O que se antecipava aconteceu. A diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho sobre a conciliação entre vida profissional e a vida familiar dos progenitores e cuidadores foi largamente aprovada na passada quinta-feira, 4 de abril. O que emerge como um progresso em matéria de instituições europeias, pode, ao mesmo tempo, por em causa legislação e direitos de estados-membros que estão mais avançados nesta matéria, onde Portugal se inclui.
Uma vez transposta para a legislação nacional, o diploma pode colidir com vários direitos já adquiridos em Portugal. Um deles diz respeito à duração da licença de maternidade e parentalidade e, no limite, fazer baixar os subsídios devidos nesta fase da vida. Dos 100% a quatro meses para subsídios equivalentes a baixa por doença.
João Pimenta Lopes, eurodeputado do PCP e vice-presidente da Comissão dos Direitos da Mulher e da Igualdade de Género, previa isso mesmo no início de março e prometia que, uma vez que a diretiva recebesse sinal verde, seria tempo de estar atento a todos os passos.
Uma entrevista ao Delas.pt, à margem do seminário O Poder das Mulheres na Política, Pimenta Lopes olhou ainda para os sinais contraditórios que o Parlamento Europeu está a dar ao género feminino em vésperas de eleições europeias – que se realizam a 26 de maio -, deixando para trás matérias que elas, eleitoras, seguramente valorizam: a conciliação, os cuidados informais, a igualdade, o assédio, o tempo e o futuro.
Como pode esta diretiva ser transposta para legislação nacional [que concede mais direitos às famílias do que o diploma que acaba de ser aprovado no Parlamento Europeu]?
Esta é a dúvida que nos suscita: se pode ou não ter implicações naquilo que é atualmente as proteções que estão em vigor e num contexto da precarização das relações laborais, dificuldades e limitações da fiscalização das autoridades, nomeadamente a do Trabalho. Embora não haja dados concretos – porque por vezes é difícil de quantificar estatisticamente estas questões porque as pessoas não as denunciam -, empiricamente sabemos, há relatos de que há pessoas que abdicam do tempo a que têm direito com receio de perder o seu próprio emprego. Se a diretiva for transposta tal com está, vai colidir com a assistência à família. Já para não falar que não vai ser pago a 100%.
Há uma perda de rendimento.
Coloca-se uma licença de paternidade de dois meses que são pagos [a uma percentagem mais baixa] sobre o subsídio de doença [baixa por doença]. É preciso garantir, em primeiro lugar, que não há perda de rendimentos para o casal e, em segundo lugar, um incentivo à maior partilha de tarefas neste tipo de responsabilidades. A diretiva pode colocar até, depende da forma como for transposta, uma contradição com a legislação portuguesa.
Em que pontos?
Em Portugal, temos o período da licença de maternidade exclusivo nas primeiras semanas e que depois pode ir até aos seis meses, dependendo da modalidade. Aqui, o que se está a promover é a dilatação do período de acompanhamento. Sem o referir, trata-se de uma pressão sobre o período inicial que atualmente está garantido na nossa legislação. Depois, faz-se um período de dois meses que pode ser gozado pelo casal de forma individual e até aos 12 anos da criança. Na prática, é que temos na nossa legislação como assistência à família, 15 dias por ano. O que se pode prever, inevitavelmente, é que possam ser sobretudo as mulheres a fazer uso desta dita licença, e se tiverem condições para dela usufruir. Na hora da escolha, isso é evidente.
Evidente porquê?
Evidente numa perspetiva de rendimentos, quando sabemos que há uma diferença salarial que não é desprezível entre homem e mulher na hora de fazer contas. Não é por acaso, e isso é uma outra matéria que não está tratada nesta diretiva, que remete depois para a flexibilização da relações laborais. Para este tipo de recomendações, há sempre espaço. Mas já não procede da mesma maneira a recomendações para a criação de redes públicas de serviços de apoios à família como as creches, pré-escolares e lares do ponto de vista gratuito para que as pessoas possam, de facto, ter as crianças nestes instrumentos de apoio e sem terem de abdicar de estar no mercado de trabalho. Sabemos que 1⁄4 da população nacional está a viver na base do rendimento mínimo nacional e há creches que podem chegar aos 300 euros. Dos lares, nem se fala do ponto de vista de valores. Portanto, a escolha é obvia: muitos acabam por ficar em casa e para dar esta resposta que socialmente os Estados não apoiam.
“A não transposição da diretiva para legislação nacional não seria inédita”
Os Estados podem optar por transpor a diretiva, se isso colidir com direitos sociais mais avançados nestas matérias?
A não transposição da diretiva para legislação nacional não seria inédita. Estaremos seguramente muito atentos à forma como esta diretiva seja transposta. Hoje, e isto acontece muito nos direitos sociais – nos económicos não -, somos confrontados com uma situação que é a da não efetivação, há um conjunto que está salvaguardado em lei, mas que depois na prática não se verifica. No contexto dos direitos das mulheres, isso é muito comum. Ainda recentemente, em Braga, soubemos que várias trabalhadoras pediram redução do horário para efeitos de amamentação e aleitamento e que não conseguiram.
Mas o Parlamento Europeu começa por dar esse mesmo exemplo.
É verdade. Até em relação aos deputados a licença não está definida. Não é possível fazer períodos temporários de substituição. Foi uma questão que nos foi colocada pela substituição da deputada Inês Zuber [em 2016, desistiu por não poder gozar, sendo eurodeputada, licença de maternidade], e mesmo havendo a intenção da própria e entendimento do partido, mas não foi possível.
Como não começar por aqui?
Tem que ver com a própria matriz, e conseguimos compreender porque determinadas propostas que avançámos não foram integradas nesta diretiva. Há depois um outro aspeto [no diploma] que passa pelo conceito de cuidadores informais e licenças para cuidadores. Tal parece-nos um caminho um pouco pernicioso e perigoso e por vários motivos.
Trabalho dos cuidadores informais vale 82 milhões por semana
Quais?
Sabemos que 80% dos cuidados prestados na União Europeia são informais, dos quais 75% são feitos por mulheres. O PCP apresentou uma proposta não no sentido de formalizar o cuidado no espaço e no ambiente de casa, digamos assim, mas no sentido de possibilitar que a prestação de cuidados a familiares permita que as pessoas não saiam do mercado de trabalho. Não é possível, na nossa conceção, que o Estado se desresponsabilize de um conjunto de áreas às quais deveria dar resposta, empurrando essas áreas para as famílias.
Qual seria a esfera dos custos estimada?
Não tenho números para dar, mas posso falar, por exemplo em Portugal, dos custos que o país tem com o resgate à banca, com os juros da dívida, com o aumento significativos dos custos com a militarização e do aumento dos custos militares no âmbito da NATO para 2% do PIB. Não podemos olhar estas despesas dos cuidadores como custos, mas como investimento. O enquadramento económico é o de que as pessoas possam continuar a trabalhar, a produzir riqueza e, com ela, possam ter o retorno. Isso exige, em paralelo, outro tipo de medidas.
“Não podemos olhar estas despesas dos cuidadores como custos, mas como investimento”
Como por exemplo?
Exige reforço de infraestestrutras e serviços no quadro da saúde e da segurança social. Sabemos o ataque que está a ser feito. Ainda aqui no Parlamento Europeu denunciámos as propostas que a Comissão Europeia tem em cima da mesa de criar um fundo pan-europeu de pensões a ser entregue à BlackRock [fundo de investimento], numa perspetiva de privatização objetiva da segurança social. Temos de falar da valorização dos salários. Quando falamos em conciliação da vida pessoal e profissional, falamos muitas vezes em flexibilização do trabalho, que é perfeitamente contrária aquilo que a diretiva deveria defender.
“Quando falamos em conciliação vida pessoal e profissional, falamos muitas vezes em flexibilização do trabalho, que é contrária aquilo que a diretiva deveria defender”
De que forma?
Nós estamos a ver cada vez mais pessoas, a par da precarização, a trabalhar com contratos temporários, part-time e mediante uma desregulação do mercado de trabalho. É que, em Portugal, temos um milhão de pessoas a trabalhar ao domingo, dois milhões a trabalhar aos sábados, 700 mil a trabalhar por turnos. Só do valor das horas extraordinárias não pagas, noticiava a imprensa, sabia-se que, no total, permitiram criar 64 mil postos de trabalho. Estamos a assistir ao alargamento das jornadas de trabalho. Há tempos mostrava-se, aqui no Parlamento Europeu e na Comissão das Mulheres, a discrepância de horas entre homens e mulheres, e os gráficos eram muito interessantes. Eles surgem em média acima das oito horas de trabalho diário e elas acima das seis. Se elas têm mais presença em trabalho de part-time, tal faz alterar a leitura destes dados, mas também pode levar a outra leitura: precarização, desregulação e desproteção.
Europa: Da ‘macho culture’ e do assédio às exigências das mulheres na política
Quando o Parlamento deixa de fora estas questões, o tempo – e é preciso tempo para que as mulheres possam participar na política -, e tratam a questão do assédio como uma formação facultativa à qual quase ninguém compareceu, como convocam as mulheres a votar nas eleições europeias? Como vice-presidente da comissão dos Direitos das Mulheres, como analisa estes sinais?
O sinal evidente é o de que é preciso outro tipo de vozes no Parlamento Europeu para garantir outro tipo de caminhos. Está visto que as forças políticas que têm tido posições maioritárias, têm apoiado e legitimado este tipo de posições. Para nós, não nos parece estranho que não se dê a resposta cabal e necessária face aquilo que é o figurino político. O que afirmamos é que é preciso ir mais longe. No momento de votar, é preciso ter presente, porque estamos à porta de eleições, aqueles que posicionaram de forma intransigente relativamente aos direitos das Mulheres, dos trabalhadores, das populações em geral e os que fizeram para que determinadas medidas fossem aprovadas.
É terceiro na lista do PCP para as europeias. Se eleito, de que vão ser feitos os próximos cinco anos? Vai continuar ligado a estas matérias?
É sempre um pouco variável.
“A maioria dos eleitos no Parlamento Europeu não coloca a questão de classe, sobretudo olhando para as mais desfavorecidas”
Mas o que gostava e considera prioritário?
Tenho-me sentido perfeitamente à vontade nestas matérias ligadas aos direitos sociais e em que tenho participado. Na comissão das mulheres, sinto-me à vontade a colocar uma questão que a maioria delas não o faz: a de classe. A maioria dos eleitos no Parlamento Europeu não coloca a questão de classe, sobretudo olhando para as mais desfavorecidas. A luta pela igualdade não pode ser só das mulheres, deve ser entre homens e para garantir a elevação da condições de vida seja ao nível laboral, pessoal, no direito ao lazer e à cultura.
“Não é por acaso que cada vez mais se empobrece a trabalhar”
A emancipação sócio-economica das mulheres só pode ser feita por via do trabalho, embora tenha havido alguns artigos de opinião recentes que quase as relegam para o espaço da casa. Não podemos falar da igualdade na miséria. Temos agora o Pilar Europeu dos Direitos Sociais onde vem referida a igualdade salarial. Mas é igualdade salarial em quê? No salário mínimo nacional? Se a referência for essa, em Portugal ou em qualquer país, então não a ambicionamos. A igualdade tem de ser numa perspetiva de condições remuneratórias dos trabalhadores, igualdade salarial sim, mas elevando. Não podemos continuar com salário de miséria, não é por acaso que cada vez mais se empobrece a trabalhar.
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Mulheres: “Não podemos ser hipócritas, temos de ir além da letra” na Europa