Mafalda Ribeiro: há seis anos sem mãe

Mafalda Ribeiro nasceu com osteogénese imperfeita. Os médicos deram-lhe pouco tempo de vida. Hoje, com 34 anos, é uma mulher independente que se habitou às dificuldades da vida mas ainda não à ausência da mãe. Este é o seu testemunho:

No tempo em eu que contava os trocos do mealheiro verde tropa cheguei a perguntar-lhe se tinha vindo nascer dias depois do Dia do Pai só para me levar à falência. Ela ria-se alto com aquele sorriso largo, que iluminava todos os metros quadrados onde se encontrasse, e dizia: “a minha prenda és tu!

Não lhe compro prendas há seis anos. E desde aí, ano após ano, é como se o calendário marcasse um dia totalmente em branco. A minha mãe faria 60 anos.

Se fazer anos é contar a vida, então ela só os fez (para ela e para nós) até aos 53. Agora continua a fazê-los apenas dentro de mim. Se fazer anos é celebrar a vida, independentemente de quanto se viva aqui, então o 23 de março permanece como o Dia da (minha) Mãe. A única coisa que mudou é que o meu GPS não me pode levar à morada onde a festa está a acontecer. Ou eu tenho de me habituar ao facto de não ser convidada. E viver com isso.

Herdei-lhe o gosto pelos livros, pelas letras, pela escrita e o sorriso rasgado, mesmo quando as histórias não tinham um final feliz. Ela sorriu sempre, até na nossa história que não teve um início feliz. Por isso é natural que nas datas significativas eu me sinta como se me tivessem roubado o livro, que era a minha própria biografia, sem me deixar ter chegado ao final da história. Quando eu nasci, por culpa da minha nula esperança média de vida, ainda com ela meio anestesiada da cesariana, decidiram secar-lhe o leite porque “não ia valer a pena”. Eu nunca provei o leite materno sequer. Interromperam-nos.

Quando ela morreu, a caminho do meu trabalho, ao volante, para me ir buscar, depois de uma conversa banal de cinco minutos ao telefone sem um “amo-te” no final, foi como se nos tivessem desligado pela segunda vez. Interromperam-nos.

Houve uma palavra que a partida da minha mãe não teve a capacidade de me proteger: “orfã”.

Não tive qualquer poder sobre o que nos aconteceu, mas sei que tenho responsabilidade na forma como lido com isso. Até porque fui educada por ela a não deixar nada a meio. A forma que arranjei para manter intacto o canal que nos liga, que hoje une a terra ao céu, é contar-nos aos outros. É usar as palavras para libertar amor. É escrever esperança no final de cada frase. É continuar a história levando-a a todas as plateias que me vêem a sorrir sobre rodas. É honrar o trabalho que ela fez em mim, colocando-o ao serviço de quem precisa de retomar a rota, depois de uma qualquer interrupção. É motivar pela empatia e pela compaixão. Afinal, pôr-se no lugar de alguém que se desloca de cadeira de rodas desde sempre é um exercício menos comum do que colocar-se no lugar de alguém que se viu a braços com a perda de alguém querido.

A minha mãe fez tudo para me proteger da palavra “deficiente”, dando-me as ferramentas necessárias para que eu mesma me pudesse defender de qualquer tentativa de discriminação. Atualmente, na minha atividade profissional como oradora em palestras, conferências, congressos, etc. sou convidada para basicamente contar como é que “eu dou a volta a isto” da deficiência. Mas isto da deficiência em mim nunca teve nada para se dar a volta. A única coisa que eu tenho de mandar ir dar uma volta continuamente é o preconceito.

Ainda assim houve uma palavra que a partida da minha mãe não teve a capacidade de me proteger: “orfã”. Essa faz muito mais mossa do que as amolgadelas que eu faço nos rodapés da minha casa com a minha cadeira de rodas. Como é que se “dá a volta a isto”? Vai-se à mesma caixa de ferramentas e retira-se a chave de fendas do amor, o martelo da gratidão, fita dupla face da fé e o alicate da paciência. A seguir, aprende-se a descansar à sombra do Omnipotente, enquanto Ele faz o seu trabalho de bate-chapa em nós. Isto foi o que ela me ensinou. Isto é aquilo que eu provo. Isto é a única coisa que eu posso garantir (pelo menos para mim) que funciona. Portanto, é isto que eu me sinto no dever de levar às pessoas.

E as pessoas sentirão sempre a necessidade de dizer alguma coisa, em dias assim. “Parabéns à tua mãe, aonde quer que ela esteja!”, por exemplo. Prefiro os parabéns a mim porque a tive e ela vai ser sempre a minha mãe mesmo sem bolo, velas para apagar, prendas, festa ou surpresas.

Eu sei onde ela está e é isso que faz com que o meu sorriso, feito do dela, seja ainda mais luminoso.