Laços, rendas e bordados: a moda que já foi masculina e os homens querem de volta

destaque gucci

Laços, rendas, folhos e estampados nem sempre foram símbolos de feminilidade. Durante 300 anos, estes elementos foram usados com orgulho e aprumo pelos homens, entretanto pilhados pelas mulheres. Agora, eles querem-nos de volta. Embarque nesta contagiante viagem por códigos femininos e masculinos e como a história nos mostra que andaram sempre a par e par.

D. João V

D. João V era considerado um dos homens mais bonitos da Europa. Um rei cobiçado
não apenas pelas riquezas que ostentava sem pudores – todas elas fruto
do ouro brasileiro – mas também pelos seus olhos amendoados, sobrancelhas bem
desenhadas, lábios delineados e testa alta, detalhe que ainda hoje há quem interprete como um sinal de inteligência. Um verdadeiro jackpot genético, que reencarnou na figura de Paulo Pires, na série Madre Paula, transmitida pela RTP1, em 2017. Poderíamos mesmo atrever-nos a dizer que, se nascesse hoje outro D. João V, continuaria a arrancar suspiros, sendo que nos tempos modernos teria a grande vantagem de não precisarm de enclausurar as amantes no convento. O caso complica-se quando nos deixamos de focar nos traços fisionómicos do rei e olhamos para o quadro por inteiro: é que apesar de ter a perfeição de Adónis, ao contrário deste, o rei não vai nu. Da indumentária real destacam-se
os bordados, as laçadas, os folhos, as rendas e até, imagine-se, os saltos altos. Era esta a moda do século XVIII, e era assim que os homens mais másculos e viris se vestiam: com frufrus da cabeça aos pés. Adornos exagerados que hoje são associados ao vestuário feminino, mas que em tempos foram considerados extremamente masculinos.

O mais impactante é que não se tratava de uma moda passageira, mas sim de uma tendência que durava, há pelo menos, 200 anos. A ideia de que roupa muito adornada é para meninas é bastante recente. «No século XVIII, vê-se uma grande correspondência entre a moda feminina e masculina, apesar de as saias e os volumes da moda feminina serem reservados às mulheres, os elementos como rendas, bordados e folhos eram transversais. No fundo, o vestuário feminino e masculino andou sempre a par ao longo da história», explica Anabela Becho, investigadora e historiadora de moda.

Regras do traje masculino do Sec. XVII. Pinterest

Até à Idade Média, as indumentárias femininas e masculinas eram bastante semelhantes. Antes do século XV, a base do vestuário era composta por túnicas, drapeados sobrepostos e alguns adornos. No entanto, à medida que os tempos foram passando, as mulheres começaram a marcar mais as cinturas, e as túnicas do homem foram subindo e deixando à vista o que seriam os primórdios das calças, apesar de serem muito mais semelhantes às leggings dos tempos modernos.

No século XVIII, era assim que os homens mais másculos e viris se vestiam: com frufrus da cabeça aos pés. Adornos exagerados que hoje são associados ao vestuário feminino, mas que em tempos foram considerados extremamente masculinos.

Os tecidos, esses, foram ficando mais ricos e, à medida que a Europa desbravava o mundo,
mais cores, pedras e bordados eram aplicados ao vestuário. No entanto, esta ostentação multicultural era transversal a homens e mulheres, mas não se estendia a todas as classes. A roupa implicava um rótulo social. É nesta sociedade etiquetada por classes, mas ainda bastante jovem na arte protocolar, que surge a necessidade de criar um manual de
boas maneiras. Em 1558 nasce o primeiro livro de etiqueta da História, pela mão do italiano Giovanni della Casa. Como seria de esperar, não foi preciso muito tempo até que o dress code fosse inventado e devidamente estipulado – ainda no século XVI é publicado ‘The Tailor’s Book’, um catálogo ilustrado que mostra como se deve vestir cada pessoa tendo em conta a sua posição social. Mandavam os bons costumes da altura que homens e mulheres da alta-roda abusassem das mangas de balão, franzidos, laços, bordados e renda. Ornamentos estes que não só transitaram para o século seguinte como se tornaram mais exuberantes. Estávamos em plena época barroca e o fausto da corte europeia não ficava atrás da exuberância do retábulo da Igreja de São Roque, templo lisboeta que também data do século XVII e mistura o estilos arquitetónicos barroco e rococó que influenciaram a moda da altura.

Da alegria dos floreados, aos traumas de guerra

A grande questão é como é que depois de 300 anos de exagero, no que diz respeito à forma de vestir, a roupa masculina se simplificou tanto. Esta mudança radical teve início no século XIX com a Revolução Francesa e a proliferação do lema «Liberdade, Igualdade e Fraternidade», altura em que toda a opulência que espelhava as enormes diferenças sociais foi banida.

«No decorrer do século XIX começou a ver-se uma crescente sobriedade no vestuário masculino. Mas foi no século XX que mais se simplificou, tal como o vestuário feminino que também ficou bastante mais simples nesta altura», esclarece Anabela Becho.

Após a Segunda Guerra Mundial assumiu-se um convencionalismo muito grande. O homem tinha de ter uma postura de sobriedade, voltou-se aos valores mais tradicionais. A imagem dos homens, na altura, tinha de ser muito credível porque eram considerados o pilar da família.

Mais uma vez aqui a moda mantém o vestuário feminino e masculino a par e passo. Até que
nos anos 50, após duas guerras mundiais que provocaram mudanças irreversíveis na sociedade, tudo muda e começa a haver uma distinção clara de género no guarda roupa. «O que aconteceu é que após a Segunda Guerra Mundial assumiu-se um convencionalismo muito grande. O homem tinha de ter uma postura de sobriedade, voltou-se aos valores mais tradicionais. A imagem dos homens, na altura, tinha de ser muito credível porque eram considerados o pilar da família. A diferença entre o vestuário feminino e masculino é marcante na década de 1950 com as mulheres com uma cintura muito marcada, um arquétipo feminino, e o homem de fato escuro e sóbrio», esclarece Anabela Becho.

Fotografia dos anos 50 do século passado. Pinterest

Nesta altura da história as convenções em relação ao género são mais marcadas do que nunca. «A maneira de ver o homem na sociedade começou a ser mais rígida. Os homens começaram a ser vistos de maneira muito mais austera, com uma forma de vestir de comando. Enquanto as mulheres passaram a vestir-se de modo mais adornado para mostrar o status familiar, que o “uniforme” masculino não permitia», descreve a designer de moda Alexandra Moura.

Regresso ao futuro

Volvidos 68 anos, assistimos a um fenómeno interessante: o regresso dos adornos, hoje considerados femininos, ao vestuário masculino. A revolução começou de forma tímida em 2016, e é hoje mais evidente do que nunca. O grande rosto da mudança é Alessandro Michele, que ao leme da Gucci propõe roupa para homem em que não faltam os laços, os brilhos, os folhos, os padrões e até os vestidos. Nos desfiles da casa italiana tornou-se difícil distinguir homens e mulheres. Os passos são dados ao ritmo da atualidade e com a pulsação dos movimentos culturais que andam soltos pela rua.

Gucci Coleção Cruise 2019. REUTERS/Jean-Paul Pelissier

«A sociedade está a dar um grito de liberdade e quebra de padrões. Vivemos um tempo de liberdade de expressão. Esta apropriação de símbolos tem muito que ver com a necessidade de nos afirmarmos enquanto indivíduos, a tendência é deixarmos de ter rótulos. Esta é uma tendência social, não é só de moda», reflete Alexandra Moura. Uma análise com a qual o designer Luís Carvalho concorda: «Esta mudança tem que ver com identidade de género, com uma aceitação de que as pessoas podem vestir-se como quiserem. As mentalidades estão a mudar.»

Apesar de ser a Gucci o estandarte mais visível desta revolução, são muitos os designers que têm percorrido este caminho.

Também Graziela Sousa, professora de Design de Moda na FAUL, partilha da mesma opinião
que os criadores portugueses: «Acredito que a emancipação de género, mais do que a orientação sexual e a identidade de género, é a grande motivadora desta tendência. Antes de tudo o resto as pessoas pensam no modo como se vão apresentar ao mundo, antes até de ponderarem uma mudança de sexo.»

Palomo Spain primavera-verão 2019. Pinterest

Apesar de ser a Gucci o estandarte mais visível desta revolução, são muitos os designers que
têm percorrido este caminho. Um bom exemplo é a marca Palomo Spain que veste homens de forma absolutamente feminina. Mas como todas as rebeliões, que normalmente começam em grupos pequenos e se alastram, também esta já chegou à moda massificada, sendo cada vez mais as coleções unissexo que proliferam. No mercado português destaca-se a recém-lançada coleção andrógina de Diogo Miranda. Internacionalmente, a moda não é nova e já chegou ao mercado de criança – é exemplo disso a coleção infantil da Tommy Hilfiger que propõe jeans com estrelas para o menino e para a menina.

Para Graziela Sousa «esta é uma mudança de paradigma que veio para ficar. Podemos voltar a passar por momentos mais cinzentos mas vamos sempre ficar com esta possibilidade de quebrar os códigos de género. Vejo nos meus alunos esta avidez de quebrar as regras.»

Arriscamos dizer que os manuais de História da Moda associarão o século XXI à apropriação dos símbolos femininos para o vestuário insípido dos homens, num revivalismo claro dos séculos XVI, XVII e XVIII.

Uma paixão antiga: Igualdade de género e moda