Maria Teresa Horta, a poetisa que transformou o drama de abandono em luta pelos direitos das mulheres e da liberdade

Maria Teresa Horta, jornalista, escritora
Maria Teresa Horta [Fotografia: Leonardo Negrão/ Arquivo](Leonardo Negr„o / Global Imagens)

Se escrevesse umas Novas Cartas Portuguesas, Maria Teresa Horta teria muita coisa para escrever, “desde logo a violência contra as mulheres”.

Esta frase, dita em entrevista há cerca de três anos, continuava a mostrar o olhar atento da poetisa, escritora, jornalista e ativista pela liberdade e pelos direitos das mulheres e que morreu em casa, esta terça-feira, 4 de fevereiro.

A escritora desafiou a ditadura e sentiu isso mesmo na pele, quis mudar convenções sociais e também ficou com marcas, quis e escreveu sobre o prazer feminino e nem sempre foi acolhida, mas nunca desistiu.

A propósito dos 50 anos de As Novas Cartas Portuguesas, em 2021, dizia que os direitos das mulheres tinham progredido, “mas não se avançou em relação à violência doméstica”. Maria Teresa Horta morre, aos 87 anos, num dos meses negros a que Portugal assiste, com o homicídio de cinco mulheres em contexto de intimidade. “Hoje em dia os namorados batem nas namoradas, antigamente batiam depois de casados”, vincou, em entrevista em 2022.

Nascida em Lisboa, em 1937, Maria Teresa Horta, familiar descendente da Marquesa de Alorna, foi uma voz pública de luta pelos direitos das mulheres e uma mulher contestatária na sua intimidade. “Desobediente” mesmo, como lhe chamou a jornalista Patrícia Reis na biografia que escreveu sobre ela.

Cresceu numa família que nem sempre lhe deu segurança, e foi sempre perseguida pela sensação de abandono, como relatou a biógrafa. Aos quatro anos, viu-se pendurada do lado de fora da janela pela mãe pronta para ser lançada. Anos mais tarde, via a progenitora deixar a família para seguir o coração com um homem com quem mantinha uma relação extraconjugal e Maria Teresa Horta, que tinha na avó Camila apoio e referência, perdeu-a quando a escritora tinha nove anos.

Choques sucessivos que moldaram a escritora e jornalista na fragilidade, mas também na resistência. Luta que fez contra a ditadura, que chegou a ‘espancá-la’ na rua por publicar poesia erótica e num episódio que seria desencadeador de As Novas Cartas Portuguesas, escrito a seis mãos com Maria Isabel Barreno e Maria Velho da Costa. Esta terça-feira desapareceu a última Maria, mas não o seu legado e a sua influência.

A poetisa frequentou a Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, foi dirigente do ABC Cine-Clube, militante ativa nos movimentos de emancipação feminina, jornalista do jornal A Capital e dirigente da revista Mulheres, organizou manifestações de protesto contra a opressão exercida pelas mulheres e nunca desistiu de se bater pelos direitos das mulheres. Dizia que a poesia salvava e escrevia todos os dias.

Embora o fizesse sempre à mão, cedo começou a partilhar os seus poemas nas redes sociais. O ritual começou por volta de outubro de 2013. Todos os dias, a meio da tarde, a poetisa encontrava, ora na sua obra publicada – de poesia erótica e não só –, ora entre os inéditos, ora motivada por acontecimentos da atualidade (como a superlua ou a primeira vitória de Trump), um poema e publicava -­o na sua cronologia do Facebook. “A poesia tem de se partilhar”, dizia­ em entrevista à Delas.pt, e acrescentou: “Es­tou em casa, vou fazer o almoço… porque sou mulher. Sim, porque os homens, os poetas, não têm de estar na cozinha e não precisam de ir à sala ler um poema de Marina Tsvetaeva [au­tora russa, 1892-­1941] para poderem aguentar estar na cozinha. Isso é coisa das poetisas. Para mim, poesia é corpo, fruição física. Eu ”

Recorde-se que, em dezembro último, a escritora foi incluída numa lista elaborada pela estação pública britânica BBC de 100 mulheres mais influentes e inspiradoras de todo o mundo, que inclui artistas, ativistas, advogadas ou cientistas.

Maria Teresa Horta é autora de vasta obra bibliográfica, tendo-se estreado na poesia em 1960 com Espelho Inicial. Entre os títulos mais conhecidos, entre poesia e ficção, estão Minha Senhora de Mim, Anunciações, Ambas as Mãos sobre o Corpo, As Luzes de Leonor, e A Paixão segundo Constança H.

Recebeu múltiplos prémios e, em 2022, foi condecorada com o grau de Grande-Oficial da Ordem da Liberdade, pelo Presidente da República.

Na nota de pesar emitida esta manhã de terça, 4 de fevereiro, Marcelo Rebelo de Sousa evoca a escritora e lembra a “militância feminista, tanto no domínio político-social como no literário, bem como à polémica desassombrada e à franqueza erótica”.