Maria Gambina: “Estar afastada ajudou-me a perceber que não podia fazer coisas que ninguém veste”

“Com a nossa pequena vida que temos, e com a nossa relativa esperança de que amanhã ainda estaremos todos vivos, é com o trabalho de hoje que esse amanhã se fará (…) Se nós fossemos em cada momento cumprindo as nossa utopias – se a realização delas fosse possível num prazo curto – não lhe chamaríamos utopias, chamaríamos apenas: trabalho, objetivo, determinação, meios, vontade e nada mais”. Foi com estas palavras de José Saramago e ao som da sua voz que Maria Gambina pautou o seu desfile.

Palavras de ordem que denunciavam a mensagem política de uma coleção que abriu ao som de ‘Construção’ de Chico Buarque, outra escolha com uma forte mensagem social. A designer esteve cinco anos afastada da passerelle e o seu regresso aconteceu no dia 19 de outubro, por volta das 16h. Apesar da distância a criadora garantiu que nunca se sentiu afastada e mostrou que agora tem a certeza que desenhar roupa é o que quer fazer a vida toda.

Um desfile forte, com uma banda sonora absolutamente brilhante, e uma mensagem subtil mas poderosa. No final Maria Gambina não conseguiu conter as lágrimas e pediu a todos os jornalistas que não a entrevistassem ali com as emoções ainda a quente, preferindo antes que voltássemos mais tarde. Foi isso que fizemos.

Como é regressar a apresentar um desfile depois de ter estado cinco anos afastada?

Eu nunca estive afastada, porque durante estes cinco anos fui professora e coordenadora da licenciatura de design de moda da ESAD. Por isso afastada nunca estive. A minha cabeça continuava a pensar, quanto mais não fosse a orientar as coleções deles, a perceber como as ideias deles se punham em prática. Já me tinha esquecido do trabalho árduo que dá fazer uma coleção e apresentá-la. Mas é isto que eu quero fazer o resto da vida!

Essa experiência com os alunos teve algum impacto na maneira como voltou a criar uma coleção?

Não. Ter estado afastada ajudou-me foi a pensar que eu não podia cometer os mesmos erros do passado.

Que erros são esses?

Fazer coisas que ninguém veste, por exemplo. É pensar mais no eu artístico do que no design para o dia a dia. Uma peça pode ter design, pode ter bons acabamentos, pode ter materiais diferentes, pode ter novidade, mas tem de ser “vestível”. No passado fiz muitas coisas mais viradas para o espetáculo. Esta coleção, independentemente de ter algumas peças mais chamativas, é prática.

Como é que se conseguem conciliar essas duas coisas: a criatividade e a utilidade?

O processo desta coleção foi: tudo o que eu achava que não vestia, não fiz. Foi este o meu raciocínio. A criatividade é mais difícil quando estamos a fazer coisas comuns, menos exuberantes. A minha criatividade muitas vezes está mais virada para os detalhes e volumes.

“Uma peça pode ter design, pode ter bons acabamentos, pode ter materiais diferentes, pode ter novidade, mas tem de ser ‘vestível'”.

Esta coleção tem muitas peças que se podem usar de diferentes formas. Acha que é importante, numa altura em que se fala tanto de sustentabilidade, criar peças muito versáteis?

Acho que sim. É importante para uma pessoas ter um guarda-roupa que pode não ter muitas peças, mas depois a maneira como as usa pode ser diferente.

Qual foi a inspiração desta coleção em particular?

A coleção chama-se Construção e tem a ver com três tipos de construção: a do eu como designer, a construção dos detalhes de modelação, e depois utilizei alguns elementos da sinalética de obras de construção que reforçam o meu tema. Associei estes símbolos em estampados a trechos da música ‘stop in the name of love‘ (para em nome do amor), em que por exemplo tenho um símbolo de ‘proibido entrar’ que por baixo diz “before you brake my heart” (antes que me partas o coração). Brinquei um bocadinho.

A música da coleção juntou Chico Buarque e um texto de José Saramago. Porquê?

A música foi do André Tentúgal. Desde o início que disse que queria Chico Buarque, até porque a coleção é muito escura inicialmente, e tinha uma parte em que puxava muito para a globalização. Algumas modelos usaram lenços tipo hijabs, que são os lenços usados pelas muçulmanas a que eu dei um ar mais contemporâneo.

Porquê pôr hijabs na coleção?

Porque é o que se vê no mundo. Vamos a Paris e vemos essas mulheres, no mundo temos pessoas de todas as nacionalidades, raças e crenças. Eu quis marcar essa ordem. Tenho um vestido na coleção que diz “É proibido proibir”. Cada vez mais temos que aceitar todos e viver em comunidade. Isto é a globalização e o meu desfile é como se estivéssemos na rua a ver pessoas de todas as raças, cores e crenças.

“Há determinados discursos que não podem acontecer, há determinadas pessoas que estão a trazer à tona ideias que já deviam ser completamente ultrapassadas”

O texto de Saramago fala muito do trabalho e da maneira como o trabalho que se faz hoje tem importância para amanhã. Porquê esta escolha?

Esse texto tem uma preocupação politica. Há determinados discursos que não podem acontecer, há determinadas pessoas estão a trazer à tona ideias que já deviam ser completamente ultrapassadas. E são essas pessoas que estão a tomar o poder e é preciso ter cuidado, é preciso ter cuidado mais uma vez com o que estamos a construir. É preciso ter cuidado com o que se está a construir.

Tem uma mensagem politica esta coleção?

Também. É uma mensagem de preocupação.

É preciso mais tolerância e menos discursos populistas?

Eu acho que é preciso estar atento e ter cuidado.

Como é que a moda pode ter um papel político importante?

A moda sempre teve um papel importante nisso. Basta olhar para o passado e ver. Enquanto designer não faz sentido não ter uma palavra a acrescentar ao mundo.

Qual foi a palavra que esta coleção acrescentou?

É proibido proibir.

 

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