Expressões lidas numa sentença de tribunal que evoquem uma mulher adúltera, vítima de violência doméstica, como “dissimulada”, “falsa”, hipócrita” e “desleal” valem agora uma advertência ao juiz que a proferiu, Neto Moura, e por parte do Conselho Superior de Magistratura (CSM).
O presidente deste mesmo órgão que aplicou esta sanção ao magistrado que citou a Bíblia e que minimizou um caso de violência doméstica pelo facto de a mulher agredida ter cometido adultério considera que se trata de palavras “ofensivas, desrespeitosas e atentatórias dos princípios constitucionais e supraconstitucionais da dignidade e da igualdade humanas”.
São palavras “ofensivas, desrespeitosas e atentatórias dos princípios constitucionais e supraconstitucionais da dignidade e da igualdade humanas”
Quatro membros votaram a favor da sanção, incluindo o presidente do Conselho, António Joaquim Piçarra, que tem voto de qualidade, e o vice-presidente, Belo Morgado, e a favor de pena por multa outros quatro membros, tendo sido ainda registadas sete abstenções. Os membros que anteriormente tinham votado a favor do arquivamento do processo são os mesmos que se abstiveram esta terça-feira.
Na sua declaração de voto, António Joaquim Piçarra refere que a independência dos juízes é um valor fundamental do Estado de Direito e da democracia e implica a capacidade de decidir sem constrangimentos assim como a faculdade de fundamentar e motivar as decisões de forma absolutamente livre. Contudo, considera que essa independência não é compatível com a utilização de expressões que ultrapassam o limite da ofensa.
“O princípio da independência não é compatível, porém, com a utilização de expressões que ultrapassam o limite da ofensa ou do respeito devidos a qualquer interveniente processual, seja na fundamentação escrita de qualquer decisão, seja na condução oral de qualquer diligência processual”, escreveu António Joaquim Piçarra.
O presidente do CSM e do STJ acrescenta que “a valoração da prova é absolutamente insindicável por este Conselho, porque integra o tronco central do princípio da independência”. Todavia, acrescenta, “as referidas expressões exorbitam a valoração da veracidade do depoimento da ofendida sobrelevando das mesmas o seu caráter ofensivo, que se constitui em infração disciplinar por violação do dever de correção“.
Já o vice-presidente do Conselho Superior da Magistratura, Belo Morgado, que também votou a favor da sanção, considerou que “a fundamentação das sentenças não pode resvalar para o campo não jurídico, de discussão moral, ideológica, religiosa ou panfletária, em especial quando esteja em causa a defesa de teses manifestamente contrastantes com valores essenciais da Ordem jurídico-constitucional (mormente, de tipo racista, xenófobo, sexista, homofóbico, etc.)”.
“A fundamentação das sentenças não pode resvalar para o campo não jurídico, de discussão moral, ideológica, religiosa ou panfletária”
Na sua posição sobre a matéria o juiz Belo Morgado defende que “a fundamentação de decisões judiciais com recurso a elementos que não constituem fontes de direito, enunciados enquanto argumento histórico, social ou cultural, secundários e coadjuvantes do regime jurídico vigente, não envolve, só por si, qualquer desvalor da decisão, podendo até, em certos casos, contribuir para o enriquecimento da mesma.
No entanto, acrescenta, as decisões judiciais constituam espaço de expressão vinculada ao quadro de valores jurídico-constitucionais, que sobrepõe ao quadro particular de valores perfilhado por cada pessoa concreta.
Para o juiz Belo Morgado, está fora da esfera de proteção do princípio da independência “a utilização de expressões graves e desnecessariamente ofensivas dos intervenientes processuais, em especial quando as mesmas, no limite, até possam assumir relevância jurídico-criminal”.
Além disso, frisou, “é notório que a utilização de expressões ofensivas nas sentenças é incompatível com os imperativos de dignidade, decoro, retidão, probidade, prudência e sobriedade inerentes às funções dos magistrados judiciais, colocando fortemente em causa a confiança dos cidadãos nos tribunais e o prestígio/credibilidade dos Juízes”.
Neto de Moura vai recorrer da sentença
O desembargador Neto Moura vai recorrer da advertência registada aplicada esta terça-feira, 5 de fevereiro, pelo CSM. Em declarações à agência Lusa, o advogado do juiz, Ricardo Serrano Vieira, disse que vai recorrer da decisão para o Supremo Tribunal Administrativo, passo que estava decidido “desde o início do processo”. “Estava acordado desde o início que qualquer que fosse a decisão haveria recurso, ainda que no caso em concreto tenha sido aplicada uma sanção ligeira”, afirmou.
O advogado disse ainda que vai esperar para ser notificado da decisão e “ver quais os fundamentos na sua base” para poder recorrer. Segundo um comunicado do CSM, a sanção é aplicada pela “prática de uma infração disciplinar por dever de correção”.
“Estava acordado desde o início que qualquer que fosse a decisão haveria recurso, ainda que no caso em concreto tenha sido aplicada uma sanção ligeira”
O Conselho decidiu ainda arquivar o processo em que era visada a juíza desembargadora coautora do acórdão em causa, por onze votos contra quatro, “por se terem entendido que não era exigível demarcar-se formalmente de expressões que não integravam o núcleo essencial da fundamentação, antes constituindo posições da responsabilidade exclusiva e pessoal do autor”.
CB com Lusa
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