“Portugal é um dos países onde o gap salarial entre mulheres e homens tem aumentado”

Joana Gíria

O dia 1º de Maio, Dia do Trabalhador, foi o prazo definido pelo primeiro ministro, António Costa, para o Governo apresentar propostas aos parceiros sociais que visem concretizar a igualdade salarial entre homens e mulheres nas empresas. Essas propostas, que serão apresentadas a sindicatos e associações patronais, em sede de Concertação Social, surgem no seguimento da Agenda para a Igualdade no Mercado de Trabalho e nas Empresas, apresentada aos mesmos parceiros, em 2016.

A desigualdade salarial é uma das várias questões trabalhadas pela Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego (CITE), órgão colegial, criado em 1979, que reúne representantes do Governo, das centrais sindicais e das associações patronais. A organização lembra que esta é uma matéria onde convergem vários tipos de discriminações, tornando o seu combate um desafio.

“É importante ter em mente a discriminação indireta”, diz a presidente da CITE, Joana Rabaça Gíria, em entrevista ao Delas.pt. Exemplo disso são as queixas relativas a desigualdade que a comissão tem recebido, um número “reduzido, devido, provavelmente, à complexidade da identificação do fenómeno e da sua demonstração”, considera a advogada. Por isso, a CITE considera que a legislação que vier a ser aprovada nesta matéria deverá “ponderar as consequências colaterais” para que não venha a criar um “agravamento da desvantagem das mulheres no mercado de trabalho”.

Em Portugal, segundo dados do Eurostat, a média da disparidade salarial entre géneros em 2015 era o dobro da de 2007: 17,8% por comparação com 8,5%. Como se justifica este aumento em contraciclo com aquilo que se verifica em grande parte dos países europeus e não só, como mostra o relatório da OIT, publicado pela CITE?
De acordo com os dados do Eurostat, Portugal é um dos países onde o gap salarial entre mulheres e homens tem aumentado, tendo passado de 8,4% em 2006 para 14,9% em 2014 e 17,8% em 2015. Esta diferença percentual, face aos valores nacionais, apurados a partir dos Quadros de Pessoal, justifica-se pela utilização de uma metodologia distinta de recolha e tratamento dos dados. Para o Eurostat são apenas tidas em consideração empresas com 10 ou mais empregados/as e o cálculo baseia-se na diferença entre a remuneração horária média bruta dos homens e das mulheres como uma percentagem da remuneração horária média bruta dos homens. O Relatório Global sobre os Salários 2016/2017 – desigualdade salarial no local de trabalho da OIT, faz referência às desigualdades salariais em duas perspetivas: a primeira diz respeito à desigualdade salarial no local de trabalho dentro da empresa e a outra perspetiva diz respeito à desigualdade salarial entre empresas.

E qual é a leitura global nessa matéria?
O relatório mostra que a desigualdade salarial não é só determinada pelas características relacionadas com as competências das pessoas, designadamente o nível de instrução, a idade, a antiguidade na empresa, mas existem outros fatores que influenciam as desigualdades, tais como: o sexo, a dimensão da empresa, o tipo de contrato e os setores de atividade em que os trabalhadores e as trabalhadoras se inserem. Os dados estatísticos apresentados neste relatório dizem-nos que na amostra de países desenvolvidos e em desenvolvimento o grau universitário não garante necessariamente um emprego mais bem pago; que nos setores do imobiliário e financeiro estão sub-representados entre os trabalhadores mais bem pagos; e que a proporção de mulheres diminui quando se avança para os salários mais elevados. A título de exemplo, na Europa, as mulheres constituem em média 50% a 60% dos trabalhadores mais mal pagos; esta percentagem cai para cerca de 35% entre os 10% dos trabalhadores mais bem pagos. O modelo padrão procura explicar os salários com base nas características individuais relacionadas com as competências, tais como o nível de instrução, a idade e a antiguidade na empresa, bem como o local de trabalho como uma determinante da desigualdade salarial.

A CITE contacta com empresas, trabalhadores e respetivos representantes. Como é que a questão da desigualdade salarial por género é vista por estes grupos? Como é percecionada e qual a sensibilidade para combater essa disparidade?
Embora a questão da desigualdade salarial baseada no género seja cada vez mais um aspeto a merecer atenção, frequentemente ganha contornos de alguma complexidade que diminui a sua perceção efetiva. As causas para as disparidades salariais entre homens e mulheres são múltiplas, complexas e muitas vezes interligadas, podendo incluir fatores estruturais, legais, sociais, culturais e económicos, como sejam as escolhas e as qualificações escolares e profissionais, a ocupação profissional, o setor de atividade, as interrupções na carreira, a dimensão da empresa onde se trabalha, ou o tipo de contrato de trabalho e a duração da jornada. Considera-se que são contributos fundamentais para alterar esta situação, a atenção sistemática a esta realidade persistente, de modo a, por um lado, reconhecer a sua existência e os fatores que a provocam e, por outro, adotar medidas estruturais e com o envolvimento profundo e empenhado de todas as partes interessadas, que concorram para uma efetiva mudança. Um exemplo recente, amplamente divulgado, foi a assinatura do contrato coletivo de trabalho no setor do calçado, que garante salários iguais para mulheres e homens.

No âmbito da Agenda para a Igualdade no Mercado de Trabalho e nas Empresas, que medidas a CITE considera que deviam ser aplicadas para reduzir a desigualdade salarial?
A Agenda para a Igualdade no Mercado de Trabalho e nas Empresas levada à concertação social cumpre um dos desígnios do programa do Governo, cujo objetivo é prevenir e combater as desigualdades de género, promover a igualdade de género nas culturas organizacionais que integrem a diversidade e a não discriminação. O Governo prepara medidas de redução da diferença salarial as quais estão a ser tratadas pela tutela.

A partir de que dimensão as empresas deveriam ser obrigadas a divulgar os salários que pagam e os critérios de pagamento que utilizam?
Na Resolução do Conselho de Ministros (RCM) n.º 18/2014, de 7 de março de 2014, determina-se que as empresas do setor empresarial do Estado promovam, de três em três anos, a elaboração de um relatório, a divulgar internamente e a disponibilizar no respetivo sítio da internet, sobre as remunerações pagas a mulheres e homens tendo em vista o diagnóstico e a prevenção de diferenças injustificadas naquelas remunerações. Na mesma Resolução recomenda-se às empresas do setor privado com mais de 25 trabalhadores/as que elaborem uma análise quantitativa e qualitativa das diferenças salariais entre mulheres e homens. No âmbito da referida RCM, a CITE disponibiliza dois instrumentos de reflexão e análise das disparidades salariais desenvolvidos pela CITE – Exercício de Autorreflexão de Disparidades Salariais de Género em Empresas e Calculadora DGS. Estes permitem identificar causas que estão na origem de disparidades salariais entre homens e mulheres, possibilitando a definição de estratégias ao nível da gestão de pessoas, no sentido de corrigir as situações de desigualdade identificadas. Contudo, estes instrumentos foram desenvolvidos com o objetivo de apoiar as empresas no seu trabalho de combate a eventuais situações de discriminação salarial e de promoção da igualdade salarial entre mulheres e homens, com base no princípio da confidencialidade, e não com o propósito de uma monitorização ou fiscalização externa.

Qual seria o quadro legislativo mais adequado para Portugal? Fiscalizador com recomendações de caráter pedagógico ou fiscalizador e com medidas de penalização?
No âmbito das disposições europeias sobre a igualdade de remuneração entre homens e mulheres por trabalho igual ou valor igual, a Comissão Europeia sugere aos estados-membros a intervenção nesta matéria pela via de um quadro legislativo. Neste sentido, o Governo português encontra-se a preparar um diploma que integrará as linhas mestras e determinará os indicadores de disparidade e a ação do Estado.


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Recomendariam a aplicação de multas ou outro tipo de penalizações como a exclusão das empresas dos contratos públicos, medida que, segundo noticiou, em abril, o jornal ‘Público’, o governo estará a pensar aplicar. Até onde se poderá chegar em termos concretos nesta discussão, o que é expectável que saia, em termos práticos, desta discussão?
O Governo tomará a decisão após a discussão do projeto de diploma junto dos parceiros sociais. Este tema integra-se na Agenda para a Igualdade de Género no Mercado de Trabalho e nas Empresas, já apresentada pelo Executivo. Da experiência da CITE nesta área, é possível afirmar que o número de queixas relativas a discriminação salarial é reduzido, devido, provavelmente, à complexidade da identificação do fenómeno e da sua demonstração.

Corre-se o risco de a redução da disparidade salarial ser feita à conta da redução dos salários dos homens e não de um aumento dos salários das mulheres?
Relativamente à questão colocada, considera-se que a correção salarial não se efetua dessa forma, porque corria-se o risco de se reintegrar considerações sexistas na valorização atribuída a cada requisito do trabalho o que legitima algumas desigualdades entre salários dos homens e das mulheres. É importante ter em mente a discriminação indireta, ou seja, da discriminação que resulta da institucionalização de regras e procedimentos neutros que, no entanto, têm um impacto diferenciado segundo o sexo. A título de exemplo, as queixas recebidas na CITE mostram que um sistema de avaliação baseado apenas no mérito pode penalizar as mulheres, precisamente por causa das ausências relacionadas com a maternidade ou com a família e, por isso, motivo de demérito. A retribuição com base no mérito pode, por outro lado, beneficiar as mulheres que são cada vez mais qualificadas do que os homens, uma vez que procuram mais na educação e formação uma arma de combate à discriminação no mercado de trabalho.

Na notícia do Público, fonte governamental justificava a rejeição de multas para as empresas incumpridoras, entre outras razões, para não “fomentar o efeito perverso de as empresas fugirem a empregar mulheres”. O que pode ser feito para impedir que as empresas usem este método para evitar a equiparação dos salários entre géneros e um aumento de custos? Temos os exemplos dos casos conhecidos de despedimento ou não contratação de mulheres grávidas ou que queiram engravidar.
Qualquer agravamento da desvantagem das mulheres no mercado de trabalho deve ser evitado a todo o custo, contudo, independentemente do quadro normativo a estabelecer deverá ponderar as consequências colaterais e prever procedimentos de acompanhamento da sua aplicação. Não basta produzir boas leis, é fundamental garantir que as mesmas são correta e eficazmente aplicadas. Nesta matéria não será diferente. Ao mesmo tempo, trabalhadoras mais informadas e conscientes dos seus direitos defendem melhor as suas oportunidades e condições de trabalho. A formação profissional deve dar um contributo fundamental nesta perspetiva a par do trabalho desenvolvido por representantes dos trabalhadores e trabalhadoras.

A desigualdade de género também se manifesta na parentalidade e nas questões da conciliação familiar, devido ao papel de cuidadoras e domésticas que as mulheres ainda acumulam. A CITE lançou no final de 2016 uma campanha nacional sobre ‘Conciliação e Usos do Tempo’. Qual é o balanço dessa iniciativa?
Com efeito, no ano de 2016 a CITE desenvolveu um conjunto de iniciativas em parceria centradas na Conciliação e Usos do tempo, de que a campanha referida faz parte. Assim, foram divulgados os resultados do INUT – Inquérito Nacional aos Usos do Tempo de Homens e de Mulheres, que teve como finalidade dispor de informação atualizada sobre os usos do tempo de mulheres e de homens em Portugal, no que respeita em particular ao trabalho pago e ao trabalho não pago de cuidado, que suporte a promoção da articulação da vida profissional, pessoal e familiar. Uma das principais conclusões a que se chega com este relatório quando se comparam dados com os disponibilizados no anterior, de 1999, é que a mudança, em muitos aspetos, foi pouco significativa, pelo que todas as ações que visem sensibilizar para a conciliação e usos do tempo são necessárias e importantes, mas ainda insuficientes.