Leia a entrevista com Bruno Gascon, realizador do filme ‘Carga’

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Um cenário serrano, frio e isolado, dois meses e meio de rodagem, e um elenco de luxo comprometido com a arte do cinema e uma causa: fazer um filme que mostre uma realidade frequentemente escondida, o tráfico de seres humanos. Foi assim que nasceu ‘Carga‘, a primeira longa-metragem do realizador português Bruno Gascon, que estreia a 8 de novembro e que pretende abanar consciências e alertar para um problema quase invisível na sociedade. São cinco letras para definir a lógica do submundo das redes de tráfico e um peso que o realizador quer ver partilhado com o público e os cidadãos, em geral.

“A mensagem foi, antes de mais, demonstrar que essa realidade existe, que pode acontecer a qualquer um, ao nosso vizinho do lado, à nossa família e a nós. Nós não estamos livres disso.” Colocarmo-nos no lugar do outro. Ou como diz a frase de remate ao filme, ‘Podias ser Tu’. Foi também a colocar-se no lugar do outro que Bruno construiu as personagens deste ‘Carga’. Por isso, são complexas, responsáveis pelas suas escolhas e cinzentas, como as montanhas da Serra da Estrela que serviram de cenário às suas histórias. Histórias de mulheres e de homens que escolhem caminhos, alguns sem volta, e que mudam para sempre o curso da sua vida e da dos outros.

Bruno Gascon explica-nos, em entrevista, o que o motivou a fazer um filme sobre esta temática e como reuniu este elenco, no qual Sara Sampaio faz a sua estreia como atriz.

‘Carga’ é a primeira longa-metragem do realizador lisboeta [Fotografia: Paulo Spranger/Global Imagens]

 

Por que razão quis explorar este tema, fazer um filme sobre o tráfico de seres humanos?
Há 10 anos, sensivelmente, quando voltei para cá – depois de ter estudado em Amesterdão – fiz uma série de documentários para a RTP1 e RTP2, que tratavam muito estes temas. Ou seja, problemas sociais muito ligados às questões das migrações, de tráfico de seres humanos. E eu sempre fiquei com esta ideia na cabeça e ouvi muitas histórias dessas pessoas, que muitas vezes não as podem contar, e quis dar-lhes voz. A história da Viktoriya, que é uma personagem fictícia, tem muitas fontes de inspiração baseada em várias pessoas e nas várias histórias que eu ouvi. Sempre quis contar o que há por detrás, porque muitas vezes, infelizmente, só se ouve um lado. Tem de se dar o lado bom e o lado mau das coisas. Ao contar-se o lado mau vai fazer-se com que se quebrem certos tabus e certos problemas que a nossa realidade e a nossa sociedade têm. E se é possível eu contá-los desta maneira, em forma de ficção, acho que as pessoas vão entende-los muito melhor e a mensagem acaba por passar na mesma. O problema muitas vezes é que ainda existe um certo tabu a falar das coisas. E acho que não se pode ter esse problema. Só se ultrapassam certo tipo de questões e de problemas sociais se falarmos deles. Ou seja, estar a chutar para o lado e dizer que as coisas não existem, não é propriamente uma forma de evitar que os problemas aconteçam e a minha ideia é essa. Agora fiz esta longa-metragem sobre tráfico de seres humanos, mas as minhas curtas-metragens anteriores também tinham a ver com problemas sociais, tinham a ver com a esquizofrenia e com o suicídio. Na curta anterior, tive apoio da Linha SOS Voz Amiga, percebi que as pessoas que queriam ligar tinham de ligar entre as 16h e a meia-noite…

Fora desse horário não tinham ninguém do outro lado…
Não tinham hipótese. Agora já não, porque conseguiram melhorar isso, mas para ligar e pedir ajuda tem de se pagar. E estava uma pessoa num escritório minúsculo, com um telefone vermelho, que estava lá à espera que o telefone tocasse. E quando o telefone toca já se sabia o que é ia acontecer, já se sabe que é alguém a pedir ajuda. E tudo isso tocou-me muito e ouvi muitas histórias de suicídio que marcaram muito. Tento mostrar uma realidade cruel, mas acho que é necessário, para que as pessoas vejam. Muitas vezes têm de levar esse murro no estômago para perceberem que as coisas existem. Pode ser duro, é verdade, mas acho que tem de ser falado. As coisas têm de ser faladas. Se se estiver sempre a empurrar para o lado, acho que nunca se vão resolver. É uma ficção, é cinema, e tem de se contar uma história. Mas o cinema também serve para isso: contar essas histórias, e se essas histórias puderem ter um significado, melhor.

Que mensagem quis passar com este ‘Carga’?
A mensagem foi, antes de mais, demonstrar que essa realidade [do tráfico de seres humanos] existe, que pode acontecer a qualquer um, ao nosso vizinho do lado, à nossa família e a nós. Nós não estamos livres disso. E é fazer também um alerta para as pessoas estarem atentas, porque, sendo um problema global, muitas vezes está encapotado por outros problemas. Por exemplo, o tráfico de seres humanos pode estar encapotado pela prostituição. E como é um problema que não pode ser falado, não pode ter um rosto, porque quando as redes de tráfico são apanhadas e as vítimas são salvas, muitas vezes não podem dar a cara, porque os raptores conhecem as suas famílias, sabem onde elas moram e elas vivem enclausuradas e com medo. Acima de tudo, é um pouco dar voz a essas pessoas e lembrar que nenhum de nós está livre disso. Até porque depois de ter lido muito coisa e ter estudado muitos casos, vi que, no tempo da ultima crise, em Portugal existiu, não tanto tráfico sexual, mas muito tráfico laboral… de portugueses.

Dentro do mundo do tráfico de pessoas, escolheu a realidade do tráfico sexual, que atinge sobretudo vítimas do sexo feminino. Porquê?
Acima de tudo tratei o tráfico de mulheres, e o tráfico sexual, porque acho que toca mais as pessoas. A sociedade está em evolução e hoje ouve-se falar muito sobre a igualdade de género. Mas, de certa maneira, e apesar de as mulheres neste filme serem as personagens mais poderosas, quis retratar e quis demonstrar que ainda estamos a um passo largo de alcançar essa igualdade. E temos de fazer alguma coisa para mudar isso.

As mulheres, no filme, são vítimas, na sua condição de traficadas, mas não são totalmente vitimizadas. Consegue empoderá-las, digamos.
Sim, porque normalmente nos filmes deste tipo, as mulheres são vítimas e os homens são indestrutíveis e com o poder físico. E aqui eu quis dar o poder às mulheres. O poder físico pode estar maioritariamente nos homens, mas o poder mental é das mulheres, e eu quis dar-lhes esse poder no filme, porque normalmente é mostrado o inverso. E acho que já está na hora e já chega de estarmos sempre a ver que as personagens poderosas são os homens e as mulheres são sempre colocadas de lado e postas para baixo. As coisas têm de começar a ser iguais e a ser vistas de outra forma e a sociedade só tem a ganhar com isso e nós evoluímos.

Não teve contacto direto com vítimas de tráfico para fazer este filme, como é que chegou então às realidades vividas por essas pessoas?
Li muitos casos, fui ouvindo histórias, porque temos a parceria da Associação para o Planeamento da Família, que, em Portugal, combatem o tráfico de seres humanos e ajudam vítimas. E fui baseando o meu processo naqueles casos que fui lendo, nas movimentações das redes de tráfico de seres humanos, como é que elas se movimentam, como é que operam e atuam, o que é que acontece àquelas mulheres, como é que elas são guardadas. O meu processo passou muito por aí, por ler muitos casos, porque, como disse, não tive acesso a essas mulheres, a falar diretamente com pessoas, e tentar perceber. E por me meter muitas vezes na pele daquelas pessoas. Quando estou a criar as personagens, tento meter-me na posição delas e perceber o que é que eu faria naquele lugar, seja as mulheres vítimas da rede de tráfico, seja o chefe da rede, o camionista ou a mulher que faz parte dessa rede. Tento sempre, mediante todo aquele processo e o passado que as personagens têm, perceber de que forma é que vão agir.

“As pessoas vão ficar surpreendidas por ver a Sara Sampaio atriz e não a Sara Sampaio modelo. Ela disse que já tinha recebido muitos guiões portugueses, mas identificou-se muito com a temática deste e da personagem.”

E não são, cada uma delas, personagens muito planas. Há sempre um grau de complexidade.
Gosto de criar essas personagens cinzentas, porque nós, na vida real, também temos camadas. E gosto de criar essas camadas porque todas as pessoas têm uma bagagem e o mesmo acontece com as minhas personagens. Isso vai definir a sua forma de agir, a sua forma de falar, os gestos que têm. Vem tudo desse passado. Não existem pessoas boas e pessoas más, existe sempre esse lado cinzento e eu gosto de atribuir-lhes esse lado. A Viktoriya, que é a personagem principal, interpretada pela Michalina Olszanska, mesmo ela tem um lado cinzento, que se vai ver no filme, se fosse tudo preto ou branco, ela não teria. Mas se fosse na nossa realidade essa personagem provavelmente iria reagir dessa forma. E é esse lado que faz com que as personagens se tornem mais reais. Há uma coisa que eu pus em todas as personagens que tem a ver com características nossas, que é todas elas têm uma escolha, todas têm um caminho. E, tal como nós, muitas vezes entre fazer o bem comum e salvaguardar-se a si mesmo, todas elas escolhem esta, a chamada lei da sobrevivência. No filme inteiro, existe uma ou duas personagens que têm esse rasgo de fazer o bem comum. Eu quis trazer essa característica para dar ainda mais realismo às personagens. E neste filme eu quis mostrar que o tráfico de seres humanos não afeta só as pessoas que lá estão, mas também as que as rodeiam, e essas pessoas não conseguem ter essa perceção. As redes não afetam só as raparigas que foram traficadas, afetam as famílias, os amigos, os vizinhos, afeta um grupo de pessoas. E também quis mostrar isso.

E, com isso, mostra também as ramificações dessas redes na sociedade, que são mais extensas do que se possa pensar.
Exatamente. Quando estava a escrever o guião ouvi histórias de como funcionam as redes de tráfico de seres humanos. Elas funcionam como um polvo, se se cortar um tentáculo, continua a haver os outros tentáculos na mesma. Imaginemos que é descoberto o modus operandi de uma das formas da rede de tráfico de seres humanos. Eles cortam esse tentáculo mas arranjam forma de criar outro, criam novas maneiras para que a rede não acabe, trocam esse modus operandi todo. É muito complicado e acho que ainda falta preparação com essas redes.

Os temas sociais têm feito parte do percurso cinematográfico de Bruno Gascon, que também passa pelos documentários.

Como reuniu este elenco internacional, também composto por atores portugueses que não trabalham sempre em Portugal?
Sendo uma primeira longa-metragem, fiquei sempre com algum medo que as pessoas tivessem receio de aceitar [participar]. Mas eu tinha escrito para aqueles atores, exceto para a Michalina. Decidi contactar esses atores e a partir daí foi facílimo. Não houve nenhum que me tivesse dito que não. Posso contar a história da Rita [Blanco], por exemplo. Tive um encontro com ela e ela passado cinco minutos disse: ‘vocês já sabem que eu aceitei, não é? Para eu estar aqui é porque já aceitei’. Apesar de tudo foi um processo muito fácil, falar com os atores e eles aceitarem assim na hora. E todos eles foram fantásticos e criámos uma relação tão próxima, que fiquei amigo de praticamente todos.

“Tento mostrar uma realidade cruel, mas acho que é necessário, para que as pessoas vejam. Muitas vezes têm de levar esse murro no estômago para perceberem que as coisas existem.”

E em relação à Michalina? Disse que tinha sido diferente.
No caso da Michalina, já estava na hora de escolher a atriz para fazer a personagem principal e tinha sempre imaginado uma pessoa russa para aquele papel. Comecei a pesquisar online e descobri a primeira curta-metragem que a Michalina fez. Depois mostrei à minha produtora e disse é esta a rapariga. E ela respondeu: ‘Mas ela não é russa, é polaca. Tens a certeza que queres esta pessoa?’ E eu disse que sim e que tinha certeza absoluta que seria a pessoa ideal para este papel. Então entrámos em contacto com ela, via Facebook, e ela disse para lhe enviar o guião. Eu enviei-lhe o guião e ela passado um dia enviou-me um email a dizer que aceitava e que me dava uma ideia para o filme, que eu não posso dizer, senão vou fazer spoilers do filme.

Uma das surpresas deste filme é a participação da Sara Sampaio. Por que é que pensou na Sara para o papel da Anna?
Para já, vamos vê-la num registo em que habitualmente não a vemos, e acho, sinceramente, que as pessoas vão ficar muito surpreendidas com isso. Mas eu escolhi a Sara, para além de ela já ter o sonho de ser atriz e de estar a estudar para isso, porque quis que aquela personagem, especificamente, representasse os tentáculos das redes de tráfico que atingem a moda – existem muitos [falsos] “castings”, em que dizem às miúdas para irem ter a hotéis à noite, por exemplo. E eu quis que aquela personagem fosse a voz desse grupo de pessoas. E quem melhor do que a Sara para fazer isso? Inclusivamente ela contou-me histórias, que tinha ouvido falar, sobre isso. É a Sara Sampaio, mas acho que as pessoas vão ficar surpreendidas por ver a Sara Sampaio atriz e não a Sara Sampaio modelo. Ela disse que já tinha recebido muitos guiões portugueses, mas identificou-se muito com a temática deste e da personagem. E a Sara é extremamente humilde e extremamente trabalhadora.

Começou por dizer que o tráfico de pessoas é um tema tabu, mas parece ter sido o fator que levou os atores a essa aceitação imediata, como se também tivessem ficado satisfeitos por alguém tratar este tema.
Mais uma vez vou citar a Rita Blanco. Quando comecei a falar do tema em si e que existia em Portugal, a Rita foi das poucas pessoas que me disse assim: ‘Sim, sim. Eu sei que existe.’

E também já fez um filme sobre esta temática, o ‘Noite Escura’…
Exatamente e ela acha muito bem que se fale de forma aberta sobre isto. Todos eles, pelo tema e também pelas personagens, acharam que era um filme que devia ser feito. E todos eles, sem exceção, trabalharam muito para este filme. Não houve exigências nenhumas, foram extremamente abertos e todos deixaram o seu cunho pessoal neste filme.

Outra das surpresas neste elenco – e um regresso ao cinema português – é a Ana Cristina de Oliveira, que está quase irreconhecível, no papel de Sveta.
Sim. Acho que a Ana Cristina, com o currículo que tem, já ganhou prémios de cinema, esteve nos Estados Unidos a viver muito tempo e voltou para cá. É uma atriz enorme, conheci-a através da agência Central Models, falámos e tivemos várias reuniões e achei que ela era a pessoa ideal para aquele papel e que iria encarnar aquela personagem de uma forma perfeita. E ela está fantástica no filme.

A ação de ‘Carga’ é passada na zona da Serra da Estrela. Porque escolheu esse cenário para rodar o filme?
Eu queria que o filme fosse muito cinzento e tem muitos tons de azul, a neve, porque o azul e o cinzento remetem-nos para a frieza. E eu queria que ele tivesse alguma frieza e algum distanciamento. Daí escolher a Serra da Estrela e sítios isolados que nos pudessem dar essa frieza não só ao tom do filme, mas a toda a psicologia à volta dele.

O realizador coma atriz Michalina Olszańska, na gravação de uma das cenas do filme [Fotografia: Luis Sustelo]
Este filme tem uma vida para lá das salas de cinema. Além do livro homónimo, que é lançado este mês, que outras iniciativas estão pensadas?
O filme é para maiores de 16, mas acho que devemos levar o filme a escolas secundárias, e a faculdades, para alertar as pessoas para o tema do tráfico de seres humanos, para que estejamos todos mais atentos. Estamos a pensar nisso, ir a escolas exibir o filme, estamos a tentar levá-lo para outros países. Já foi vendido para a China, temos o interesse do Japão e vamos estar num país europeu, que ainda não posso revelar. A nossa ideia é conseguir fazer com que o tema continue a estar no dia-a-dia das pessoas, para que não deixem cair um problema silencioso, onde as pessoas não têm cara.

 

Design multimédia: Lília Gomes

‘Carga’ estreia a 8 de novembro. O Delas.pt dedica um dossier especial ao filme que trata o tráfico humano

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