histórias que conheci, imaginei, ou vi num filme. Isso acontece em duas ou três canções. Há outras coisas que são autobiográficas, que tem a ver com a forma como vivi as minhas relações e esta questão da indústria (musical) e do que é que posso ser, o que eu quero ser e o que eu não sou – a transformação que nós, artistas, vivemos. E, por outro lado, essa vertente feminina. O mais importante é tirar os rótulos, perceber que homens e mulheres podem ser o que quiserem, mais cliché ou menos cliché. Se quero um príncipe encantado e que alguém me leve a dançar, não sou menos feminista por isso.

“Adoro a Lena d’Água e é uma das minhas cantoras de referência. Ela, aliás, fez muita coisa e também cantou jazz. É uma cantora muito completa, que tem uma voz que não envelhece.”

As outras músicas, de outras fases da sua carreira, integra-as nos seus espetáculos?
As do primeiro disco, acho que já não faz muito sentido. É mesmo uma fase muito diferente e tenho estado a escrever para outras pessoas. Sou mesmo apaixonada por escrever música e tinha de escoar aquilo que escrevo, porque há coisas que não faz sentido ser eu a cantar, mas que eu gosto na mesma ou que fiz a pensar em determinado cantor.

Podemos conhecer alguns dos destinatários dessas canções?
Escrevi para o disco da Elisa Rodrigues, que saiu há pouco tempo, para o da Sofia Vitória, para uma banda da qual faço parte também, os The Happy Mess, escrevi para a Marta Hugon. Depois há uns nomes que ainda não posso dizer, mas que são de umas áreas diferentes.

E de género diferente ou também são mulheres?
Sim, também são de um género diferente.

Acham muita vezes que é da família do Vítor Espadinha? Como é que reage a isso? É confrontada muitas vezes com essa pergunta?
Muitas vezes [risos]. Cada vez menos, no início muito mais. É natural, é um artista português e não há muitos Espadinhas, em Portugal. Mas não, não tenho qualquer grau de parentesco com o Vítor Espadinha.

O que é que espera que este disco diga às pessoas que o vão ouvir?
A minha expectativa é que as pessoas oiçam o disco, oiçam a música. Uns vão gostar, outros não. A mim o que me preocupa mais é o acesso que as pessoas têm e aquilo que às vezes os rótulos ou os preconceitos podem fazer, no sentido de afastar as pessoas de ouvirem coisas diferentes. Acho que uma coisa que o Festival da Canção neste novo formato tem provado é que as pessoas quando estão em contacto com coisas novas reagem bem. Mesmo que estranhem no início, acabam por ser conquistadas se as coisas tiverem qualidade. O que gostaria é que cada vez mais o público português tivesse mente aberta para conhecer coisas novas e artistas diferentes.

 

Filomena Cautela: Na Eurovisão “houve uma cumplicidade que foi completamente refrescante”