Maria do Rosário Pedreira: “Cada vez é mais difícil encontrar um autor novo publicável quanto mais bom”

Maria do Rosário Pedreira_ Aurélio Vasques
Maria do Rosário Pedreira [Fotografia: Aurélio Vasques]

Primeiro, a padeira de Aljubarrota, depois a princesa Leonor de Avis, de seguida Grácia Nasi. Uma longa lista de mulheres que culmina, por agora, em Maria Barroso, Natália Cunha, Catarina Eufémia e Maria de Lourdes Pintasilgo. Estas portuguesas estão agora todas juntas… num livro da autoria da escritora e editora Maria do Rosário Pedreira e que foi lançado esta quinta-feira, 27 de setembro.

Biografias de mulheres extraordinárias e de coragem, reunidas pela escritora e editora do grupo Leya Maria do Rosário Pedreira, que marcaram o seu tempo e que escaparam a tão conhecida Lei da Morte, ficando para a História.

Capa do livro [Fotografia: DR]
Ao Delas.pt e por escrito, a autora – cuja obra conta com as ilustrações de Elsa Martins – revela porque fez este livro agora. Sendo também autora de letras para artistas como, entre outros, Salvador Sobral, Maria do Rosário Pedreira levanta o véu sobre os próximos projetos e revela que se prepara para ser cronista num jornal. Pelo meio, a editora não poupa críticas aos novos autores, que ajuda a selecionar.

 

Porque escolheu fazer este livro agora?

Na verdade, os louros devem ir para quem os merece. Foi a minha editora, Filipa Casqueiro, quem teve a ideia de fazer este livro e me dirigiu o convite. A Filipa veio da Feira do Livro de Frankfurt no ano passado com a sensação de que todas as editoras estrangeiras com quem teve reuniões estavam a preparar um livro sobre mulheres. Era claramente a tendência para 2018. E tinha razão: neste verão, estive em vários lugares de Espanha e as montras das livrarias estavam cheias de livros sobre mulheres para todas as idades e com todo o tipo de abordagens. Limitei-me a deixar-me desafiar e pôr mãos à obra. E o momento foi o ideal para um livro sobre as mulheres portuguesas.

Em que medida gostava de poder fazer a diferença nas pequenas leitoras e nos pequenos leitores?

Ai, preferia que só tivesse falado em “pequenos leitores”, uma vez que na nossa língua a expressão abarca os dois sexos. Aliás, se o tão em voga “todos e todas” sempre tivesse vigorado, a primeira mulher portuguesa a votar, muito antes de o voto ser estendido às mulheres, não o teria conseguido. A história de como Beatriz Ângelo aproveitou em 1911 o plural masculino a seu favor é, de resto, contada neste livro, pois foi uma das mulheres que selecionei. Digamos que escrevi um livro para crianças, independentemente do sexo, e espero que todas elas aprendam com estes exemplos. O que quero é apenas fazer entender os leitores mais novos que por vezes, com um simples gesto e alguma coragem, o mundo pode mudar para muito melhor.

“Escrevi um livro para crianças, independentemente do sexo, e espero que todas elas aprendam com estes exemplos”

Olhando para as raparigas, o que gostava de mudar na atitude delas com este seu livro?

Cada rapariga é um ser humano diferente – e haverá certamente muitas que estão já no caminho certo e não precisam de alterar nada nos seus comportamentos. Julgo que as raparigas de hoje gozam já de liberdade e capacidade de lutar pelos seus direitos – e o que lhes quero dizer é, por um lado, que não se esqueçam de o fazer; e, por outro, que, se hoje o podem fazer, é porque houve outras raparigas e mulheres antes delas que lhes abriram o caminho e a quem devem muito. Informar e estimular, em suma.

Assume no prefácio que teve de fazer escolhas sobre as portuguesas retratadas. Quem teve de deixar de fora?

Ui, tantas… Quando comecei a ler e a fazer investigação, foi óbvio para mim que não poderia incluir todas as “heroínas” que Portugal conheceu, desde a sua fundação até ao século XXI. Tinha de construir um livro equilibrado que tivesse mulheres ligadas às artes, ao desporto, à ciência, à política, à filantropia, e por aí fora. Assim, quando encontrava duas ou mais mulheres igualmente interessantes cuja atividade e atitude era muito semelhante, era preciso escolher entre elas – e, não nego, aí jogaram também as minhas simpatias. De um outro ponto de vista, ficaram de fora sobretudo as portuguesas extraordinárias que ainda estão vivas e a fazer coisas (são tantas que prefiro não dizer nomes); mas, como as que tinham morrido corriam o risco de ser esquecidas mais depressa, optei por falar só destas.

“Tinha de construir um livro equilibrado que tivesse mulheres ligadas às artes, ao desporto, à ciência, à política, à filantropia, e por aí fora”

É possível que venha a ser publicado um segundo volume?

Muitas mulheres ficaram de fora, e é possível, sim, fazer outros volumes, embora para já não esteja pensado. Ao mesmo tempo, não sei se não seriam apenas reproduções forçadas do mesmo projeto… A ideia que tenho é que não devemos forçar um segundo volume apenas a pensar na oportunidade e no sucesso comercial. Provavelmente, não sairia um livro tão autêntico e sentido como este foi.

Tendo escrito já para crianças – o Clube das Chaves e Detetive Maravilhas, em géneros bem diferentes deste agora -, em que medida é que a escrita para os mais novos mudou nas últimas décadas?

Deixei de escrever livros de aventuras há já uns anos por dois motivos: em primeiro lugar, porque a série que eu estava a escrever na altura foi adaptada à televisão e tive de fazer um fim para esse efeito; ora, depois de as crianças saberem o fim pela televisão, já não fazia sentido continuar as aventuras em livro; em segundo lugar, porque ao final de 20 volumes começamos a ficar um bocadinho fartos daquelas personagens. E, francamente, nem pensava voltar à literatura infanto-juvenil.

Porque o fez?

Abri a excepção para escrever uma biografia de Amália Rodrigues para crianças (A Minha Primeira Amália) e agora para escrever este livro. E descobri que a dinâmica da não-ficção é muito diferente, porque, quando investigamos para um livro de não-ficção, aprendemos tanto como depois aprenderão os nossos leitores – e isso deu-me um gozo enorme, mesmo que tenha puxado mais por mim e obrigado a um rigor que a ficção não tem. Mas, na verdade, não mudei nada na minha escrita propriamente dita por mudar de género literário – as crianças é que estão a mudar, pois são hoje muito mais solicitadas para o audiovisual e algumas delas encantam-se de tal modo com jogos e o Youtube e já não vão ser capazes de ler em profundidade. Isso, sim, preocupa-me muito, que nos Estados Unidos da América, por exemplo, já só 33% das crianças sejam fisicamente ativas e que passem uma média de 7,5 horas diante de um ecrã. Mas não posso empobrecer a minha escrita por causa de fenómenos como este. Baixar o nível é pactuar.

“As crianças é que estão a mudar, pois são hoje muito mais solicitadas para o audiovisual (…) e já não vão ser capazes de ler em profundidade “

Há um conjunto de livros sobre mulheres – nacionais e internacionais – e com a particularidade de serem dirigidos aos mais novos. Em que medida crê que este pode assumir uma diferença face aos demais?

Bem, para já, as ilustrações são absolutamente fantásticas! A Elsa Martins fez um trabalho genial e temos de lhe fazer justiça, pois um livro infantil é sempre um conjunto de texto e imagem – e a imagem é o que muitas vezes convoca a criança, até porque em alguns casos ainda não sabe ler. Depois, passe a imodéstia, o facto de eu não ter reduzido os textos a meras biografias, usando em vez disso bilhetes de identidade originais, curiosidades, episódios cómicos e ainda ensinando o significado de palavras para descomplicar a vida aos pequenos leitores pode contribuir para que pais e crianças gostem particularmente deste livro. No entanto, os livros nunca são demais e a concorrência é saudável. O problema é quando não há livros sobre determinadas matérias, isso, sim.

“Não posso empobrecer a minha escrita por causa de fenómenos como este. Baixar o nível é pactuar”

É também responsável pela publicação de novos autores, que diferenças nota nas novas gerações de autores?

Infelizmente, noto que vêm cada vez menos preparados em termos do conhecimento e da prática da língua portuguesa. Que o nível é cada vez mais baixo, muitos deles só usando um tempo verbal (o presente) e um vocabulário reduzidíssimo e escrevendo um livro inteiro sob a forma de diálogos, como se se tratasse de um guião. Cada vez é mais difícil encontrar um autor novo que seja publicável, quanto mais bom. Como um dia disse Agustina, a sorte é que sempre houve “aberrações”…

Os novos autores “vêm cada vez menos preparados em termos do conhecimento e da prática da língua portuguesa. Que o nível é cada vez mais baixo”

Há, hoje e junto dos novos escritores, uma escrita de género?

Em termos de ficção, que é a área em que trabalho, não publiquei ainda nenhum “romance de género”. Mas penso que isso não significa que os autores não se interessem pelas questões ditas de género, nada disso. O que acho é que muito provavelmente essas temáticas perturbam as suas vidas enquanto pessoas, mas não necessariamente enquanto escritores. Um grande ensaísta português, António José Saraiva, quando uma vez lhe perguntaram porque não escreviam os romancistas portugueses mais sobre política, agora que já o podiam fazer, respondeu que, ao escreverem, os escritores já cumprem a sua obrigação para com a vida e que o seu envolvimento na política é uma obrigação do cidadão, não do escritor. É o que sinto também em relação à sua pergunta. Que a literatura não tem de ser obrigatoriamente contaminada pelo “ar do tempo”. E, se o for, que seja naturalmente, e não forçadamente. Regra geral, quando aparecem romances sobre questões “demasiado” atuais, são coisas oportunistas e, como tal, de qualidade duvidosa.

No que diz respeito a outros géneros literários, aproveito para lhe perguntar o que está a preparar de momento? E o que podemos esperar em breve no que diz respeito a obra poética?

Tenho uma antologia para sair em breve, que preparei com a fadista Aldina Duarte, de fados oriundos da poesia erudita, chamada Esse Fado Vaidoso. Foi um convite do Museu do Fado e um trabalho fascinante a que dediquei um tempo imenso, porque os nossos fadistas cantaram todos os poetas possíveis e imaginários e o trabalho de pesquisa e seleção foi uma loucura. Agora, vou também estrear-me como cronista num jornal – e tenho estado a fazer a mão à dimensão e estilo da crónica, pelo que esses são os projetos mais imediatos.

“Agora, vou também estrear-me como cronista num jornal”

O mesmo lhe pergunto relativamente a letras de música. Tendo escrito para, entre muitos outros, Aldina Duarte e, mais recentemente, Salvador Sobral, que outras parcerias podemos esperar em breve?

Terei uma letra no próximo CD de António Zambujo, que sai, julgo eu, em novembro. Mais recentemente, fiz letras para Camané, Pedro Moutinho e Ana Moura, e também para os primeiros discos de Francisco Salvação Barreto e de Filipa Cardoso; mas ainda não sei quando verão a luz.

Imagem de destaque: Aurélio Vasques

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