Exclusivo: Leia um excerto do novo romance de Isabel Allende

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[Fotografia: Istock]

A fuga a tropas franquistas de uma Espanha em dissidência, na década de 30 do século passado, os refugiados e os migrantes que buscavam uma vida melhor a bordo de um navio que os levava para o Chile e meio século de História deste país.

Este é o amplo enquadramento que serve de base ao novo trabalho da escritora chilena-americana Isabel Allende, Longa Pétala de Mar, que será lançado a 7 de novembro, pela mão da Porto Editora, e que quase ameaça ligar, fruto das coincidências, a realidade atual ao passado – quase como se tudo de desenrolasse em espiral.

Afinal, trata-se de um romance que chega a Portugal numa época em que o tema da migração não podia estar mais em cima da mesa, numa altura em que Espanha volta a ser confrontada com o seu passado e num Chile que procura encontrar um caminho no meio de protestos e manifestações cada vez mais intensos.

Na nova obra, Allende mergulhou na Guerra Civil Espanhol e no exílio republicano, tudo a propósito dos 70 anos da chegada do navio Winnipeg ao Chile, sob os comandos de Pablo Neruda, e com 2200 refugiados a bordo. A autora leu documentação sobre este tempo, escutou ainda sobreviventes desse período e escreveu a história que junta os catalães Victor e Roser.

Leia abaixo o excerto de Longa Pétala de Mar.

 

 

Primeira parte

Guerra e exílio

I

1938

Preparem-se, companheiros,

para matar novamente e morrer de novo

e cobrir com flores o sangue.

Pablo Neruda

«Sangrenta foi inteira a terra dos homens»

O Mar e os Sinos

O jovem soldado pertencia à Companhia do Biberão, a leva de miúdos recrutados quando já não havia homens jovens ou velhos aptos para a guerra. Víctor Dalmau recebeu-o com outros feridos que retiravam à pressa e sem grande cuidado do vagão de carga, porque para tal não havia tempo, e que em seguida empilhavam como lenha, no chão de pedra e cimento da Estação do Norte, enquanto esperavam outro transporte que os levasse aos centros hospitalares militares do leste. Estava inerte, com a expressão beatífica de quem vira de perto a morte e já nada temia. Ninguém poderia dizer quantos dias passara, sacudido de uma maca para outra, de um acampamento de campanha para outro, de uma ambulância para outra, até que chegara à Catalunha naquele comboio. Na estação, vários médicos, enfermeiros e auxiliares recebiam os soldados, enviavam os feridos que inspiravam mais cuidados para o hospital e, seguidamente, classificavam os restantes de acordo com a localização dos ferimentos que apresentavam, assim: «Grupo A: braços; B: pernas; C: cabeça», e por aí adiante, pelo alfabeto fora. E assim os enviavam, com um cartaz ao pescoço, para a secção de tratamento correspondente. Os feridos chegavam às centenas. Era necessário diagnosticar e decidir em questão de minutos, todavia, o tumulto e a confusão eram apenas aparentes. Ninguém era deixado para trás, e todos recebiam o atendimento devido. Aqueles que necessitavam de uma intervenção cirúrgica eram reencaminhados para o antigo edifício de Sant Andreu, em Manresa, os que requeriam apenas tratamentos mais superficiais eram dirigidos para outros centros médicos, e outros mais valia deixá-los ali mesmo, porque nada havia já que pudesse

ser feito por eles. As voluntárias humedeciam-lhes os lábios, murmuravam-lhes ao ouvido palavras de consolo e embalavam-nos como se fossem seus filhos, sabendo que, nesse instante, noutro qualquer lugar, uma outra mulher procedia do mesmo modo com os seus próprios filhos ou irmãos. Mais tarde, os maqueiros levá-los-iam para a morgue.

O soldadito apresentava um orifício no peito, e o médico, após tê-lo examinado superficialmente, e tendo-o achado já sem pulso, determinou que este se encontrava além de qualquer socorro e que já não necessitava de morfina ou de consolo. Na frente de combate tinham-lhe coberto a ferida com

um trapo, sobre o qual tinham colocado um disco de metal para a proteger de qualquer contacto exterior. Sobre este rudimento, haviam-lhe envolvido o tronco com uma bandagem, mas isso ocorrera há alguns dias, algumas horas ou há algumas viagens de comboio… impossível saber.

Dalmau encontrava-se ali apenas para auxiliar os médicos. O seu dever era cumprir ordens, portanto, deveria abandonar o jovem e dirigir a sua atenção para outro ferido, mas pensou que se aquele rapaz sobrevivera ao choque, à hemorragia e ao transporte precário até chegar àquela

estação, era porque teria uma vontade sobre-humana de viver, pelo que seria uma lástima que se rendesse à morte ali mesmo, ao alcance da praia.

Retirou cuidadosamente os trapos e reparou que a ferida se encontrava aberta e tão limpa como se alguém lha tivesse desenhado no peito. Não conseguiu entender como é que o impacto do disparo destroçara as costelas e parte do esterno, sem que lhe tivesse, sem mais, pulverizado o coração.

Ao longo dos quase três anos de prática na Guerra Civil de Espanha, primeiro, na frente de Madrid, depois em Teruel e, por último, no hospital de evacuação, em Manresa, Dalmau acreditava que já vira de tudo e cria estar já imunizado contra o sofrimento alheio, mas jamais observara um coração vivo. Presenciou, fascinado, os derradeiros batimentos, até que estes se foram tornando cada vez mais lentos e espasmódicos, acabando por cessar completamente, e o soldadito terminou por expirar sem uma convulsão sequer. Por um breve instante, Dalmau ficou imóvel, contemplando aquela cavidade rubra onde já nada vibrava. Entre todas as memórias da guerra, aquela seria a mais pertinaz e recorrente: aquele miúdo, de apenas quinze ou dezasseis anos, ainda imberbe, sujo de sangue e de batalha, estendido numa esteira, com o coração exposto ao ar. Nunca conseguiu explicar a razão que o levou a introduzir três dedos da mão direita no terrível ferimento, rodear aquele órgão imóvel e começar a apertá-lo ritmicamente, com a maior calma e naturalidade, durante

um tempo impossível de recordar, talvez trinta segundos, talvez uma eternidade, até que sentiu que o coração principiava a reviver-lhe entre os dedos, primeiro com um tremor praticamente impercetível, depois, gradualmente, com mais vigor e regularidade.

– Bem, se eu não tivesse visto isso com os meus próprios olhos, não acreditava! – disse em tom assombrado um dos médicos que se aproximara sem que Dalmau o tivesse

percebido.

De um brado, chamou os maqueiros e ordenou-lhes que levassem o ferido o mais rápido possível, advertindo-os de que se tratava de um caso especial.

– Onde aprendeu a fazer isso? – perguntou a Dalmau, assim que os maqueiros levaram o soldado que, apesar de continuar a aparentar uma palidez extrema, conservava a pulsação estável.

Víctor Dalmau, homem de poucas palavras, informou-o de que estudara medicina durante três anos antes de ser incorporado na frente de combate como auxiliar médico.

– Mas onde raio aprendeu isso? – insistiu o médico.

– Em lado nenhum… mas pensei que não se perdia nada em tentar.

– Vejo que coxeia.

– Fémur esquerdo. Teruel. Estou a recuperar bem.

– Ótimo. A partir de agora vai passar a trabalhar comigo.

Tê-lo aqui é um desperdício. Como se chama?

– Víctor Dalmau, camarada!

– Comigo, nada de camaradas. E nem lhe passe pela cabeça tratar-me por tu. Vai tratar-me por senhor doutor. Estamos entendidos?

– Perfeitamente, senhor doutor. A mim, pode tratar-me por senhor Dalmau, mas desde já o aviso de que isto vai cair mal aos outros camaradas.

O médico sorriu entre dentes. A partir do dia seguinte, Víctor Dalmau começou a exercer o ofício que marcaria toda a sua vida.

Soube mais tarde, tal como todo o pessoal, tanto de Sant Andreu como de outros hospitais, que a equipa de cirurgia passara dezasseis horas a ressuscitar um morto e que conseguira trazê-lo vivo da sala de operações. Um milagre, disseram muitos; consequência dos avanços da ciência e da férrea

constituição de burro de carga do jovem, rebateram aqueles que haviam abdicado da crença em Deus e nos santos. Víctor quis visitá-lo, fosse para onde fosse que o houvessem transferido, mas, devido à agitação daqueles tempos, foi-lhe impossível localizar o jovem e dar conta dos encontros e desencontros, dos presentes e dos desaparecidos, dos vivos e dos mortos. Durante algum tempo, parecia ter esquecido aquele coração que sustivera na sua mão, porque se lhe complicou a vida e porque problemas diversos o mantiveram ocupado, mas, anos mais tarde, do outro lado do mundo, começou a vê-lo em pesadelos, e, frequentemente, o rapaz visitava-o, com o seu aspeto pálido e triste, e o coração inerte, depositado numa bandeja. Dalmau não recordava, ou talvez nunca tivesse mesmo sabido o seu nome, pelo que decidiu chamar-lhe Lázaro, por razões óbvias. Ao contrário, o soldado nunca esqueceu o nome do seu salvador. Mal foi capaz de se sentar e de beber água sem ajuda, quando lhe contaram a proeza de um tal de Víctor Dalmau, enfermeiro da Estação do Norte,

que o restituíra ao mundo dos vivos, todos o bombardearam com perguntas; queriam certificar-se da existência do Céu e do Inferno, ou se seriam estes territórios meros artefactos concebidos pelos clérigos apenas com o intuito de assustar os crentes. Antes de terminada a guerra, o jovem recuperara do ferimento e, dois anos mais tarde, em Marselha, fizera uma tatuagem com o nome de Víctor Dalmau no peito, abaixo da cicatriz.