Lisa Perrotti-Brown: “Durante muito tempo, as mulheres não foram levadas a sério na indústria do vinho”

Lisa Perrotti-Brown é, hoje, uma das mulheres mais influentes no universo da crítica de vinhos. Nasceu numa cidade pequena no estado do Maine, EUA, quis ser guionista, mas acabou apaixonada pelo incansável mundo dos vinhos. Desde 2012, que é diretora da grande revista de referência da área, a Wine Advocate, criada pelo famoso crítico Robert Parker, responsável por um dos sistema de pontuação de vinhos mais populares do mundo.

A norte-americana esteve recentemente em Cascais, a convite do MUST, um wine summit made in Portugal, que reuniu críticos, jornalistas, produtores, enólogos de todo o mundo para discutir as grandes tendências do vinho e as novidades na indústria. O evento realizou-se no Centro de Congressos do Estoril, de 26 a 28 de junho, e o Delas.pt esteve à conversa com Lisa Perroti-Brown sobre o seu percurso, o paladar feminino e a importância das mulheres num universo tipicamente dominado por homens.

É a sua primeira vez em Portugal?
Só vim uma vez a Portugal, mas já passaram muitos anos. A primeira vez que visitei era uma estudante a viajar pela Europa com a mochila às costas, tinha cerca de 20 ou 21 anos. Estava a estudar Shakespeare em Londres porque queria ser uma guionista.

Chegou a trabalhar nessa área?
Escrevi algumas peças em Londres e consegui que fossem produzidas, mas precisava de ganhar algum dinheiro, então comecei a trabalhar num bar em Londres, na zona de Pimplico, não muito longe do Palácio de Westminster. Eu conhecia o gerente do bar e, quando ele saiu, fui convidada a ficar com a posição dele. E eu não sabia nada sobre vinho.

Mas interessava-se pelo tema?
Bebia apenas vinhos socialmente, mas não sabia nada sobre eles. Eu nasci numa zona rural no Maine, EUA, no meio do nada, e não havia adegas de vinhos por perto. A cidade era pequena, com apenas cinco mil pessoas, e a primeira vez que descobri o vinho foi já na faculdade, quando estudava literatura inglesa e artes performativas. Depois fui para Londres estudar Shakespeare durante um ano, mas até aí nunca tinha sido exposta a vinho de boa qualidade.

Quando decide investir na sua formação?
Na semana em que assumi o cargo de gerente inscrevi-me nos WSET (uma das principais instituições que certifica os profissionais da área). No bar já pensavam que eu percebia de vinho, então tive de estudar e apaixonei-me por esse mundo. Trabalhei nesse bar cinco anos e depois passei por várias áreas ligadas ao vinho. Fui trabalhar para um dos mais antigos distribuidores de Londres e vendia vinho aos restaurantes Michelin. Mais tarde, mudei-me para uma companhia que distribuía grandes volumes para supermercados e depois mudei-me para Tóquio, porque o meu marido era banqueiro aí. Trabalhei como formadora, antes de me tornar importadora também no Japão.

Na altura já era Master of Wine (ou Mestre de Vinho, a classificação máxima que estes profissionais podem alcançar – existem apenas 300 no mundo inteiro)?
Não, estava ainda a estudar para os exames. Mas foi em Tóquio que conheci o Robert Parker, de todos os sítios no mundo onde nos podíamos ter cruzado. Ele estava no Japão para fazer uns eventos, uns jantares vínicos de alta cozinha. Quando fui para Singapura viver oito anos, já colaborava com a revista Wine Advocate do Robert Parker. E, finalmente, há quatro anos mudei-me para Napa, na Califórnia, para montar o nosso novo escritório lá. Até esse ano, o nosso escritório era na casa do Robert, em Baltimore, no meio do nada, e só era conveniente para ele [risos]. Precisávamos de uma nova sede nos Estados Unidos e fazia sentido que fosse no meio da indústria do vinho. Tornei-me editora principal da Wine Advocate em 2012, e depois o Robert reformou-se oficialmente há uns meses.

Lembra-se do momento em que soube que queria fazer do vinho a sua profissão?
Foi um processo. Enquanto crescia, nunca me ocorreu que o vinho pudesse ser uma profissão. Não tínhamos nada desse género no Maine, só quando mudei para Londres é que percebi que as pessoas fazem carreiras nesta área. E Londres é um tesouro, consegue-se provar vinho de todo o mundo, vinho de grande qualidade, e é lá que estão também muitos colecionadores. O facto de ter trabalhado no bar permitiu-me provar vinhos muito diferentes e caros, o que faz toda a diferença quando se começa a estudar para o Master of Wine. Chega-se a uma fase em que estamos prontos para fazer o exame e são três dias intensos de prova e cinco dias de teoria. Para chegar a esse nível temos de provar, provar, provar.

Existem muitas mulheres com o certificado Master of Wine?
Não sei quantas, mas penso que representam cerca de 30% do total de Masters of Wine. Mas vejo cada vez mais mulheres a quererem fazer do vinho carreira. Penso que as mulheres querem educar-se, cada vez mais, nesta área.

Esta é uma indústria ainda dominada por homens?
Em algumas partes do mundo, sim. Nos países do mundo antigo ainda vemos certas áreas da indústria dominadas por homens… os comerciantes, os responsáveis pelas vendas. Mas noutras zonas do mundo, penso que a indústria oferece mais oportunidades às mulheres. É bom vermos mais produtoras mulheres. Na Califórnia e na Austrália noto alguma diferença. E mesmo nas regiões mais tradicionais, como Bordéus, começo a ver mais mulheres a herdarem os negócios dos pais e isso significa que está a acontecer uma transformação.

Fale-me sobre a sua função enquanto editora da Wine Advocate.
O meu trabalho divide-se em duas partes: sou crítica dos vinhos de Bordéus, Napa Valley e Sonoma County. E também sou a editora responsável pela nossa equipa editorial e pelos nossos críticos que são já 10, contando comigo. A equipa editorial trata da publicação das notas de prova e trabalhamos de perto com a nossa equipa de eventos, que nos ajuda a aproximarmo-nos dos subscritores. Na Wine Advocate não aceitamos publicidade, as nossas receitas vêm exclusivamente dos subscritores e de alguns eventos que fazemos.

Os críticos estão todos fixados nos Estados Unidos?
Quem me dera [risos]. Uma vez por mês fazemos uma chamada de conferência e é muito difícil conseguirmos definir uma hora porque vivemos todos em partes diferentes do mundo. Três estão na Califórnia; o Mark Squires é o provador de vinhos portugueses, mas vive na Pensilvânia; o Joseph é de Nova Iorque e o William Kelley é britânico, mas vive na Borgonha; a Mónica Larner é crítica em Itália e vive em Roma; temos o Stephan a cobrir Alemanha, Áustria e Alsácia e o Luis a fazer Espanha, Argentina e Chile. E temos ainda outro crítico em Shangai. Conseguirmos combinar uma chamada é quase impossível.

Os vossos leitores são maioritariamente homens?
Sim [pausa]. 80% dos nossos leitores são homens. Sempre tentámos perceber o porquê de não conseguíamos trazer mais mulheres para a Wine Advocate. Nós somos muito lineares no que oferecemos aos leitores: oferecemos artigos, notas de prova e pontuações de vinho. Talvez as mulheres estejam a procura de algo mais lifestyle, não sei. Mas penso que há espaço e interesse em trazer mais mulheres para o mundo do vinho, temos de as conseguir interessar mais e depois colecionar vinhos é uma consequência. Mas é preciso muito dinheiro para ser um colecionador.

As mulheres têm mais sensibilidade para provar vinho do que os homens?
Eu não noto diferenças. Há alguns fatores que explicam porque é que mulheres tendem a ter mais papilas gustativas do que os homens e tendem a provar de forma mais intensa. Dito isto, o grande trabalho de provas não se faz com o paladar, mas sim com o nariz. É uma questão de o treinarmos para conseguirmos isolar os componentes. Quando olhamos para notas de provas dos críticos, nem conseguimos distinguir se são de mulher ou de homem.

Existem casos de #metoo nesta indústria?
Já ouvi algumas histórias de horror, mas nunca aconteceram comigo. Acho que sou muito sortuda, mas poderá estar relacionado com ser crítica de vinho. Talvez noutras funções da indústria, como a de sommelier, possam existir experiências menos positivas. Mas eu trabalhei com o Robert Parker e ele nem sequer vê o género quando contrata.

É um defensor da igualdade de género?
Ele tem uma mente muito à frente. Além disso, é ilegal nos Estados Unidos perguntar a uma mulher quais os seus planos em relação à maternidade, é proibido discriminar com base se uma mulher quer ser mãe ou não. Por minha opção, nunca tirei licença de maternidade e tive duas filhas. Na semana seguinte estava a trabalhar, mas também porque tenho um marido que me apoia muito e que pôde estar presente quando eu não podia. Acho que se queres seguir uma carreira numa área tão volátil, é preciso definir uma estratégia. Eu tinha muita consciência de que não queria deixar o meu trabalho porque podia não estar lá depois, se eu saísse.

Caminhamos em direção a uma maior igualdade de género nesta indústria?
Acho que sim, mas acho que tudo depende do país onde estamos, a companhia, o setor da indústria. Vemos cada vez mais mulheres no mundo da crítica de vinhos. Durante muitos anos, foram só homens a falar sobre vinho e as mulheres não eram levadas a sério. Há uns anos, quando me tornei crítica da região de Bordéus, em França, fiquei nervosa, porque nunca tínhamos tido uma mulher nessa posição. Eu não queria saber o que pensavam as adegas e os produtores, o que me importava eram os leitores. Mas não teve impacto nenhum, claro. Desde que as tuas provas de notas estejam no ponto e apresentes consistência no teu trabalho, é absolutamente indiferente.

Qual é o maior desafio numa prova de vinhos?
Tens mesmo que treinar a tua memória. É semelhante a aprender uma nova língua, temos de encontrar um composto e associá-lo a uma palavra, uma explicação. Tal como uma nova língua, demoramos a tornar-nos fluentes. Por exemplo, a casta Syrah tem um nível elevado de um composto que existe também na pimenta preta. É por isso quando cheiras certos Syrah te lembram a pimenta preta. O vinho partilha vários componentes com outras especiarias e frutos. É por isso que usamos esse vocabulário para os consumidores perceberem.

Tem duas filhas pequenas. Alguma mostra vontade de seguir a sua carreira?
A mais velha não, mas a mais nova adora cheirar copos de vinho e dizer que cheira bem. Tenho expectativas altas para ela [risos].

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