Maria de Vasconcelos: “Fui sempre muito boa aluna, mas detestava estudar”

maria vasconcelos

Maria de Vasconcelos está de volta com “As Canções da Maria”, desta vez com um “Especial História de Portugal”. Neste novo trabalho que aborda matéria escolar do 1º, 2º e 3º ciclos, poderá encontrar de novo as personagens Maria, Mathilde, Manon e Mathias, desta vez a dar vida a histórias maravilhosas que fizeram parte da nossa História, com 17 canções, 1 poema, 4 lengalengas e muitas curiosidades. Esta mulher multifacetada (é psiquiatra, radialista e cantora) diz que se sente feliz a fazer de tudo um pouco, mas também se confessa fã incondicional do “dolce fare niente”.

Maria, como surgiu a ideia de criar estes CDs para crianças?

Bom, começou com as nossas filhas, a Mathilde e a Manon. Eu desde miúda que canto, faço canções a torto e a direito. Tive uma escola longa, quando acabei a especialidade de psiquiatria, estava a estudar há cinco sextos da minha vida, há 24 anos! Fui sempre muito boa aluna, mas detestava estudar! [risos] Detestava o esforço e o não poder fazer outras coisas que me apeteciam muito mais, odiava o stress das avaliações. Gostava de saber e de aprender, mas não gostava da forma como a matéria era dada. O sistema educativo deixa muito a desejar, é o mesmo desde a Revolução Industrial e não sofreu mudanças. Há muita gente que passa pela escola e não sabe qual é o seu talento. Não é estimulada a criatividade, pelo contrário. Então, ao longo da minha carreira estudantil ia arranjando uns subterfúgios para facilitar o estudo. Às vezes punha a matéria em música – comecei logo no sétimo ano com os verbos transitivos, intransitivos, copulativos, matéria sobre a Segunda Guerra Mundial, coisas que ainda hoje sei! [risos] Depois na faculdade fiz o mesmo – ajudou-me a decorar uma data de matéria, nomes de músculos e afins. Ou seja, não sou muito ortodoxa, nunca fui, e portanto esta história de pôr a matéria em canção já vem de trás. Quando a Mathilde um dia chegou a casa e me disse que na escola tinham falado sobre os planetas, eu fiz-lhe uma canção sobre esse tema, para lhe facilitar a memorização. Mais tarde fiz uma canção sobre o sistema urinário, enfim, por aí fora. Tudo no intuito de facilitar a aprendizagem e tornar o processo mais divertido.

E a Maria faz tudo, escreve, compõe…?

Eu faço tudo! Tudo o que se vê neste livro sou eu que faço, só não faço o que não consigo, ou seja, a animação, a orquestração – desenhar até talvez conseguisse, demorava era imenso tempo e, claro, não tenho o talento do fantástico Nuno Markl.

Como é que os desenhos do Nuno Markl valorizam o seu trabalho?

Valorizam imensíssimo. Porque o Nuno é meu amigo, porque sou muito amiga dele, sou madrinha de casamento dele, e porque para mim é um grande orgulho ter o Nuno a desenhar aqui. Desde o início foi ele que nos “inventou” no papel. Calculo que seja uma mais valia para toda a gente em geral, porque o Nuno é alguém muito estimado por miúdos e graúdos. Mas toda a equipa foi fantástica: na orquestração e arranjos, o João Só, um músico maravilhoso e um homem genial, que trabalha com o Hélder Godinho, fez um trabalho absolutamente fantástico. Gravei 17 canções em 3 horas no dia que que fizemos isto, foi um “ver se te avias”! [risos] Na animação foi o Bruno Caetano, com a ajuda de João Alves que, super solícito, conseguiu agarrar o projeto e cumpriu o prazo com mão de ferro, foi a primeira vez que tive alguém na parte da animação que conseguiu fazê-lo, foi fantástico! [risos] Quanto à roupa tivemos uma costureira com mãos de ouro que nos fez montes de roupa. A nossa maquilhadora e caraterizadora, professora de Educação Visual da Mathilde e da Manon, também é fantástica, pôs-nos lindos e maravilhosos! Isto é uma edição de autor, ou seja, fomos nós que lançámos este trabalho. A Sony está apenas a fazer a distribuição, a colocar tudo nas lojas. Isto para explicar que quem “bancou” tudo isto fomos nós! [risos] Foi um investimento intenso em termos físicos, psicológicos e financeiros! Mas faria tudo de novo, mesmo que não tivesse qualquer retorno financeiro, estou muito orgulhosa e muito contente!

E poder trabalhar com as meninas também deve ser ótimo…

As manas ‘M’ são de se lhes tirar o chapéu. Não nos podemos esquecer de que têm apenas 11 e 13 anos, apesar de parecerem mais velhas. Têm sido extraordinárias, desde pequenas. A primeira vez que gravámos elas ainda tinham 4 e 6 anos, quando o disco saiu tinham 5 e 7. Começaram logo a andar na estrada connosco e a fazer concertos. Parecem muito crescidas, mas a Mathilde está no 8º ano, e a Manon no 7º. Portam-se melhor do que muitos adultos, e fizeram tudo isto com uma limpeza e uma rapidez incríveis.

Radialista, psiquiatra, compositora, autora, até já foi modelo… afinal quem é a Maria?

[risos] Só me falta fazer olaria… [risos] Bem, costumo dizer assim “Eu sou a Maria”. Eu sou essas coisas todas, não sou nenhum extraterrestre. [risos] Fui sempre assim desde miúda, sempre gostei de fazer várias coisas. Acho que não ficava muito satisfeita se fizesse só uma. Embora fique sempre extremamente satisfeita quando não tenho nada para fazer, gosto imenso de não fazer nada. Foi de facto a primeira coisa que quis fazer na vida: nada. [risos] E continuo a achar que esse é que seria o caminho. Eu tenho esse meu lado preguiçoso. Vivo para as férias, desde sempre. Adorava fazer calendários naquelas folhas quadriculadas e riscava logo os fins de semana e feriados. As minhas férias são sagradas, pode o mundo cair, que eu resolvo quando voltar. Já houve alturas na minha vida em que tive muito menos para fazer e nunca me aborreci. [risos] Ao mesmo tempo, esta corredia mantêm-nos vivos. É uma coisa boa.


Adorava fazer um disco Pop com as miúdas. Tenho imensas canções em português, em francês, em inglês… Elas cantam as duas e gostam, era capaz de ser giro de fazer, e elas iriam adorar. Gostava muito de fazer uma coisa que são “As histórias da Maria”. Fazemos isso lá em casa desde que elas eram pequeninas.


E o que queria ser quando era pequena?

Lembro-me que, aí até aos 7 anos, quando me perguntavam o que eu queria fazer, eu respondia “nada”. E toda a gente se ria. Até que um dia a minha mãe me disse, “Maria, as pessoas grandes fazem coisas. Tens de fazer qualquer coisa. Não há nada de que gostes?” Como a minha mãe era enfermeira parteira, eu disse, “Ok, quero ser médica.” “Médica de quê?” “Hmmm, ginecologista-obstetra.” Era uma coisa difícil de dizer, por isso as pessoas continuavam a rir-se. E eu gostava, como era miúda gostava que me achassem graça. Até que um dia a minha mãe, em conversa, me disse que os bebés nasciam a qualquer hora do dia ou da noite, e que eu ia perder muitas noites sem dormir. E eu disse, “Aiii que horror! Nem pensar!” Eu sou muito dorminhoca, adoro dormir. Então resolvi que sim, ia ser médica, mas logo se via de quê. [risos] Mais tarde, quando tinha 14 anos, no 10º ano, tive um professor de Noções Básicas de Saúde que distribuiu a cada um, em aula, um tema para apresentarmos, com uma série de folhas e artigos de apoio. Calhou-me as doenças mentais. Li tudo de uma assentada e fiquei apaixonada pelo tema, apaixonei-me pela cabeça das pessoas. E pronto, decidi: quero ser psiquiatra. Entrei para psiquiatria, passei todo o curso a dizer que queria ir para psiquiatria, e quando finalmente chegou a hora de tomar a decisão, saí-me bem no exame e podia escolher o que quisesse, onde quisesse. Fiquei de pé atrás: perante o leque de possibilidades aberto, tive uma sensação de angústia durante semanas. “Será que é mesmo isto que eu quero?” Nunca me tinha sentido assim. Eleger é difícil. E depois, na altura, comecei a trabalhar na RTP, também encontrei o Xavier (muitas coisas a acontecer ao mesmo tempo na minha vida), e conheci a Paula Castelar. E a Paula disse-me, na altura, mesmo conhecendo-me há pouco tempo: “Oh Maria, por amor de Deus. Passaste toda a tua vida a querer ser psiquiatra, é aquilo que tu queres. Mas qual é a tua dúvida? É o que tu queres fazer!” Ela não me disse nada de especial, mas não sei, o tom com que ela falou fez cair a ficha, e eu disse logo, “Mas claro, que disparate.” E pronto, lá fui para psiquiatria. E foi uma boa escolha, sem dúvida alguma, é a minha cara.

E em que medida é que a formação e a experiência em psiquiatria enriquecem estes trabalhos?

Para ser psiquiatra tem que se ter uma inteligência interpessoal. A inteligência não é só linguística e matemática, contrariamente àquilo que os testes de QI afirmam. Há muitas inteligências. Todos as temos, e umas são mais predominantes do que outras. A inteligência interpessoal consiste em compreender os outros e agir em conformidade. Isso é algo que um psiquiatra tem, e que eu acredito ter, e ter bem. Mas isso também é algo que me ajuda imenso a perceber o público em geral, as necessidades dos que me rodeiam. Atenção: eu sou psiquiatra de adultos, não trabalho com crianças, mas sou mãe. E isso ajuda-me a compreender as angústias da escola, as necessidades dos miúdos, ajuda-me a perceber os meus limites, até onde posso ir e não posso ir, a ter noção de que tenho de falar primeiro com os professores para perceber quais são as dificuldades… E isso tem a ver com essa inteligência interpessoal. Porque é de pessoas que se trata. Aliás, o mundo todo é de pessoas que se trata. No dia em que não houver pessoas, logo se vê. Todos os serviços são feitos de pessoas, todas as coisas são feitas pelas pessoas, tirando o que cresce naturalmente e os animais – e mesmo assim, o humano dá ali um jeitinho… As pessoas são sempre o mais importante. Se calhar a minha personalidade, que faz com que eu tenha querido ser psiquiatra, e que seja com todo o gosto, também faz com que eu consiga perceber este lado e trabalhar este lado mais artístico.

Como é conviver com todas essas vertentes? A mais científica, a mais artística, a mais comunicadora…?

É pacífico. Durante muitos anos achava-me um pouco E.T. Talvez não fosse uma pessoa muito habitual. Não me achava especial no bom sentido, nem no mau. Só achava era que não seria muito normal, talvez, fazer tantas coisas diferentes. Eu sou psiquiatra MAS também sou artista, ou sou artista MAS também sou psiquiatra. No meio da Medicina, durante os períodos de formação, quando já trabalhava na TV e na rádio, as pessoas olhavam para mim e achavam que na Medicina era a artista, e no meio das artes era a psiquiatra. Sem qualquer desprimor, sem acharem que era menos por isso, mas sempre um pouco naquela “ela não é absolutamente daqui”. E isso era o que me devolviam, talvez também porque eu me sentisse e agisse dessa forma. O certo é que houve ali uma altura em que integrei a coisa e disse “NÃO, sou médica E artista. Não é MAS. Isto é copulativo.” Hoje sou médica E artista E mulher E mãe, sou todas essas coisas, e está tudo bem! E ainda bem!

Como tem tempo para tudo? Queremos saber o segredo.

Durmo pouco e ando cansada! Olhe para estas olheiras! [risos] Isto realmente é muito cansativo, mas compensa imenso.

Em 2014 a Maria publicou o livro “O dia em que sobrevivi”. Quer falar um pouco sobre o que se passou nessa época da sua vida?

“O dia em que sobrevivi” foi algo que eu escrevi e que alguém quis transformar em livro. Eu fiquei muito feliz e avançámos. Chama-se “O dia em que sobrevivi” porque é um dia a comemorar. Foi de facto um dia em que sobrevivi. Estive doente durante cinco anos com algo que ninguém conseguia perceber o que era, que começou durante a gravidez da Manon, e tive vários diagnósticos. Sou médica, explico-me bem, no entanto os meus colegas foram-me inserindo sempre nas mesmas caixas, e de facto eu não tinha nada daquilo. A certo ponto acabei por fazer uma paragem respiratória, e não fui desta para melhor por um minuto, literalmente. Na época tomava 23 comprimidos por dia, várias vezes ao dia. Não conseguia fazer nada. Até que descobri um médico fantástico, o Dr. Pedro Mata, que descobriu o que eu tinha e que me salvou. Era uma coisa tratável, mas muito grave. Era um bicho que ninguém conhece em Portugal, um fungo que se chama Stachybotrys. É um fungo muito preto e que provoca pneumonias hemorrágicas, mata tudo e mais alguma coisa. Até fazem a demolição dos prédios onde o encontram, porque ele adora celulose, e torna-se complicado. É muito conhecido no estrangeiro, mas não cá. Tive então de fazer um tratamento bastante agressivo, ao fim de cinco anos sem saber o que tinha e a achar que tinha algo que nada tinha a ver com a realidade, quase ter morrido disso, não sei quantas crises… Foi muito complicado, muito difícil. As miúdas tinham 3 e 5 anos, eu tinha 39 anos, tenho agora quase 47. E pronto, escrevi o que está nesse livro, é um relato de quando estava no hospital. Estava consciente, embora não estivesse bem, mas pedi ao Xavier que me trouxesse um bloco e um lápis, com afia e tudo. Fui escrevendo ao longo daqueles três dias o que ia testemunhando. Tenho um blogue que tenho descurado ultimamente, mas onde escrevi muito durante muitos anos, que se chama “Donas do meu Mundo”. Na altura em que estive doente escrevi sobre isso, e achei que quando a situação se resolveu devia aos meus leitores uma “explicação”. Andava toda a gente muito preocupada, e com razão. O meu editor leu o que escrevi, quis editar aquilo, na época não foi possível, e acabou por se editar pela Altaya, há uns anos. E foi assim.

E agora? Projetos para o futuro? O que vem por aí?

Agora quero sopas e descanso! [risos] Vamos agora explorar o História de Portugal, com concertos e afins. Adorava fazer um musical, mas não sei como iriamos conseguir mudar de roupa tão depressa… [risos] Vamos pensar nisso. Adorava fazer um disco Pop com as miúdas. Tenho imensas canções em português, em francês, em inglês… Elas cantam as duas e gostam, era capaz de ser giro de fazer, e elas iriam adorar. Gostava muito de fazer uma coisa que são “As histórias da Maria”. Fazemos isso lá em casa desde que elas eram pequeninas. Por exemplo, elas dão-nos três palavras e nós inventamos uma história. Ou entre os quatro um começa e o outro continua a partir da última palavra. Fazemos muitos jogos desses, com histórias malucas. Gostávamos de fazer algo com isso, as histórias são uma mais valia enorme para a escola e para a criatividade. Acho que pode mesmo ser mais importante do que a gramática, por exemplo, que é tão hermética. É bom aliviar um bocadinho de vez em quando.

Carmen Saraiva