“Já sei que vou ser criticada em Portugal porque faço uma portuguesa que é uma mulher maluca”

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es é portuguesa e é a estrela do filme de terror “The Eyes of My Mother”, que estreou o ano passado no Sundance, o maior festival de cinema independente dos Estados Unidos da América. Rodado em setembro de 2015, o filme é a preto e branco e inclui falas em português e o fado de Amália Rodrigues na banda-sonora. Conquistou vários prémios no circuito independente e de cinema fantástico e valeu à atriz rasgados elogios de revistas como a ‘Rolling Stone’, a ‘Variety’ ou a ‘Esquire’.

es, nome artístico de Francisca Magalhães, fala com o Delas.pt por telefone, a partir de Nova Iorque. É numa mistura entre sotaque nortenho e expressões em inglês que nos conta mais sobre esta participação em ‘The Eyes of My Mother’, estreado nas salas nacionais a 23 de fevereiro, e sobre os seus projetos para o futuro, agora que passou a ser representada pela Anonymous Content, a mesma agência de Ryan Gosling.

Como é que surgiu a sua participação neste filme?
Eu trabalhei num vídeo com o [realizador] Nicolas Pesce e foi aí que eu o conheci. Quando ele acabou as filmagens do vídeo disse-me que ia preparar algo para trabalharmos juntos outra vez. E passado um mês, ele realmente estava a telefonar-me e a dizer-me que estava a escrever um guião e a pensar em mim para a personagem principal. Nessa altura, o ‘The Eyes of My Mother’ era só uma ideia, ele só tinha 10 páginas escritas do guião. Portanto, o projeto veio para mim ainda era uma sementinha e foi muito bom porque pude vê-lo a crescer da maneira que cresceu e colaborar, trazendo as minhas próprias ideias para o filme e para a personagem.

As ideias de introduzir no filme a música da Amália Rodrigues e do arroz de cabidela foram da Kika. Houve outras que também partiram de si?
Sim, as referências de Portugal que o filme tem foram trazidas por mim, porque o diretor era muito aberto a colaborações. Eu tinha uma ideia e ele dizia: ‘vamos tentar fazer isso’. E se gostasse incorporava no filme. O guião também mudou imenso desde a primeira vez que falámos até ao filme em si. Foram muitas ideias, conversas e mudanças. Foi um processo engraçado.

Mas o realizador já tinha a ideia de fazer um filme centrado em personagens portuguesas e num certo universo português?
Quer dizer, não é para me gabar, mas acho que aí também fui eu que o inspirei. Ele nunca tinha conhecido ninguém de Portugal. E depois no vídeo, ele gostou imenso da maneira como trabalhei e quis que eu fosse a atriz do filme dele. Ele queria fazer um filme muito diferente e estranho, então já que eu era portuguesa… Muitos americanos não conhecem Portugal, nem sabem onde é que é. Portugal é uma coisa muito exótica e ele queria trazer essa referência exótica e diferente para o filme.

Este é um filme de terror e tem cenas muito explícitas e gráficas. O trailer desde logo mostra a cabeça de uma vaca em cima da mesa, órgãos, vísceras. Essa parte do filme, ligada à matança ou aos corpos dos animais, por exemplo, pode ser associada a uma certa ideia que se tem da comunidade portuguesa, por parte dos americanos?
Não, não senti mesmo nada. É engraçado que fale nisso, porque as pessoas veem o trailer e pensam que o filme é sobre animais. Mas não, o filme não tem mesmo nada a ver com isso. Quer dizer, essa cena da vaca é uma cena, pouco mais. Já sei que vou ser criticada em Portugal porque faço uma portuguesa que é uma mulher maluca e tal. Mas a cena com a cabeça da vaca é mais para explicar a mãe, que era cirurgiã, e isso era uma maneira de mostrar à filha como se fazia.

Alguma vez tinha pensado em fazer um filme de terror?
Como atriz quero fazer todos os tipos de filme, e este foi realmente uma oportunidade que me apareceu à frente. Quando estava na escola de teatro achava até que ia fazer mais comédia, porque sou uma pessoa muito alegre. Por isso, acabou por ser muito engraçado. E o mais engraçado foi o diretor achar que eu era perfeita para este papel. Eu nunca percebi muito bem onde é que ele foi buscar isso em mim [risos] porque na vida real não tenho nada a ver com a personagem. Mas eu quero é fazer trabalho de qualidade é o que mais me importa.

A sua personagem é uma psicopata, ou seja é a vilã e não a vítima. Como é que se preparou para este papel e o que foi mais desafiante para si?
Quando conheci o Nicolas Pesce estava em Nova Iorque, mas não estava muito feliz. Sentia-me muito sozinha. E houve um momento em que tive problemas com o meu visto. Nessa altura estava sem trabalhar, não tinha muitos amigos. Sentia-me muito sozinha. E esta personagem à parte de ser uma grande vilã, também é uma personagem que sofre imenso e que vive muito isolada. E quando recebi o guião achei mesmo que era o que estava a sentir naquele momento. Então usei as emoções que estava a viver nessa altura para construir a personagem. Comecei a fazer bastantes pesquisas sobre psicopatas e vi imensos filmes de terror. E quase que me tornei numa psicopata [risos].

O resultado dessa preparação não passou despercebido à crítica, com revistas como a ‘Rolling Stone’ a ‘Esquire’ e a ‘Variety’. O que é que sentiu com esta aclamação?
Foi espetacular. Eu estava no [festival] Sundance, era primeira vez que via o filme e achei que o meu trabalho não estava assim grande coisa, que até estava bastante medíocre e que ninguém lhe ia ligar. Porque a minha personagem é uma personagem bastante calada, muito quieta e com poucas expressões. Então quando comecei a ver essas críticas, a ‘Rolling Stone’, fiquei mesmo: “What? Amazing!” Foi um choque, mas pela positiva. Foi mesmo incrível.

Quando ainda estava em Portugal teve um pequeno papel na série ‘Morangos com Açúcar’. Antes de Nova Iorque passou por Espanha e Inglaterra e trabalhou noutras coisas. Quando é que decidiu que se queria dedicar a sério à representação?
Eu sou de Famalicão e sempre, sempre, quis ser atriz. Em Portugal é difícil sê-lo, e sendo de Famalicão mais difícil é. Tenho uma família incrível e que sempre quis o melhor para mim. Mas eu tinha 15 anos e dizia aos meus pais que queria ser atriz e eles sempre acharam que talvez não fosse a melhor opção para mim. Então, durante bastante tempo, eu tentei fugir um bocado a essa paixão. Fui para Lisboa estudar e estudei Comunicação Audiovisual, já para tentar relacionar com isso. Claro que como gostava imenso fui sempre fazendo coisinhas, mas nunca levei a sério. Nunca achei que fosse conseguir, por isso é que também depois fui viajar. Não sabia muito bem o que havia de fazer à minha vida. Estava um bocado perdida. Até que um dia essa paixão falou mais alto. Na altura trabalhava como dançarina, estava a ver-me e tive uma epifania: “eu preciso de ser uma performer, de viver em cima de um palco”. E foi aí que decidi que ia ser atriz custasse o que custasse. Então falei com os meus pais e, como já tinha outra maturidade, eles apoiaram-me e eu decidi tentar no sítio mais indicado para começar que é Nova Iorque. Tem as melhores escolas. Foi uma decisão muito impulsiva e apesar de agora ter este filme foi um processo muito difícil ir para Nova Iorque sozinha… Não tinha lá ninguém [risos].

Não tinha nenhuma rede de apoio.
Não. Quando fui para lá não conhecia absolutamente ninguém, não sabia o que é que ia fazer, até que achei que o melhor era ir para uma escola de representação e foi aí que as coisas se começaram a encaminhar e foi uma boa decisão.

Em que ano é que foi para Nova Iorque?
Foi mais ou menos há cinco anos.

Apesar de se considerar “uma bebé” na representação, nos filmes que fez viveu mulheres muito diferentes: Uma mulher de 40 anos, uma princesa que tenta sobreviver num cenário de destruição, agora uma psicopata.
Esses filmes foram muito bons para mim, mas em Hollywood o que eles querem ver o que está no ecrã, e a única coisa que eu tenho para mostrar, assim de valor, é ‘The Eyes of My Mother’. As coisas, se não passaram no cinema e não tiveram críticas boas, aqui não contam muito.

Sempre sonhou com Hollywood. Que tipos de papel gostava de fazer num futuro próximo?
Uma das razões de eu querer ser atriz é que eu posso experienciar vidas diferentes. Gosto muito, muito daquilo que faço e sinto-me uma pessoa muito abençoada por ter a oportunidade de ter um trabalho que é mesmo a minha paixão, por isso eu quero experimentar todos os tipos de papéis possíveis. Acho que isso é que é a beleza de ser ator: posso ter imensas vidas numa só. Adorava ser uma super-heroína um dia, de fazer filmes que exijam uma preparação física.

Filmes de ação, por exemplo?
Sim, adorava fazer isso. Não sei porquê, mas gostava de passar três meses só a treinar. Gosto de papéis que exijam pesquisa e que sejam desafiantes. Gosto de fazer pessoas malucas e gostava imenso de um dia fazer a versão feminina do Joker.

No filme ‘The Eyes of My Mother’ há umas deixas em português. Sente falta de representar na língua materna? Fazer cinema em Portugal está nos seus planos?
Adorava se isso acontecesse. Adorava. Nunca trabalhei num grande projeto em Portugal. O papel que tive nos ‘Morangos com Açúcar’ foi uma deixa, uma coisa mesmo muito pequenina. E espero que surjam propostas. Vamos ver. Gostava que surgissem propostas interessantes agora que o filme está a passar aí em Portugal. Estou completamente aberta a essa possibilidade. Adoro o meu país e representar em português é uma coisa bastante diferente que ainda não tive muita oportunidade de fazer. E há diretores portugueses novos que estão a apostar em filmes independentes, a passarem em festivais. Adorava trabalhar com eles.

Qual foi o último filme português que viu?
Foi o ‘Mil e Uma Noites’, do Miguel Gomes.

E gostou?
Gostei imenso. Esse era um dos diretores com quem adoraria trabalhar.

A receção a a este filme nos EUA foi bastante positiva. Que reação espera do público português?
Não sei. Tenho um bocado de medo [risos], porque é um filme que mexe imenso com Portugal e é muito diferente, que não é para todas as audiências. É um filme a preto e branco, em que há poucas falas, com imagens horríveis. Acho que vai mexer com os portugueses porque também é falado em português e depois tem os fados da Amália. Tenho um bocado de receio, mas fiz essas referências com a melhor das intenções. Já tive americanos a contactarem-me para dizer que compraram o CD da Amália, porque adoraram as músicas. Mas acho que como atriz tenho de estar preparada para o pior e para o melhor.