Joanne Harris lança novo livro da série ‘Chocolate’. Leia um excerto de ‘A Menina que Roubou Morangos’

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Wikimedia Commons

A escritora Joanne Harris está de volta com um novo livro. Vinte anos depois da publicação do aclamado Chocolate – obra que deu origem a um filme com o mesmo nome, protagonizado por Juliette Binoche e Johnny Depp – a autora inglesa retoma a série que a catapultou para a fama, com o romance A Menina que Roubava Morangos, que será edita em Portugal, pela ASA, já no próximo dia 9 de julho.

 

 

 

A Menina que Roubava Morangos, avança a editora em comunicado, é um romance sobre a força do passado, o poder da memória e a aceitação das marcas que a vida deixa em cada um. “Há magia no ar, luz e sombra, vingança e amor neste quarto volume da série Chocolate”, promete a editora.

O Delas.pt antecipa o lançamento do aguardado regresso de Joanne Harris com a pré-publicação, em parceria com a ASA, de um excerto deste A Menina que Roubava Morangos. Leia o texto em baixo e delicie-se com a nova história de Chocolate.

 

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Vento

Sexta-feira, 10 de março

Há sempre um momento antes de uma tempestade em que o vento parece mudar de ideias. Assume uma certa domesticidade; namorisca com as flores nas árvores; desafia a chuva a sair das monótonas nuvens cinzentas. Este momento de brincadeira é aquele
em que o vento está mais cruel e perigoso. Não mais tarde, quando as árvores caem e as flores não passam de papel mata-borrão a entupir as sarjetas e as poças de água. Não quando as casas caem como castelos de cartas, e muros que se julgavam firmes e seguros são rasgados como papel.

Não, o momento mais cruel é sempre aquele em que uma pessoa pensa que talvez esteja segura; que talvez o vento tenha passado por fim; que talvez se possa construir de novo algo que não possa ser levado num sopro. É esse o momento em que o vento está mais insidioso. É o momento em que começa o sofrimento. O momento do júbilo
esperado. O demónio da esperança na caixa de Pandora. O momento em que o grão do cacau liberta o seu aroma no ar: um cheiro a queimado e a especiarias e a sal; e a sangue; e a baunilha; e a tristeza.

Dantes eu pensava que era simples, essa arte. Fazer indulgências inofensivas. Mas acabei por aprender que nenhuma indulgência é inofensiva. Francis Reynaud orgulhar-se-ia de mim. Bruxa durante quarenta anos e agora, por fim, tornei-me uma puritana.

Zozie de l’Alba teria compreendido. Zozie, a colecionadora de corações, cujo rosto ainda me aparece em sonhos. Por vezes, ouço a sua voz no vento; o som dos seus sapatos nas pedras da calçada. Por vezes, pergunto-me onde estará: se ainda pensa em mim. Nenhuma indulgência é inofensiva, ela sabia-o. O poder é tudo o que conta, ao fim e ao cabo.

O vento não se importa. O vento não julga. O vento leva o que pode – o que necessita – instintivamente. Eu fui assim em tempos, sabes? Sementes ao vento, ganhar raízes, semear de novo antes de avançar para outras paragens. As sementes não ficam com a planta que lhes dá origem. Vão para onde vai o vento.

Veja-se a minha Anouk, agora com vinte e um anos; foi para onde vão os filhos sempre que seguem o flautista. Éramos tão íntimas, ela e eu. Costumávamos ser inseparáveis. E, no entanto, eu sei que um filho está connosco por empréstimo, a ser devolvido um
dia ao mundo, para crescer e aprender e se apaixonar. Acreditei em tempos que ela poderia ficar aqui em Lansquenet-sous-Tannes; que Jeannot Drou poderia mantê-la aqui; ele e, claro, a chocolaterie, e a promessa de segurança. Mas foi Jean-Loup Rimbault, em Paris, que decidiu as coisas. Jean-Loup, o rapaz com o buraco no coração.
Será que Anouk o preencheu? Só sei que ela deixou um buraco no meu; um buraco que nem todo o chocolate do México poderia encher, um espaço com a forma de uma menina pequena com olhos tão escuros como o oceano.

E agora a minha Rosette, com os seus dezasseis anos, escuta a voz do vento e percebo como está faminta; como é selvagem, obstinada, volátil. O vento levá-la-ia com uma só rajada se ela não estivesse presa como uma vela, se eu não tivesse tomado precauções. E mesmo assim o vento continua a fustigar o cordame que nos mantém em segurança. Continuamos a ouvir o seu canto de sereia. E cheira a outros lugares. Fala de perigo e de luz do sol, de aventura e alegria. Dança por entre as poeiras iluminadas, em
tons de pimentão e grão de pimenta. Fica preso na garganta como um riso inesperado. E por fim leva-os a todos; tudo aquilo por que labutaste. Tudo aquilo que disseste a ti mesma que poderias de algum modo levar contigo. E tudo começa sempre num momento de brincadeira, de magia – mesmo de alegria. Um instante de claridade entre as nuvens. Um sabor a doçura; um toque de sinos.

Por vezes, até mesmo uma queda de neve.

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AT