Margarida Rebelo Pinto: “O sexo é a cola do mundo”

Antes que seja tarde é o 25º livro de Margarida Rebelo Pinto. A escritora portuguesa volta, como em Português Suave, a fazer um retrato da sociedade portuguesa através da visão de três gerações de mulheres, desde 1960. As várias personagens femininas são desenhadas com vidas amorosas intensas, diversas e com caminhos tortuosos, protagonistas de grandes histórias de amor, por vezes no lugar da amante. A autora regressa aos temas que lhe são caros: o sexo, o erotismo e a paixão como parte intrínseca da Humanidade e a impossibilidade de controlar tudo na vida. Este romance, onde o amor e a traição andam de mãos dadas, mostra que nem sempre é possível conciliar o coração com a razão.

Este é um livro que reúne três gerações de mulheres que em comum têm a paixão e a traição. Além dos amores e dos desamores o que podemos encontrar nesta obra?

Só existem duas realidades incontornáveis na condição humana: o amor e a morte. Por isso tantos escritores escrevem sobre elas. Eu escrevo sempre romances de amor, sempre. Às vezes com bastante desamor lá no meio, porque o desamor também faz parte do amor. E nunca me vou cansar, porque há sempre tantas histórias, tantas vivências diferenciadas, tantas formas de sentir. Todos os corações são diferentes, cada pessoa sente à sua maneira e ama à sua maneira e sobretudo cada pessoa ama como pode e não como quer. E quando as pessoas sentem um amor profundo, mas não querem nem têm os mesmos objetivos, não conseguem ficar juntas. Este livro é sobre isso e também sobre “a outra”, sobre o papel “da outra” na sociedade e como foi mudando, é sobre as escolhas que se fazem ou não na fazem na vida, por isso é que se chama Antes que seja tarde. É um livro sobre mulheres lutadoras que de uma forma ou de outra tentam cumprir os seus sonhos. É o que nós andamos todos cá a fazer. Os meus romances têm sido um bom espelho do espírito feminino e da evolução da mulher portuguesa na sociedade até aos nossos dias.

Este é um livro que aliado ao romantismo traz também o erotismo.

Ampliei a condição erótica, porque acho que é muito importante. O sexo é a cola do mundo e sem desejo nada funciona. É um livro que fala de questões que as pessoas têm medo de falar, que não têm coragem ou não se sentem à vontade. Aqui há um despudor, comedido e meticulosamente pensado, palavra a palavra para revelar esses temas, esses assuntos, emoções e sentimentos de uma forma elevada. Porque a elevação também se vive a par de uma grande paixão, de uma grande história de amor. Mas fazê-lo é um grande desafio para um escritor, nomeadamente como exercício literário, porque nunca se pode levantar completamente o véu. Escrever trechos eróticos ou capítulos eróticos, como eu escrevi neste livro é um desafio incrível, é uma espécie de viagem a um destino que não sabemos bem onde é, torna-se um processo muito interessante. Eu gosto de me ver como um espelho de determinadas realidades e o objetivo é que os meus livros captem o que já passou. Por isso sou tão apaixonada por romances históricos e gosto de os escrever. Neste caso diria que este é um romance vintage, mas muito moderno. As vozes dos meus personagens são espelhos de uma determinada realidade vigente ou que já passou.

Sara é uma dessas personagens que começa por seguir o caminho da paixão e do desejo, mas mais tarde percebe que a vida que tem não se enquadra no que ela sempre sonhou e que, no fundo, não é feliz. Só o amor não chega?

A Sara é a mais fria e a mais pragmática, ela desiste da parte emocional, põe de lado o seu envolvimento erótico e físico com os homens porque sentiu que isso a desviava do seu caminho. Depois há a Cristina e a Maria do Amparo que estão mais ou menos em paralelo, com uma situação de uma relação impossível que estão a tentar resolver, mas elas não abdicam do lado emocional da vida. Isto é algo que acontece muito às mulheres a partir de uma certa idade. Como as mulheres têm que gerir muitas coisas, o trabalho, os filhos, e têm que gerir a sua vida pessoal, muitas vezes põem de lado um determinado aspeto da vida para conseguir gerir os outros. É muito comum na condição humana, é uma questão de sobrevivência.

“É um livro sobre mulheres lutadoras que de uma forma ou de outra tentam cumprir os seus sonhos. É o que nós andamos todos cá a fazer. Os meus romances têm sido um bom espelho do espírito feminino e da evolução da mulher portuguesa na sociedade até aos nossos dias”

O que é que falta então para termos o lado emocional e o lado racional? É possível conciliar?

Falta consistência e capacidade de sacrifício, falta espírito de construção. Vivemos numa sociedade cada vez mais líquida, tudo o que não está à distância de um clique não existe e tudo o que não der satisfação imediata pode provocar alguma frustração e pior ainda, desinteresse. Isso tem a ver com a evolução tecnológica, completamente alucinante. Eu acredito que a tecnologia é inimiga da biologia. A biologia manda muito mais dentro das pessoas e a tecnologia manda por fora. Há aqui uma guerra profunda que faz com que as pessoas se sintam fragmentadas e divididas. Hoje tudo é muito rápido, muito volátil, muito sem compromisso e ainda muitos de nós pertencemos a uma geração em que tudo era muito mais estável, até as amantes eram estáveis, até as amantes eram para toda a vida. Havia um emprego para toda a vida com progressão na mesma empresa, havia casar e ter filhos para cumprir uma missão social. Quem não se define, também não se defende e portanto, numa sociedade cada vez mais líquida, em que as redes sociais permitem uma falsa proximidade, as pessoas vivem numa ilusão de que são próximas de uma pessoa só porque falam com ela no Messenger, por exemplo.

Leia o primeiro capítulo do novo romance de Margarida Rebelo Pinto, “Antes que seja tarde”

E que consequências é que essa falsa proximidade pode trazer para o amor?

Se as pessoas continuarem num caminho de egocentrismo e de satisfação pessoal imediata vai ser cada vez mais difícil construir relações amorosas sólidas e é por isso que entram as mulheres enquanto grupos de amigas, para se acompanharem umas às outras. Porque os homens e as mulheres estiveram separados ancestralmente, eles estavam fora a caçar e a lutar e elas estavam no burgo ou na tribo cuidar dos bebés ou dos mais velhos, cultivavam e recolhiam os frutos das árvores. O homem é o caçador e o lutador e a mulher é a cuidadora. Isto é completamente ancestral, está na biologia, faz com que naturalmente, por instinto, os homens sejam mais predadores do que as mulheres. Só que desde os anos 80 houve uma conquista de tal maneira acelerada do mundo dos homens pelas mulheres, não vou dizer que os papéis se tenham invertido, que começaram a fundir-se. As mulheres estão há 50 anos a dizer aos homens que não precisam deles e eles agora estão a dizer-lhes que não precisam delas, porque há outras mulheres, há sempre outras mulheres.

O papel da amante sempre esteve presente e vai continuar?

Nas sociedades latinas, com forte tradição católica, como Portugal, Espanha e Itália, por exemplo, continua a existir a figura da mulher virtuosa, da mulher mãe, por um lado, e depois a deusa sexual e a mulher muito estimulante do outro. São padrões transversais a muitas sociedades.

E ser amante nos anos 60 é diferente de ser amante hoje?

Na essência não é, porque uma amante é sempre uma mulher que aceita ser a segunda, que aceita não ser prioridade na vida de um homem, depende ou não dele financeiramente. A grande questão é que até à emancipação feminina – que não está completa, porque as mulheres, quer queiram, quer não, dependem afetivamente dos homens – era diferente porque havia uma subjugação material e agora não há. Mas as relações amorosas também são sempre uma relação de poder, há momentos de guerra nas relações amorosas, há jogos de poder, há aquilo a que eu chamo: virar o tabuleiro, que é virar o jogo ao contrário. E as leis da economia também entram nas relações amorosas, a lei da oferta e da procura, a utilidade marginal. Eu falei com dezenas de mulheres para construir estas personagens e elas querem sobretudo um porto seguro, mesmo que esse porto seja deficitário, mesmo que depois não dê o acompanhamento e o aconchego que elas precisam, porque as mulheres precisam de continuidade. As mulheres dão à luz, amamentam, vêm os filhos crescer. A linha feminina é uma linha de continuidade, a linha masculina é uma linha de conquista e de objetivos.

Ao longo do livro vamos tendo a visão feminina e a masculina, como se fossem dois mundos distintos. Qual é o propósito?

Embora seja um romance de género, porque de facto as mulheres têm aqui um papel preponderante, eu quis dar voz aos homens e quis dar voz ao coração e à cabeça dos homens, à linha de pensamento masculina, exatamente para que as mulheres percebam porque é que os homens têm determinadas atitudes e fazem determinadas escolhas na vida. Muitas vezes as mulheres pensam: “Ele não ficou comigo, porque não gosta de mim”. Não. Ele gostará, mas se tiver filhos, provavelmente gostará mais dos filhos. Como as personagens Jorge ou o Gonçalo, ambos gostam mais dos filhos, o que é perfeitamente normal, expectável e humano. Se fizermos a pergunta a cem mães responderão o mesmo. Se para ficarem com o seu amante ou com a pessoa por quem estão apaixonadas seriam capazes de ver os filhos apenas de 15 em 15 dias? Provavelmente, dessas cem, 95 diriam que não, que não abdicariam dos seus filhos.

“É sempre muito difícil ter a cabeça e o coração ligados e a pensar e a sentir da mesma maneira, porque há uma grande tirania racional para os nossos atos, mas depois em muitas pessoas, sobretudo quando se apaixonam, há uma grande pulsão emocional”

É por isso que no livro apresenta Lurdes, uma mulher que tem um amante homem, Alfredo. A traição não tem género?

Não. A traição não tem género. Sem querer entrar em generalizações, porque são sempre muito redutoras, eu acredito que as mulheres traem por razões diferentes das dos homens. Os homens muitas vezes traem por adrenalina, por desejo de conquista e de aventura, as mulheres traem porque vão à procura de romantismo, da vontade de se sentirem desejadas. Além disso, é muito difícil para as mulheres esquecer. Para os homens também é difícil, só que os homens funcionam de outra maneira. Mergulham no trabalho, na vida familiar, no desporto, conseguem fazer exercícios de abstração e desligar, porque têm tudo compartimentado e se há uma gaveta que eles não querem abrir… Por exemplo, o Gonçalo recebe mensagens da Maria do Amparo e não as lê, vão todas para a gaveta que ele não quer abrir, mas elas continuam lá mesmo que ele não as leia. As mulheres funcionam em open space, está tudo aberto, está tudo integrado. Mas tanto para os homens, como para as mulheres, é sempre muito difícil transformar um pensamento em sentimento. É sempre muito difícil ter a cabeça e o coração ligados e a pensar e a sentir da mesma maneira, porque há uma grande tirania racional para os nossos atos, mas depois em muitas pessoas, sobretudo quando se apaixonam, há uma grande pulsão emocional. E é muito difícil gerir uma grande pulsão emocional com escolhas muito racionais, isso provoca uma luta interna fortíssima. Como diz um dos personagens: “Os maiores inimigos são aqueles que carregamos clandestinos dentro do peito”, são aqueles que nós não conseguimos combater.

Esses inimigos podem ser amores que durante um curto espaço de tempo nos marcam para toda a vida?

O livro traz-nos esse personagem, ele tem o papel das pessoas que aparecem nas nossas vidas que têm muita importância, mas que depois, por uma razão qualquer, desaparecem. E às vezes desaparecem porque a vida os leia. Basta um instante para as coisas mudarem. As pessoas podem morrer de doença prolongada ou porque um gato caiu da janela e lhes caiu em cima. Há causas de morte do mais improvável possível e, por isso, é que antes de seja tarde, devemos mimar aqueles que amamos enquanto cá andamos, porque de um dia para o outro eles podem não estar cá. As pessoas morrem, vão-se embora, nunca mais atendem o telefone.

É como a frase: “Deem flores aos vivos”?

Exatamente e eu acho que nós precisamos de dar mais flores. Mas dar mais flores não é pôr o coraçãozinho no Instagram, nem o like na página do Facebook. Não. É telefonar, é ir almoçar, é ir passear à beira mar, é usufruir da paz e da segurança em que vivemos e termos saúde para podermos ter tempo real. Por isso é que a Maria do Amparo diz ao Gonçalo: “Somos da mesma cidade, mas vivemos em planetas diferentes”. Quando um já não quer já não há nada a fazer. É atirar a toalha ao chão e ir embora. É muito difícil desistir de uma grande paixão, de um grande amor. As pessoas ficam a penar durante anos, às vezes não ultrapassam e depois de uma história dessas que corre mal, já não são as mesmas pessoas. As pessoas mudam. As grandes paixões ou os atropelamentos emocionais desestruturam as pessoas, descentram-nas, desorganizam-nas, desfocam-nas dos seus objetivos. Há ali uma força maior que começa a ser dominadora. Aquelas descrições do Gonçalo que está na sala de reuniões e vê os flashes das imagens dele com a Maria do Amparo. Esta história de estar em reuniões e de virem os flashes e imagens à cabeça mais de uma dezena de homens contou-me isto. Não foi inventado por mim, eu perguntei a uma série de homens “Como é que te sentes quando estás apaixonado?” e eles diziam todos: “Eu não consigo deixar de pensar nela. A imagem dela não me sai da cabeça. Ela está sempre presente”. Por isso é que ele diz no fim: “Agora que eu perdi esta paixão, houve uma parte de mim que ficou com ela para sempre”.

Este livro revela uma sede de amor, de viver um grande amor, e ao mesmo tempo a incapacidade de se lutar por ele. As pessoas têm medo de lutar?

Há pessoas que se acomodam, há pessoas que têm medo da mudança, têm medo do confronto. Há uma frase do Truman Capote que eu gosto muito, que ele diz: “É melhor olhar para o céu do que lá viver”. Ou seja, as pessoas têm fantasias em relação àquilo que gostavam que fosse a vida delas, mas as fantasias não são planos de ação. Só são planos de ação para os visionários, para aqueles que acreditam que podem mudar a sua vida ou a vida dos outros ou o mundo. Só os visionários é que acreditam que podem mudar a realidade, as pessoas geralmente não acreditam, portanto as fantasias não se realizam, são sonhos que nunca se realizam. Porque as pessoas têm medo de mudar. A mudança, a confusão, é o início de uma nova realidade e portanto, se for tudo muito diferente as pessoas não se conseguem adaptar. Eu lembro-me sempre do Maradona que nunca vendeu a barraca onde nasceu, foi multimilionário mas não quis perder a casa de infância, apesar de ser um lugar sinistro. Qual é a capacidade que as pessoas têm para mudar, para arriscar, para mudar, para construir uma vida nova? Depois dos 40 é muito complicado. Como diz o Jorge: “Um tipo só faz merda duas vezes na vida. Quando tem tudo a perder ou quando não tem nada a perder”.

“Por vezes as vidas são incompatíveis, as pessoas encontram-se nos timmings errados, há imensas coisas que nós não decidimos. Vivemos na ilusão de que podemos controlar tudo e decidir tudo na nossa vida. Não é verdade”

O bom das fantasias é isso? É o facto de nunca se realizarem, porque se se realizassem e passassem a ser verdade deixariam de ser momentos de felicidade?

É muito difícil encaixar realidades antagónicas e é muito difícil levar vidas duplas, a não ser que as pessoas não tenham escrúpulos nenhuns ou, e isto acontecia nos anos 60 e penso que ainda acontece mas um pouco menos, que os homens tenham uma visão instrumentalizada das mulheres. Ou seja, uma mulher em casa serve para cuidar dos filhos e manter a casa em ordem e a outra serve para as suas fantasias e para a sua vida clandestina de macho pujante. É que quando há uma questão amorosa há sempre muitas facetas à volta, há sempre muitas maneiras de olhar para a mesma situação e todas as pessoas olham de maneira diferente, à luz dos seus interesses, dos seus problemas e dos seus medos. Por vezes as vidas são incompatíveis, as pessoas encontram-se nos timmings errados, há imensas coisas que nós não decidimos. Vivemos na ilusão de que podemos controlar tudo e decidir tudo na nossa vida. Não é verdade. Há imensas coisas que nos ultrapassam, sentimentos, situações, coincidências, sortes e azares, dos quais não somos responsáveis e que nos ultrapassam, não nos permitindo realizar os nossos sonhos em todos os aspetos da vida. A lotaria da vida não existe. Está estatisticamente provado que homens com histórias fora do casamento raramente se separam, a não ser que as mulheres os mandem embora, 10% separam-se, os outros 90% mantêm o seu núcleo familiar, e as mulheres não. As mulheres podem-se separar mesmo não tendo outra pessoa, simplesmente porque não estão satisfeitas com a sua vida.

As mulheres acomodam-se menos?

As mulheres têm menos medo da mudança, como o território delas é o lar, se aquele território for desfeito elas fazem rapidamente outra casa, por isso é que eu digo: “Uma mulher sozinha faz um lar e um homem sozinho faz um bar”. Os homens, agora muito menos, mas por tradição, nomeadamente na sociedade portuguesa não têm grandes aptidões domésticas. O lar é lugar onde eles descansam, onde brincam com os filhos e muitos deles dizem que “até” ajudam as mulheres, como se fosse uma benesse. Não sei como estão os estudos agora, mas há uns anos Portugal era o país onde as mulheres trabalhavam mais horas fora de casa e mais horas em casa, isso faz das mulheres portuguesas umas grandes heroínas. Mas as mulheres portuguesas são umas grandes heroínas.

Há muitas pessoas infelizes por aí?

Há, há muita gente infeliz. Sobretudo, há muita gente que não é capaz de lidar com os seus problemas e não são os problemas que tornam as pessoas infelizes, é a ausência de capacidade para a resolução dos mesmos que conduz à infelicidade. Porque problemas temos todos. Problemas de saúde, de família, de relação. O que conduz à infelicidade não é a existência dos problemas, é a nossa incapacidade para lidar com eles. E há um fator absolutamente decisivo para o mal-estar e o desconforto generalizado que pode desembocar a infelicidade: a solidão ou a falsa companhia das redes sociais. As redes sociais são muito boas para muitas coisas, mas muito más para outras e vamos ver o que é que vai acontecer no futuro às pessoas dominadas por elas.

[Fotografia: Filipa Bernardo / Global Imagens]

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