Maria João Lopo de Carvalho: “Diz-se que as mulheres nos tempos passados não tinham voz e eu quero mostrar que não era bem assim”

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Fotografia: Leonardo Negrão/Global Imagens

Maria João Lopo de Carvalho tem feito dos seus romances históricos um veículo para revelar como as mulheres foram conseguindo ter relevância nas sociedades do seu tempo. A sua obra mais recente vem reforçar isso mesmo. ‘O Fado da Severa’ (Oficina do Livro) traz a voz – no seu sentido real e figurado – da mítica cantora que terá estado na origem da popularização do fado, Maria Severa Onofriana.

A partir da reconstituição da Lisboa boémia do século XIX, dos seus bairros históricos, como a Mouraria, e das gentes que a ela confluíam na altura, a autora faz o seu retrato de Severa, entre o mito, os parcos registos – muitos de contemporâneos seus – e a simbologia de um género que não lhe pertencia só a si, mas que na sua figura se imortalizou. “Temos esta Maria Severa, temos a Marta Mamalhuda, a Jesuína Ranhosa, a Carlota Escarniche, a Leonor. Todas cantavam e dançavam de igual forma, batiam o fado e aviavam clientes. Esta ficou famosa”, explica Maria João Lopo de Carvalho em entrevista ao Delas.pt.

Severa era, como as restantes referidas, prostituta e nas tabernas, onde recebia os clientes, a música e dança do fado faziam parte dos seus instrumentos de sedução. Atributos, que aliados à sua beleza, conquistaram o Conde de Vimioso. O nobre não resistiu aos encantos daquela mulher do povo e da vida e é, precisamente, em torno desse amor, proibido e fatalmente triste, como o fado, que seguimos a história e o destino de Severa, neste livro.

 

Por que quis escrever um livro em torno da figura da Severa?
Primeiro porque errei na profissão e na vocação. Se pudesse ter escolhido outra coisa na vida teria sido ser fadista. Gosto de fado e de ouvir poesia através do fado, acima de todos os outros géneros musicais. E depois porque nesta senda dos romances históricos que tenho vindo a escrever, tenho procurado tratar sempre assuntos de mulheres: a Marquesa de Alorna, a Padeira de Aljubarrota, as mulheres do Camões e agora a minha diva, a Severa. Acho que era altura de pegar nela, de eu também ficar a conhecer melhor a história, enquadrando-a na Lisboa do século XIX, e poder, assim, dar a conhecer aos outros também um bocadinho de como é que isto tudo começou, afinal.

Daquilo que descobriu sobre a Severa o que é que a surpreendeu mais?
Tudo. Eu sabia só da Severa o que se sabe da Cinderela. Uma menina pobre que morreu com 26 anos, que tinha sido provavelmente a primeira mulher a cantar o fado e que se tinha apaixonado por um conde rico, o Conde de Vimioso, sendo ela uma prostituta e a quem a morte terá colhido no melhor ponto da sua vida. Era só isto que sabia. Mas depois de investigar, durante dois anos, sobretudo através dos jornais da época e dos registos dos seus contemporâneos, que viveram pela Mouraria, Alfama e Madragoa, fiquei a saber muito mais. E a partir daí e das personagens secundárias, que às vezes são o mais importante num romance, consegui contar a história dela. Tudo foi uma surpresa, porque nestes romances históricos eu parto do princípio de que partem os leitores: o saber comum. E depois o que é engraçado é fazer de detetive, ir atrás de uma pessoa. Só quem ama o presente e o futuro é que gosta de ir ao passado perceber as coisas. Sobretudo sendo mulher, porque diz-se que as mulheres nos tempos passados não tinham qualquer voz, no sentido de presença, força e desempenho no mundo português e eu quero mostrar que não era bem assim.

Maria João Lopo de Carvalho na janela da casa onde se supõe que Severa tenha vivido, na Mouraria, em Lisboa.
[Fotografia: Leonardo Negrão / Global Imagens]
A Severa que conhecia antes da investigação era muito diferente da que encontrou depois disso?
Uma coisa é o registo biográfico. A Maria Severa Onofriana nasceu, supõe-se, que foi nos Anjos – embora haja várias teorias – e que terá “rendido” em várias tabernas, que a mãe é que a introduziu na prostituição, que ela e as colegas delas todas dançavam o fado. O fado era uma dança, uma dança sensual, erótica quase, e que encantava não só as pessoas aqui do bairro, mas também os nobres titulares do reino, que vinham vê-las aqui [à Mouraria], bailar, dançar e não só, como se imagina. A partir daí o que eu achei engraçado foi perceber quem eram os vizinhos, quem eram as amigas, os amantes da Severa, os pares com quem dançava e os outros titulares, os cavaleiros tauromáquicos e os fidalgos que também a vinham ver aqui. Através das memórias dessas personagens e do Raimundo de Bulhão Pato, que era contemporâneo da Severa e que deixou um livro fabuloso de memórias onde conta bastantes coisas sobre ela. Portanto, isto não é uma lenda. Mas a verdade é que não foi só ela que levou o Fado a ser o Património da Humanidade [que é hoje] foram todas as Severas que aqui habitavam. Temos esta Maria Severa, temos a Marta Mamalhuda, a Jesuína Ranhosa, a Carlota Escarniche, a Leonor. Todas cantavam e dançavam de igual forma, batiam o fado e aviavam clientes. Esta ficou famosa porque Júlio Dantas fez uma peça de teatro que deu depois origem ao primeiro filme sonoro português [‘A Severa’]. Quem tinha a melhor voz? Nunca vamos saber porque não existem registos discográficos dessa época.

“Não podemos nunca dizer que só as prostitutas é que cantavam o fado. A Severa e as amigas eram prostitutas.”

O fado, a dança e a prostituição eram três dimensões que estavam associadas, nessa época. Hoje, o fado está nos palcos mais nobres da nossa sociedade. Como é que se dá esta evolução do género?
É impossível contar esta história sem perceber o que é que se passava no século XIX, em Lisboa. Este bairro da Mouraria era um sítio onde vinha toda a gente do país à procura de trabalho. Acresce a isso a vinda das naus do Brasil, quando a corte volta para Portugal e com ela traz uma população negra. [Juntam-se] Operários, marinheiros, soldados, netos e bisnetos de antigos escravos; imagine-se como é que era o seu lazer. Era nas tabernas, com vinho tinto, a correr e a dançar. As danças eram uma mistura do lundum, com as nossas modinhas e com o fandango…Era um local castiço, boémio, onde as pessoas, na altura, afogavam as suas tristezas e se divertiam também. Os nobres achavam muita graça ver o que é que se passava nestes sítios, tão diferentes dos deles. E aí é que reza a história que um dia o Conde de Vimioso levou a Severa para casa dele, no Campo Grande, o sítio dos palácios e das quintas. Resolveu organizar um salão musical, mas boémio, e levou a Severa para cantar. Facilmente, conseguimos imaginar que ela, naquele ambiente tão requintado, não iria bater o fado como fazia aqui com os amigos. Tanto quanto pude perceber, a transição das tascas, das tabernas, da Mouraria para os salões dos titulares terá talvez feito com que o fado perdesse o seu caráter de dança. Por decoro. E, por outro lado, será que ela estava a tocar guitarra? Se estava como é que conseguia dançar ao mesmo tempo que tocava? Mas o género já estava instalado, os nobres já gostavam de ouvir as meninas a cantar. Não era só o Conde de Vimioso que fazia os seus salões musicais. Eram todos os outros. Foi havendo dois espaços e estes confluíam um no outro. O fado continuou a ser cantado e dançado nas tascas, nas tabernas e casas de pasto de Lisboa, como nos palácios. E é assim hoje, no século XXI.

Mas a guitarra passou para as mãos dos homens – há pouquíssimas mulheres a tocar guitarra de fado e a acompanhar fadistas à guitarra.
Sim, isso depois já é num período seguinte. Nesta altura, e eu só estudei esta época da Severa, quem tocava guitarra era quem tivesse a guitarra na mão, fossem homens, fossem mulheres. Tocava a Severa, tocava o Chico do Alegrete. Era um instrumento de uso popular, rudimentar e ao mesmo tempo tocavam a banza e o cavaquinho. Com certeza que não “estilavam” como hoje fazem. Aliás, não havia aquela história do ‘silêncio, que se vai cantar o fado’. Esse é depois do século XX e das gravações. Não havia silêncio nenhum. Era tudo a falar ao mesmo tempo, tudo a dançar, a maior confusão. Era uma dança do povo, muitíssimo sensual e nunca saberemos muito mais do que isso.

Maria João Lopo de Carvalho, autora do livro ‘O Fado da Severa’, na Mouraria[Leonardo Negrão / Global Imagens]
Apesar de ter o nome da mítica fadista, este livro é, sobretudo, uma obra em torno do romance da Severa com o Conde de Vimioso. Por que quis partir daí?Quando estamos a contar ou a romancear uma história, temos de partir de algum ponto e eu acho que este sofrimento da Severa, dos amores proibidos por um homem casado, de outro meio social, que a levou daqui para o palácio dele, prendendo-a numa gaiola dourada da qual ela fugiu, tudo isto cria um conflito e uma dor profunda numa ou nas duas personagens e é esse sofrimento, aliado à história do fado, que eu quis transmitir. Porque, de facto, a maior parte do fado é um sentimento triste, uma saudade, uma dor, um ciúme, uma separação. Isso fez-me contar uma história que é uma história triste, embora eu tenha tentado dar umas pinceladas divertidas desta Lisboa tão castiça e tão boémia aqui da Mouraria. Mas é uma história que tem um princípio, meio e fim todos tristes, desde ela ser filha de uma prostituta, ter sido levada para a má vida logo em pequena, a ter confluído aqui com as outras raparigas da idade dela, com o mesmo destino e a mesma profissão, depois ter tido esse amor impossível e infeliz e, por fim, ter morrido muito cedo. Tudo isto é um fado triste.

Essa realidade da prostituição, da altura, é revelada com algum desenvolvimento no livro. Por que foi importante para si retratar esse universo?
Bom, aqui na Mouraria, as mulheres não eram todas prostitutas. Havia todos os ofícios, as vendedoras de fruta, as lavadeiras, que vinham de Caneças. Não podemos nunca dizer que só as prostitutas é que cantavam o fado. A Severa e as amigas eram prostitutas. Imagine uma pessoa que tem de vender o seu corpo para sobreviver e pagar contas e ao mesmo tempo cantar desta forma e ser a primeira, ou estar entre as primeiras, de um género que ficou para sempre, se tornou Património da Humanidade e que é a música que os portugueses tanto amam, que nos está no ADN. Agora, estudei muito sobre a prostituição naquela altura, passei muitas horas e muitos dias na Biblioteca Nacional a ler tudo o que havia ao mínimo detalhe. É um bocadinho como quando contei o terramoto na Marquesa de Alorna, são os momentos que nos causam especial emoção os que me atraem. Está a imaginar uma miúda com 9 e 10 anos a ver a mãe a prostituir-se. E infelizmente isto é verdade e ainda acontece hoje em dia. Imaginar estas camadas da população tão desfavorecidas que dificilmente conseguimos perceber o sofrimento que causa. A partir daí começo a querer ler tudo e a querer perceber como é que eram os contornos desta vida. O que eu tentei fazer foi ir ao máximo do rigor e do pormenor de maneira a contar a história o mais perto que eu acho que possa ter sido.

“Não vejo por que não mandemos no mundo. Em que é que nós somos diferentes, em que é que somos menores? SE FIZERMOS UMA RECOLHA DAS MULHERES PORTUGUESAS IMPORTANTES AO LONGO DOS TEMPOS FICAMOS IMPRESSIONADAS COM A QUANTIDADE DE MULHERES QUE DERAM CARTAS. “

Quanto tempo demorou a investigação para este livro?
Um ou dois anos, mais ou menos. Mas a investigação é um privilégio. Cada vez que vou à Torre do Tombo ou à Biblioteca Nacional sinto que vale a pena pagar impostos neste país. Sou tão bem tratada e é um ambiente de luxo estar na Biblioteca Nacional e ter acesso a tudo o que há sobre essa época.

Além dessas fontes, contactou também com algumas pessoas do meio do fado para a preparação do livro.
Sim, com o professor Rui Vieira Nery, com o David Ferreira, nas comunidades de fado com a Aldina Duarte. Eu perguntei a não sei quantos fadistas, entre eles o Camané, como é que seria a voz da Severa na imaginação deles. E uns diziam que era no género da Carminho, outros que era com a da Aldina, outros que era um bocadinho como a Gisela João. Porque infelizmente não há registos, nem de letras, só umas vagas quadras que cito no livro, nem música. O que podemos saber é que ela bebia bastante vinho, fumava e bebia muito café. Portanto, a voz devia ser baça. Nem sequer a imagem sabemos. Temos um retrato de um pintor, inacabado, e temos a ideia de que ela era uma mulher com traços portugueses aciganados, se quiser, muito morena, bonita, sensual, com os olhos castanhos, um sinal no rosto, usava umas argolas [nas orelhas]. Essa é a ideia que temos todos. Depois ninguém sabe muito mais. Este livro é a minha versão da Severa, e não foi através da do Júlio Dantas que a apanhei, foi através da Lisboa boémia, popular, do Palmeirim, do Bulhão Pato, de todos os que encontrei na Biblioteca Nacional.

Maria João Lopo de Carvalho é autora de vários romances históricos, sobre figuras femininas, entre as quais a Marquesa de Alorna e a Padeira de Aljubarrota. A fadista Severa inspira o seu mais recente livro do género.
[Fotografia: Leonardo Negrão / Global Imagens]
Aquilo que investigou e conheceu, através dos seus romances históricos focados em figuras femininas, o que é que lhe permite perspetivar para o futuro das mulheres portuguesas?
Estamos numa época completamente diferente, mas não vejo por que não mandemos no mundo. Em que é que nós somos diferentes, em que é que somos menores? Pelo contrário, se fizermos uma recolha das mulheres portuguesas importantes ao longo dos tempos ficamos impressionadas com a quantidade de mulheres que deram cartas e daqui para a frente serão muito mais. Hoje em dia temos tudo ao nosso alcance. Podemos estudar, investigar, progredir, emigrar – infelizmente algumas são obrigadas. Não é por ser mulher, mas há estas mil tarefas que temos de fazer – por mais que um homem queira dizer que há igualdade, quando um filho está doente, chama pela mãe – e, além disso, temos de dar cartas no mundo profissional. Portanto, se somos mais ou menos capazes que os homens, não é pergunta que se faça. Obviamente, somos iguais.

“Cada vez que vou à Torre do Tombo ou à Biblioteca Nacional sinto que vale a pena pagar impostos neste país.”

Disse no início desta entrevista e diz também no livro que se pudesse ser outra coisa na vida seria fadista. Já experimentou cantar?
Não, como diziam os meus irmãos mais velhos chumbei na música logo aos três anos. Se bem que sei ler uma pauta e aprendi a tocar guitarra clássica quando era miúda. O que gosto sobretudo no fado é o tributo enorme que presta à poesia, ao cantar todos os grandes poetas portugueses.

E escrever uma letra para fado?
Também tem o seu quê e eu não sou poeta. Conto histórias, faço romances históricos. É uma arte diferente, é preciso saber-se ser sábio nesse ofício, eu não sou neste momento. O futuro a Deus pertence, mas não sou poeta. Gosto mais de ser uma contadora de histórias.

 

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