Maria de Belém: “Nenhuma pessoa de bem nega que a igualdade é um ideal a atingir”

Maria de Belém Roseira
Lisboa, 20/06/2018 - Entrevista com Maria de Belém Roseira (Diana Quintela/ Global Imagens)

‘Dar Troco a Quem Precisa’ é o lema da campanha de recolha de fundos da Associação Dignitude, que apoia pessoas carenciadas na aquisição de medicamentos, através do projeto abem: Rede Solidária do Medicamento. Uma nova iniciativa arranca esta segunda-feira, 20 de maio, e decorre até dia 28, um pouco por todo o país, nas farmácias aderentes. Nesta campanha Maria de Belém, coordenadora-geral da associação, espera encontrar a mesma generosidade que os portugueses demonstraram ter nas iniciativas semelhantes que o projeto foi realizando, desde 2016, ano em que foi criado.

A antiga ministra da Saúde quer também que a nova campanha seja o ponto de partida para chegar ainda a mais gente, para quem o acesso àquele bem de saúde está mais distante, por questões económicas. Tornar mais igual, aquilo que não deveria ser desigual, mantendo o direito à privacidade de quem beneficia desse apoio é um dos objetivos da Dignitude, como explica Maria de Belém em entrevista ao Delas.pt. “Aquilo que o programa faz é permitir a pessoas que têm uma determinada debilidade económica aceder a medicamentos sem ter de pagar a parte não comparticipada (…) Isto sem ter de exibir a sua pobreza”, refere.

E se a luta pela igualdade é, segundo diz, “um ideal a atingir” que “nenhuma pessoa de bem nega”, é preciso “passar das palavras aos atos”. E isso não vale apenas para o acesso à saúde. Ex-ministra da Igualdade, entre 1999 e 2000, no XIV governo constitucional, Maria de Belém admite que gostaria que houvesse mais mulheres a liderar as listas às eleições europeias, mas diz-se otimista em relação ao futuro e acredita que essa será uma realidade nas próximas escolhas, se não já para as Presidenciais, pelo menos para as da Europa, “porque passa a ser uma exigência social”.

 

O programa abem: Rede Solidária do Medicamento já completou três anos de existência. Qual é o balanço que faz do projeto, ao longo deste período?
O melhor balanço que podemos fazer é através da avaliação que nós fizemos seguindo a metodologia SROI – Social Return on Investment – que considerou que por cada 1 euro investido neste programa há um retorno de 7,8 euros. Porque as pessoas, ao perderem a instabilidade e angústia que tinham por não poder comprar os medicamentos de que necessitavam, recuperaram a sua dignidade. Eu penso que isto é muito importante, na medida em que Portugal é talvez um país muito marcado, sobretudo para as pessoas da minha geração pelo facto de ter havido, ao longo do século XX, um conjunto de serviços sociais disponíveis mas para quem obtivesse um atestado de pobreza na junta de freguesia. Aquilo que o programa faz é permitir a pessoas que têm uma determinada debilidade económica aceder a medicamentos sem ter de pagar a parte não comparticipada, desde que esses medicamentos sejam os que são prescritos pelo médico. Isto sem ter de exibir a sua pobreza, por vários motivos. Porque o programa atua com base em parcerias – quem escolhe os seus beneficiários são os seus parceiros que estão no terreno.

Quem são esses parceiros?
Podem ser instituições de solidariedade social, desde IPSS a Misericórdias, como fundações ou até câmaras municipais, na medida em que é quem está no terreno que conhece as situações e remete o nome dessas pessoas, dentro do cumprimento dos regulamentos do programa – uma determinada condição de recurso – e o programa emite um cartão, que em tudo se assemelha a um cartão multibanco que a pessoa entrega quando vai aviar a sua receita à farmácia. Só o farmacêutico é que sabe e não faz perguntas sobre isso. E assim a pessoa não tem de se expor.

O objetivo, além de ajudar economicamente, também é preservar a dignidade das pessoas.
Sim, por isso é que isto é um programa da associação Dignitude. Este programa salvaguarda, realmente, a dignidade das pessoas e garante-lhes um acesso a um bem que é essencial, na medida em que o não seguimento das terapêuticas tem consequências muito graves em termos individuais, familiares, sociais e económicos. É certo que nem todas as pessoas abandonam as terapêuticas por razões económicas mas aquelas que me preocupam são aquelas que a abandonam não porque decidiram, mas porque os seus rendimentos não o permitem. Sabemos que Portugal é um país que continua a ter um modelo de muito baixos salários. Temos hoje uma taxa de desemprego muito menor que a que já tivemos, mas também temos um salário médio muito baixo. O que significa que há uma grande percentagem de trabalhadores que ganha salários muito baixos.

O número de beneficiários do programa tem acompanhado a evolução económica ou continua a aumentar, em razão também dessa realidade de baixos salários?
Há pessoas que têm deixado de ser beneficiários, mas entram outras. O número tem tendência a aumentar porque nós queremos atingir cada vez mais pessoas e desenvolvemos uma série de atividades, no sentido de financiar o fundo solidário, que tem uma gestão específica, autónoma e auditada, mas as necessidades são muito mais vastas do que aquelas que conseguimos cobrir. Basta ver os indicadores do INE recentemente publicados que apontam para um elevado número de pessoas em risco de pobreza e uma percentagem expressiva de pessoas em privação severa. Nós já estamos em todos os distritos do país, estamos nas duas regiões autónomas também e já cobrimos mais de 120 concelhos. Claro que queremos atingir o país inteiro, porque no país inteiro há situações que careceriam deste programa. Por isso é que continuarmos a trabalhar para aumentarmos os rendimentos do fundo solidário. E vai começar agora, a 20 de maio, e até dia 28, a campanha ‘Dê troco a quem precisa’, nas farmácias portuguesas. Qualquer cêntimo, qualquer euro é muito importante, porque permite financiar mais beneficiários.

 

Imagem da campanha que vai percorrer o país. [DR]
Qual é objetivo com esta campanha de angariação de fundos? Chegar a mais pessoas, cobrir mais território?
Nós queremos estar em todo o país, porque existem essas necessidades. Se olharmos para a geografia social, vemos que em todo o território nacional, seja mais no interior, seja mais no litoral, há bolsas de pessoas que precisam deste tipo de apoios. E o nosso objetivo é chegar a todo o lado. Evidentemente que isso é uma ambição muito grande, porque a parte não comparticipada dos medicamentos ainda é uma fatia razoável. Há cerca de 1 milhão e 770 mil pessoas em risco de pobreza em Portugal, de acordo com os dados do INE saídos recentemente. Embora a nossa condição de recurso esteja um pouco abaixo do que é considerado o limiar da pobreza, o que é facto é que ainda seriam muitas famílias. Atingir um em cada oito, ou um em cada nove portugueses – será essa a dimensão do não acesso à saúde em Portugal, por razões económicas, segundo o estudo do IMS – significa que ainda temos de crescer muito e fazer muitas campanhas e contar com a generosidade das pessoas, das empresas, porque deixar de tomar os medicamentos por esta razão sai mais caro ao país.

 

Esta campanha vai decorrer em todas as farmácias do país?
Em todas as farmácias aderentes, que são mais de 600 em todo o país. E elas estão identificadas com o dístico “abem”.

Quais são os medicamentos de que os beneficiários deste programa mais necessitam?
Aquilo que nós, associação, podemos dizer sobre isso é que há muitas doenças crónicas em Portugal e é natural que os medicamentos acompanhem a expressão das doenças com maior taxa de incidência no país. As hipertensões arteriais, os medicamentos para a diabetes, os medicamentos que pretendem evitar a ocorrência de AVCs – como os antiagregantes – e também medicamentos para a asma.

Qual é o perfil das pessoas que beneficiam deste programa? São mais idosos, crianças, famílias ou famílias monoparentais?
No princípio do programa 25% dos nossos beneficiários eram crianças. À medida que estamos a avançar para o interior do país, vai começando a ser maior o número de idosos apoiados e diminui o número de crianças, mas mesmo assim são 15%. E é preciso termos a noção que uma criança não apoiada será um adulto com problemas, uma pessoa em idade ativa não apoiada é uma pessoa que não produz no trabalho, tem baixas pagas pela segurança social, porventura uma incapacidade precoce desnecessária e depois episódios de doença mais graves. Até porque a pobreza está muito relacionada com mais doença e doença com pior prognóstico. Portanto, acho que este programa tem muitas vantagens, desde logo o facto de ser uma parceria entre entidades individuais e coletivas, e as pessoas sentem-se muito bem com ele.

Como é que alguém que necessite desta ajuda se pode tornar beneficiário?
As pessoas têm sempre de dirigir-se a uma entidade parceira que faça a referência para o programa, porque, como referi, o programa não articula com pessoas, articula com entidades e instituições. Seja a junta de freguesia da sua zona, seja a câmara municipal, sejam as associações de solidariedade social que são parceiras do programa.

As farmácias aderentes podem fazer essa ponte?
As farmácias aderentes podem encaminhar as pessoas para as organizações que na zona onde operam sejam as parceiras do programa.

É possível termos um Sistema Nacional de Saúde (SNS) de qualidade acessível a todos, considerando os diversos constrangimentos orçamentais apontados e o envelhecimento da população?
Tem que ser possível e para que isso seja possível temos de apostar também cada vez mais na promoção da saúde e na prevenção da doença. O ideal é não adoecer. Nós temos aí que ser muito eficazes e muito eficazes desde pequeninos, envolvendo as famílias… A saúde materno-infantil também tem de ter aí um grande papel, o esclarecimento das grávidas, a sua própria alimentação durante esse período é muito importante. E tudo aquilo que deve ser seguido para que as crianças nasçam – se possível – sem doenças ou problemas que as mães tenham. E depois ao longo da vida, na escola, no trabalho, em todo o lado. Nós temos de ter saúde em todas as políticas. Isso é algo, aliás, a que até já estamos obrigados, porque a grande tarefa do SNS, hoje em dia, o grande foco estratégico deverá ser o de melhorarmos o único indicador de saúde que não compara bem com os países mais desenvolvidos e que é a esperança de vida saudável depois dos 65 anos. Enquanto os países nórdicos têm quase 16 anos, nós só temos 5,6. Isto é uma carga muito grande, que obviamente pesa sobre o SNS. Portanto, temos de olhar para a saúde como o nosso maior bem e o nosso maior bem deve ser defendido, preservado e aprofundado. Temos um problema grande de falta de cultura de prevenção, em muitos domínios. Temos de apostar na prevenção da doença precisamente para podermos continuar a financiar o SNS, que nos garanta o nosso melhor bem. Se formos ver, das instituições democráticas criadas depois do 25 de Abril, esta é aquela que as pessoas mais valorizam.

Mencionou a saúde materno-infantil. Como é que olha para os dados recentes, que mostram um aumento de mortes no parto?
Acho que têm de ser estudados e a Direção-Geral da Saúde já disse que está a estudar, e em articulação com os colégios de especialidade da Ordem dos Médicos, porque há todo um conjunto de situações que podem estar a contribuir para esse crescimento. Mas nós temos taxas tão baixas que, às vezes, mais um caso, dois ou três estragam logo a estatística. Não temos de ficar impressionados, temos de ficar atentos e estudar [o que está a acontecer]. É aquilo que se faz nos países civilizados: estudar o que aconteceu para prevenir as causas, não ter problemas em divulgar essa informação e atuar nessas causas, para permitir que estejamos sempre a melhorar e que não haja regressões.

 

Maria de Belém Roseira é atualmente coordenadora da Associação Dignitude. Foi ministra da Saúde e ministra da Igualdade e candidata nas eleições presidenciais de 2016 [Fotografia: Diana Quintela/ Global Imagens]

 

E em termos de igualdade, estamos no patamar desejado, face a 1999/2000, quando foi Ministra da Igualdade? Ou esperava que viéssemos a estar mais avançados do que o que estamos?
Eu acho que todas as mulheres aspiram a que estivéssemos mais avançados, até porque temos a comparação com países onde esses avanços já aconteceram, não é? Não nos podemos esquecer que na classificação da ONU, estamos no grupo dos países mais desenvolvidos e nesse grupo há diferenças enormes no que se refere às questões da igualdade. Aquilo que é muito importante hoje, que já se conseguiu, é considerar que realmente a igualdade é um ideal a atingir. Nenhuma pessoa de bem nega isso. Agora, é preciso passar das palavras aos atos. Onde se verificam maiores desigualdades, no meu entender, isso decorre da cultura. O mais difícil de mudar é a cultura. Do ponto de vista social é inadequado aceitar a desigualdade como uma coisa normal, mas às vezes, nos comportamentos, a prática das pessoas não condiz com o seu discurso. Temos de usar a lei como instrumento para que as coisas aconteçam mais depressa. Foi isso que aconteceu, em termos políticos, com a lei da paridade, que propus ainda no governo e depois propus como deputada – e foi um parto difícil. O patamar que hoje se exige, e para o qual se caminha, é superior, e tem de ser assim. Temos de ir gradualmente. Considero que continua a haver muita discriminação contra a mulher, no meio laboral, no meio empresarial, nos lugares de chefia – isso é conhecido. Vejo com muita expectativa o futuro, acho que se tem acrescentado mais áreas à agenda da igualdade, mais ambição, mais progresso. E é assim que tem de ser.

 

Estamos em vésperas de eleições europeias e só uma mulher cabeça-de-lista, em mais de uma dezena de candidaturas.
Eu gostaria que houvesse mais, mas continuamos ainda a reproduzir o modelo masculino. De qualquer das maneiras, houve uma preocupação com as listas paritárias. Já se tinha iniciado esse percurso nas anteriores eleições, agora continua-se. É pena não haver mais cabeças-de-lista, realmente é, mas estou convencida que nas próximas eleições europeias vai acontecer precisamente isso. Porque passa a ser uma exigência social. O importante é este caminho.

Mesmo com alguns retrocessos a que temos assistido na Europa, com uma agenda antifeminista e conceitos como os da ideologia de género, defendidos pelos partidos da direita mais radical e da extrema-direita, por exemplo?
Não sabemos o que é que o Steve Bannon anda a fazer na Europa, ainda vai demorar algum tempo até descobrir. Mas não há dúvida que se assiste a um movimento regressivo, mas eu estou convencida de que ainda é um movimento minoritário e se não for cabe-nos a nós, àqueles que consideramos que isso é uma injustiça e um desrespeito pelos direitos humanos não estarmos calados e expectantes, sem fazer nada, e atuar, agir e continuar a divulgar as ideias que consideramos justas, corretas e adequadas e que são aquelas que defendem os direitos humanos, que é o grande patamar civilizacional que deve guiar-nos.

Voltando a eleições, e considerando a sua experiência passada, também podemos esperar mais candidatas nas presidenciais?
Provavelmente vai haver, mas não sei. Às vezes, quando é o segundo mandato de um candidato e que tem, em princípio, níveis elevados de popularidade, é natural que não surjam tantos candidatos. Mas nas eleições a seguir, uma vez que não pode haver mais do que dois mandatos, é capaz de surgir um número maior de candidatas.

Seria uma experiência que gostasse de repetir? Voltar a candidatar-se?
Não. Eu aceitei ser candidata porque acho que é desadequado as mulheres queixarem-se que não há candidaturas de mulheres e depois quando tentam empurrá-las dizem sempre que não estão disponíveis. Se não estão disponíveis não se podem queixar. Eu fiz o meu papel e já o fiz em devido tempo. Agora venham outras, gente mais nova, que se afirme pela sua qualidade, pelas suas competências e capacidades. As coisas não têm de ser feitas por nós, em termos individuais, temos é de abrir o caminho.