Katty Xiomara leva ao Porto as novas propostas para o próximo outono-inverno, esta sexta-feira, 15 de março. A nova coleção é apresentada nesta edição do Portugal Fashion, que arrancou na quinta-feira e termina no domingo, mas antes disso foi mostrada fora do país, mais concretamente na Semana da Moda de Milão, no final de fevereiro. O desfile marcou a estreia da designer nas passerelles do evento italiano e nele foram apresentadas as peças de nova coleção a que a estilista deu o nome de ‘Maria Mimosa’. Esta, por sua vez, partiu de uma coleção cápsula dedicada à popular boneca japonesa Hello Kitty, feita a convite da SANRIO, empresa criadora da personagem. Boneca e designer completam ambas 45 anos em 2019, o que levou Katty Xiomara a olhar para o passado e para referências da sua infância e adolescência, criando uma coleção diversificada, que classifica como um ‘pot-pourri de memórias’, mas que é também uma homenagem às mulheres, como explicou ao Delas.pt, numa entrevista em Milão, na Semana da Moda.
Esta coleção partiu de um convite da SANRIO para celebrar os 45 anos da Hello Kitty. Como é que ela se traduz nas peças da sua nova coleção?
Eu também faço 45 anos este ano e acabei por juntar isso a esse convite. Também sou fã da Hello Kitty, cresci com essa personagem e a partir daí fui procurar as minhas memórias de infância e de adolescência. A coleção não tem um look muito retro, nem extremamente ameninado, a ideia não foi essa. O objetivo foi um pouco perceber a minha construção como pessoa e como mulher. E ela começou na Venezuela, não começou em Portugal. Começou num clima bastante mais apetecível, numa geração diferente desta, que não estava habituada a ficar e a brincar dentro de casa. Eu brincava fora de casa, brincava com a natureza e uma das coisas que mais me marcou e que acho mais peculiar foi a mimosa – agora sei que se chama mimosa púdica, mas para mim era a ‘bella durmiente’, a bela adormecida. Uma planta que fecha as folhas quando nós lhe tocamos e que tem uma flor muito ‘puffy’, que parece um pequeno pompom cor-de-rosa. No fundo, tentámos recriar isso nos padrões. Associada a esta planta existe uma lenda sobre uma menina extremamente tímida, chamada Maria, e o nome da coleção, ‘Maria Mimosa’, nasce aqui. Mas ela está recheada de muitas outras lembranças, de muitas outras coisas que dizem respeito a mim como pessoa e como mulher.
Por exemplo?
Uma delas é o facto de ser mulher e de ter crescido numa casa com mais duas irmãs. Portanto, para mim, a figura da mulher é algo extremamente presente. Só tenho uma filha também. A própria Hello Kitty também não é uma gata, é uma menina. Tudo isto foi criando este conceito do ‘ser mulher’. E depois, a dada altura, reparei que o ser mulher em Portugal, há 45 anos, era muito diferente do que era ser mulher na Venezuela.
Quais eram as principais diferenças?
Por aquilo que entretanto me fui apercebendo era, por exemplo, não poder ir a um café sozinha, não poder trabalhar, não poder estudar mais além daquilo que era a norma, se trabalhasse não poderia ganhar mais que o marido e teria de ter uma profissão que o marido aprovasse. Todas essas coisas, que na altura eram naturais para a sociedade de então, para mim foram uma novidade. Não conhecia ao pormenor. No fundo, acaba por ser esse o background da construção da coleção: perceber estas diferenças. Aquilo que a maior parte das mulheres consegue fazer – porque ainda há muitas que não conseguem -, coisas simples que damos completamente como garantidas mas que nem sempre foram assim, nem sempre tivemos essa possibilidade. E a ideia é agradecer às mulheres que conseguiram que isso fosse possível.
Mas numa perspetiva discreta, mais do que abertamente ativista.
Sim, não é sequer o meu feitio, não sou uma pessoa ativista, é no sentido de lembrar que nem sempre foi assim [a realidade da mulher] e que se calhar ainda há muita coisa por fazer. E o facto de ignorarmos e deixarmos passar é um sinal de esquecimento. Eu acho que não devemos esquecer.
Já tinha lançado essa questão na anterior coleção, de primavera-verão deste ano.
Sim, a anterior coleção, de certa forma, também me trouxe aqui. Porque me inspirei essencialmente em três mulheres e uma delas marcou-me imenso: a Carmen Herrera, uma artista plástica, uma pintora. Hoje já deve ter quase 90 anos, mas só foi reconhecida aos 85. E é brutal perceber isto. Eu vi um documentário sobre ela e ela dizia que tinha tentado expor várias vezes em galerias e, num caso específico, numa galeria gerida por uma mulher – isto nos anos 60 – e essa mulher disse-lhe que não ia ter uma exposição de uma mulher na sua galeria. Isto aconteceu num meio que consideramos mais liberal, por ser artístico. Mesmo assim, havia um preconceito extremamente grande…e falamos dos Estados Unidos.
Voltando à coleção que vai apresentar o que encontramos nela, em termos de materiais usados, padrões, cores?
É uma coleção extremamente diversa, porque quando falamos em memórias há muita coisa para passar do mental para o físico e nem sempre é fácil. Na descrição da coleção eu digo mesmo que isto é um pot-pourri de memórias. Temos alguns aspetos abonecados, o brilho que me remete para a América do Sul. Os padrões são extremamente variados, desde as mimosas púdicas, até sobreposições de riscas, de vichys, de frases… A boca para nós é extremamente importante. Fizemos a Hello Kitty sem rosto – ela já não tem boca e não tem porque a ideia é ela poder personificar diferentes tipos de expressões, é quase ser inexpressiva para ser expressiva (isto é muito japonês). Nós fizemos ainda mais, retirámos o resto da expressão. Temos também, nos estampados, uma mulher com ar dos anos 70, igualmente sem rosto, quase como uma réplica humana da Kitty. Por outro lado, pegámos numa boca, mais feminina e aberta, para dar voz, dar voz às mulheres, e depois utilizámos várias frases, com um intuito, se calhar, aí, mais feminista e em inglês, português, espanhol, japonês e chinês. Temos ainda alguns padrões, embora pouco percetíveis à primeira vista, de corpos nus de mulheres, nos lenços, por exemplo, que revelam uma nudez sincera. É como diz uma das frases da coleção: “não precisas de ser modesta, para ser respeitada”. A mulher tem de ser simplesmente respeitada, como qualquer outro ser humano. A ideia não é querermos ser melhores, nem querermos ser iguais. Nós queremos ser diferentes e essa diferença é necessária e importante, mas temos de ter igualdade de direitos e oportunidades.
Desfilou recentemente, e pela primeira vez, em Milão – no calendário de eventos paralelos aos desfiles principais – com o Portugal Fashion. Que importância tem para si fazer um desfile nesta cidade?
É sempre um desfile internacional. Não temos propriamente um mercado italiano, porque, de facto, o showroom está mais vocacionado para a Ásia, do que para a Itália ou a Europa, mas é uma das capitais da moda e isso acaba por dar outro peso ao desfile.
A partir daqui até onde é que espera que vá esta coleção?
Ela está pensada de uma forma bastante abrangente, não apenas focada no mercado asiático, apesar de, sem dúvida, haver uma opção asiática bastante patente na coleção. Mas ela pode não ser encaixada só aí, ela tem cabimento, por exemplo, em Inglaterra, numa cidade como Londres. Se calhar Itália não estará tão habituada a este visual, porque há, talvez, um maior classicismo mas acho que pode quebrar algumas fronteiras.
E em Portugal como é que é, neste momento, a recetividade às criações dos designers nacionais?
Começa a melhorar, mas ainda há muita coisa por fazer, ainda temos de trabalhar nisso, porque ainda existe a vontade de adquirir marcas estrangeiras sem fazer sequer a comparação. Muitas vezes não se olha tanto para a qualidade mas para o peso que a marca tem.
E, em termos de estilo, a mulher portuguesa ainda é “modesta” no que toca às suas escolhas ou já ousa mais?
Não, não acho que seja modesta. Acho que o que existe ainda na mulher portuguesa é pouca capacidade de arriscar, acho que ainda olha para o lado para perceber e se sentir segura e raramente arrisca, mas isto fazendo uma grande generalização, claro.