Margarida Vieitez: “Pessoas narcisistas podem colocar-nos em perigo”

Porque as pessoas nem sempre são o que parecem, a mediadora familiar de conflitos, Margarida Vieitez, decidiu escrever Perigo! Duas Caras. Um livro que mostra o quão perigosas podem ser as pessoas narcisistas e egocêntricas e que dá a conhecer traços e dicas essenciais para as identificar e saber lidar com elas.

Com histórias reais e frases típicas de narcisistas, que Margarida Vieitez foi anotando ao longo dos anos, o livro pretende ajudar na hora de identificar pessoas com duplo caráter. Perceber quais as intenções dos narcisistas e conseguir lidar com eles é, segundo a mediadora familiar, fundamental na hora da defesa e proteção de problemas como a depressão ou a anulação pessoal.

Em entrevista ao Delas.pt, Margarida Vieitez apresentou os narcisistas, dando a conhecer alguns dos traços de personalidade que possuem e os medos que têm. Alertou para os perigos que existem ao ter um contacto regular com eles, falou de como a sociedade atual promove o aparecimento de pessoas egocêntricas e como estas podem influenciar outras, levando a que adotem comportamentos idênticos.

Margarida Vieitez, mediadora familiar de conflitos e autora do livro “Perigo! Duas Caras” [Fotografia: Leonardo Negrão / Global Imagens]
Porquê escrever sobre pessoas narcisistas e egocêntricas?

Porque vivemos numa era de egoísmo, egocentrismo e narcisismo. A sociedade em que estamos inseridos, de consumo imediato e onde tudo parece descartável, potencia egos sobredimensionados e falta de empatia, características de um narcisista. Promove também a comparação constante, a vaidade, a superioridade, o conflito e a necessidade de controlo. Ainda no outro dia passei por um outdoor de uma marca de carros bem conhecida que dizia: ‘Você fixa as regras. Você controla’. O que é isto senão um apelo ao narcisismo? Se repararmos bem somos ‘flashados‘ a cada momento por slogans de publicidade e informação. Este livro já estava a ser planeado há dois ou três anos. Tinha muita vontade de escrever sobre o narcisismo, sobre narcisistas e pessoas com duas caras, e chegou o momento de o fazer.

E como são os narcisistas?

São muito inteligentes. Alguns deles vieram foi com um erro de fábrica: subestimam a inteligência das outras pessoas. É isso que, por vezes, faz com que ‘percam’. O objetivo deles é ganhar. Ganhar o quê? Poder sobre o outro e conseguem-no através do conflito, da crítica repetida, da culpabilização e de tornar o outro inferior e incapaz. Situações do dia-a-dia presentes nas mais variadas relações – amorosas, de amizade, familiares e até de trabalho. É um transtorno de personalidade ao qual devemos estar atentos, porque pode ser muito difícil sair de situações que envolvam narcisistas. Por vezes, é preciso pedir ajuda, mas prioritariamente deve-se saber identificar essas pessoas, saber o que é que está a acontecer e não duvidar de quem somos, não colocar nem isso, nem o nosso valor nas mãos deles. Esse é o objetivo do narcisista: ter o controlo do outro e da vida dele. Ao contrário daquilo que se pensa, um narcisista não é uma pessoa confiante, tem muita falta de autoestima, é alguém muito fragilizado e inseguro e para se sentir um bocadinho melhor o que é que faz? Despeja todo o ‘lixo emocional’ no outro. É assim que se consegue sentir poderoso.

“Os narcisistas têm o poder de fazer com que coloquemos em causa o nosso valor e aquilo que pensamos sobre nós, as nossas capacidades, virtudes e quem realmente somos”

É como uma defesa?

Exatamente, o narcisismo é uma defesa contra sentimentos de vergonha e de inferioridade. Ao passá-los para outra pessoa, fazendo com que seja o outro a carregar esses sentimentos, o narcisista sente poder. É este o mecanismo. E porque é que é perigoso? Porque faz-nos duvidar de nós próprios. Os narcisistas têm o poder de fazer com que coloquemos em causa o nosso valor e aquilo que pensamos sobre nós, as nossas capacidades, virtudes e quem realmente somos. O que é um perigo para a saúde mental – uma realidade que poucas pessoas conhecem. Mesmo as com mais formação, com sucesso, fama, dinheiro… Nenhuma delas está a salvo, porque qualquer pessoa pode ser envolvida nas teias de um narcisista. A única forma de defesa e proteção é o conhecimento, é saber identificar traços narcisistas e isso é exatamente o que este livro faz.

Apresentando-se como sedutores e confiantes (embora não o sejam) de que é que os narcisistas têm medo?

Têm muito medo do abandono, da rejeição, especialmente no contexto amoroso, e tudo fazem para evitar essa dor. Muitas vezes vitimizam-se para conseguir o que querem. Inicialmente, atendem às necessidades e aos desejos do outro, são muito presentes, mas de repente, de um momento para o outro, há um clique e aquela pessoa transforma-se noutra completamente diferente: arrogante, autoritária, prepotente, invejosa, em competição permanente, apontando constantemente as falhas e os defeitos do outro. Isto gera uma confusão imensa na cabeça de quem convive com o narcisista, é como se fosse uma droga que lhe tivessem injetado e que, de repente, deixam de a tomar. Aí a pessoa pensa: ‘Mas o que é que se passa? Quem é que está aqui errado? É ele ou sou eu?’. É nessa altura que começam as dúvidas sobre a própria perceção, pensando que o outro é que está certo. Começam então a tentar satisfazer o narcisista, a tentar fazer tudo aquilo que ele quer, mas nada adianta. Absolutamente nada. A menos que haja o tal sentimento de perda. Se, por exemplo, a pessoa disser que se vai embora, aí tudo pode voltar ao início, o narcisista pode voltar a tentar conquistá-la, a tentar seduzi-la ou a vitimizar-se, dizendo que se vai transformar, que vai mudar. Só que isto acontece durante uns dias e depois volta tudo ao mesmo. Pode ser um ciclo vicioso que traz muito sofrimento. Como mediadora familiar, acompanhei muitas pessoas a viver esse tipo de situações no trabalho e na família. É que existem chefes, colegas, companheiros, namorados narcisistas, assim como mães, pais e filhos também.

“Os narcisistas, quanto mais recebem, menos valorizam, é como se fosse uma obrigação. Aquela pessoa (…) tem obrigação de o servir”

Como podem os pais tornar os filhos narcisistas e egocêntricas?

Há pais que fomentam o narcisismo através do facilitismo a mais ou da super-proteção, outros através da desatenção às emoções e aos interesses da criança, da castração de sentimentos, impedindo-a de exprimir e expressar aquilo que sente. São os pais que nos ensinam a lidar com as emoções, por isso, quando não veem o amor que a criança tem para dar, não lhe retribuindo o amor de que ela precisa, estão a fomentar comportamentos narcisistas. Enquanto mediadora familiar, acompanho casais já há muitos anos e quando vou ver a origem dos conflitos, normalmente, no passado deles deteto situações de falta de afeto, atenção, sintonia, carinho. Daí estarem em conflito com o companheiro, tentando ‘cobrar’ e exigir o amor e a atenção que não tiveram na infância ou adolescência. É muito comum dizerem: ‘Não me dá atenção’, quando constatamos que até recebem, apenas não é uma atenção maternal ou paternal. Os narcisistas tentam preencher esses vazios com o que o companheiro lhes dá, o que é impossível porque ninguém substitui o amor dos pais.

Uma pessoa pode tornar-se narcisista por estar em contacto permanente com um?

Pode. Isso é um dos principais perigos: a pessoa que está ao lado do narcisista não conseguir reagir e começar a identificar-se com comportamentos narcisistas, podendo levar à perda de identidade. A pessoa deixa de saber quem é, quem foi ou quem será e pode entrar em depressão. No âmbito familiar, onde existem crianças, o perigo está nos pais. São eles os modelos, são a principal referência, daí vermos crianças pequeninas com comportamentos idênticos aos do pai ou da mãe. Neste momento, tenho um caso de um adolescente de 15 anos que sempre viu o pai a maltratar a mãe, em termos verbais e psicológicos, e hoje em dia faz exatamente o mesmo. Não maltrata a mãe, mas sim os irmãos e o pai. É uma família muito disfuncional e desestruturada. A mãe tenta manter a família, o casamento, a união, e permanece sem perceber o que está a acontecer. Porque por mais que faça nada resulta. Porquê? Porque os narcisistas, quanto mais recebem, menos valorizam, é como se fosse uma obrigação. Aquela pessoa que está ao lado deles, seja colaborador, subordinado, mãe, pai, filho ou companheiro, tem obrigação de o servir. É uma obrigação não é uma dádiva, não é amor, porque a maioria deles não tem capacidade de amar, nem de dar.

Margarida Vieitez, mediadora familiar de conflitos e autora do livro “Perigo! Duas Caras” [Fotografia: Leonardo Negrão / Global Imagens]
É possível uma pessoa narcisista deixar de o ser?

Sim, se pedir ajuda. Tenho colegas com bons resultados nessa área. Difícil é pedirem ajuda, porque o narcisista pensa que não precisa. Aliás, está muito bem sozinho, é muito autónomo, independente e quem está louco são os outros, não ele. Portanto, quem precisa de ajuda são as outras pessoas.

O que é que é preciso para reconhecerem que estão errados?

Já tenho conseguido, em termos de acompanhamento conjugal, que alguns deles expressem emoções e aí entram em contacto com o verdadeiro ‘eu’, ou seja, com a criança ferida que têm dentro deles, e que tenta esconder com a superioridade, com o sucesso, com a fama, com a boa imagem. Quando entram em contacto com essa criança interior começam a expressar emoções e sentimentos. Esse é um caminho que pode levar ao pedido de ajuda. Depois há o oposto, ou seja, a falta de empatia que significa que o outro é indiferente para eles – aquilo que o outro pensa, sente, quer ou deseja não interessa, é como se não existisse. É como um muro. Há um bloqueio e aí é muito difícil. Esses são casos que, normalmente, levam a uma separação ou então à anulação de quem está ao lado do narcisista, algo que acontece muitas vezes: mulheres e homens anularem-se, deixarem de existir, para satisfazer aquela pessoa e fazê-la feliz. Como é que alguém pode tornar outra pessoa feliz se está infeliz?

“Algumas pessoas têm traços profundos de narcisismo e podem realmente colocar-nos em perigo”

Uma pessoa narcisista é-o em todas as áreas da vida (trabalho, amizade, relações amorosas) ou pode sê-lo apenas numa ou em algumas?

Não. Esses traços de personalidade estão presentes em todas as áreas. A pessoa pode é até ter várias máscaras para disfarçar os sentimentos de inferioridade, de vergonha e de incapacidade, mas em períodos de tensão, de demasiada pressão emocional, rapidamente o verniz estala. Portanto, os traços de personalidade estão presentes durante 24 horas, pode é disfarçá-los melhor ou pior consoante os contextos em que esteja inserido. Os nossos pais ensinaram-nos que as pessoas eram todas boas, temos que colocar alguma interrogação nisso e saber defender-nos e proteger-nos. Algumas pessoas têm traços profundos de narcisismo e podem realmente colocar-nos em perigo. Alguns deles podem mesmo ser muito perigosos, tendo comportamentos ameaçadores ou de vingança. Em Portugal, estamos com números de violência doméstica assombrosos, chocantes. Algumas das pessoas que assassinam de forma passional os/as companheiros/as são narcisistas e se quem estava ao lado delas tivesse percebido e identificado, antecipadamente, esses traços, podiam ter pedido ajuda mais cedo.

“Algumas das pessoas que assassinam de forma passional os/as companheiros/as são narcisistas”

Ler este livro pode levar a pessoa a descobrir que é narcisista?

Pode, porque este livro dá a possibilidade de ter um grande autoconhecimento. Todos podemos ter traços, mais ou menos intensos, de narcisismo. Portanto, é possível que exista uma grande identificação, não só relativamente a comportamentos das pessoas com as quais nos relacionemos, mas também com os nossos próprios comportamentos.

Margarida Vieitez, mediadora familiar de conflitos e autora do livro “Perigo! Duas Caras” [Fotografia: Leonardo Negrão / Global Imagens]
No livro, a Margarida Vieitez refere que os narcisistas são maioritariamente homens, pode ter a ver com a imagem que o sexo masculino projetou durante anos?

Sim, pode ter a ver com uma questão cultural. Nós ainda vivemos numa sociedade muito machista. Em Portugal ainda prevalecem comportamentos e atitudes extraordinariamente machistas, tanto em relações amorosas como de trabalho. As mulheres ainda não auferem aquilo que os homens auferem. A mulher continua muito sobrecarregada e as mães e os pais destas pessoas de 40, 50 e 60 anos eram famílias tradicionais, onde os pais tinham os papeis bem definidos: o pai mandava, era a autoridade, e a mãe cuidava. Muitas destas pessoas ainda têm todos esses modelos e parte delas passam-nos aos filho.

Há diferenças entre homens e mulheres narcisistas?

São iguais, o nível de perversidade é o mesmo. Já acompanhei muitas histórias de casais em que ou são elas ou são eles os narcisistas e já acompanhei casos em que são os dois. Aí, então, são explosões umas a seguir às outras. Porque ambos querem dominar e ambos se sentem ameaçados constantemente. Eles querem ter o poder sobre o outro, por isso é que uma relação entre dois narcisistas é ataque contra ataque. Isso não é gostar, não é amor, é simplesmente um jogo e eles passam, muitos deles, a vida quase toda a jogar. É um desassossego brutal, estão constantemente a tentar provar que são alguém, que são boas, que são um máximo e que merecem atenção e amor, mas depois não têm nada para dar.

“Todos nós temos salpicos de narcisismo. É normal. Somos imperfeitos, temos relações imperfeitas”

No livro, a Margarida Vieitez fala da existência de um narcisismo saudável. O que é?

Todos temos salpicos de narcisismo. Por vezes, criticamos, culpamos os outros, apontamos falhas, chateamo-nos e dizemos palavras menos próprias. Depois, reconsideramos e pedimos desculpa. É normal. Somos imperfeitos, temos relações imperfeitas. O narcisismo saudável é ótimo, significa que temos autoestima, autoconfiança e que as que projetamos. Dizer: ‘Olha tão gira que estou hoje’; ‘Olha o resultado que consegui’, isto é natural. Mas uma pessoa que esteja, constantemente, a chamar a atenção dos outros para os seus diplomas, para o seu sucesso, que só fala daquilo que fez e que nem sequer escuta o outro, nem se interessa por ele, tem traços de narcisismo doentio. O amor-próprio é uma coisa maravilhosa, protege-nos da doença mental e dos narcisistas.

Protege de que forma?

Protege porque os narcisistas sentem-se atraídos por pessoas com menos amor-próprio, pessoas que, muitas vezes, querem ajudar e querem dar atenção, que precisam sentir-se válidas ajudando os outros. São estes os alvos deles: pessoas que idealizam muito a vida e as relações. Não estou a dizer para não sonhar, para não idealizar, mas devemos fazê-lo com os pés bem assentes na terra e não acreditar em milagres, nem em amores de filmes que acontecem ao virar da esquina. Essa é a pior asneira que se pode fazer: colocar quem somos e nosso valor nas mãos de outras pessoas, exclusivamente. Claro que precisamos de elogios, que nos digam coisas agradáveis, que nos valorizem e reconheçam, mas o melhor reconhecimento é o auto-reconhecimento.

“[os narcisistas] têm um impacto como se fosse um tsunami de grau 5, porque a nível emocional, lidar com um narcisista é mesmo avassalador, provoca muito sofrimento”

No início da entrevista começou por dizer que a sociedade de hoje em dia fomenta o aparecimento destas pessoas. Podemos ver isso através das redes sociais?

Sim, essas redes vieram potenciar muitíssimo o narcisismo. Ali, podem ser quem querem, à hora que querem e mostrar a imagem que querem. No outro dia estava a ler um livro de um psicólogo argentino que dizia que pela nossa vida passam 60 narcisistas, em todos os contextos. E que têm um impacto como se fosse um tsunami de grau 5, dizia ele, porque a nível emocional, lidar com um narcisista é mesmo avassalador, provoca muito sofrimento e muitas pessoas não têm estrutura psicológica para perceber e lidar com o que está a acontecer. Os narcisistas têm uma forma de comunicar entre o sim e o não, entre o 8 ou o 80, o que mostra que tão depressa dizem uma coisa, como a seguir dizem outra e, logo a seguir, ainda outra. Esta indecisão imensa é um indício de uma pessoa muito instável e, eventualmente, com traços narcísicos. É muito difícil assumirem compromissos. Até podem casar, mas dificilmente assumem vínculos, porque têm medo de ser rejeitados, abandonados e de sofrer.

O que é que é fundamental para saber lidar com um narcisista?

É perceber que aquela pessoa que está à nossa frente é alguém que se sente extremamente envergonhada, inferior, incapacitada e que não tem autoconfiança nenhuma; que tudo aquilo que diz pode não ter nada a ver com o que faz, nem com o que é. Tem exclusivamente a ver com aquilo que ela sente, com o sofrimento, com o desassossego e com a infelicidade que tem dentro dela. Uma das formas de lidar com um narcisista é evitar ao máximo os conflitos, ficando em silêncio como observador. Normalmente, tendemos a ripostar, a discutir e alimentar o conflito, mas isso é o que eles querem. Com amigos ou namorados narcisistas podemos sempre escolher terminar as relações, mas há casos em que não é possível, como na família ou em relações muito longas.

Percorra a galeria de imagens para conhecer o livro e (re)ver algumas frases de Margarida Vieitez.

[Fotografia de destaque: Leonardo Negrão / Global Imagens]

O dia depois do sexo: o que fazer se não lhe ligam