#powerwoman Marisa Matias: “Estamos a viver um momento de retrocesso dos direitos das mulheres”

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Nasceu em 1976, é natural de Coimbra e é, desde 2009, eurodeputada. Eleita pelo Bloco de Esquerda na Europa, Marisa Matias tem sido um dos rostos de combate em matéria de migração, paraísos fiscais e, entre outras, causas femininas em Portugal e em Bruxelas e Estrasburgo. É disso que fala ao Delas.pt, na ocasião em que se apresentou na Web Summit para falar nos pesados custos que um mercado que é livre pode acarretar.

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Mas há muito mais para falar. O acórdão polémico do juiz Neto de Moura, as penas suspensas nos casos de violência doméstica, os incêndios – e Marisa assistiu a um em criança, que mudou para sempre a vida na aldeia onde nasceu – e até a corrida a Belém. Ora, em 2016, foi a terceira candidata com mais votos e a mulher mais votada de sempre para a Presidência da República, a eurodeputada diz que fica com “urticária” quando pensa que há quem faça “política como carreira”.

Entre Portugal e Bruxelas, como é que está o estado da condição feminina cá e lá?

Não creio, neste momento em que falamos, que estejamos à frente em matéria de direitos. Em matéria de estado social estaremos melhor em Portugal do que estamos no conjunto da União Europeia (UE), em que o caminho é, de facto, para uma privatização total e para o livre-arbítrio, não apenas em matéria comercial, mas em matérias que dizem respeito à nossa vida. Em questões tão essenciais como a educação, saúde e serviços públicos de uma forma geral. E com o crescimento da extrema-direita dos países do leste, em França, na Alemanha, em Itália – enfim, um pouco por todo o lado -, os populismos, como vimos no Brexit, estão a pôr um bocado em causa os ditos valores europeus.

Estamos perante recuos.

Estamos a ter retrocessos, sim.

No que diz respeito também às mulheres.

Sim. Sim. Quando, na Hungria, se aprova uma constituição ou se faz uma revisão constitucional em que se volta a inscrever que o lugar das mulheres é em casa. Ou quando temos, na Polónia, ataques sucessivos aos direitos laborais e sexuais e reprodutivos das mulheres, que obrigou à greve geral da há um ano e que, este ano, houve a repetição. Quando tivemos, há pouco tempo, em Espanha, a tentativa de voltar a criminalizar o aborto, que felizmente não avançou, nós estamos a viver um momento de retrocesso dos direitos das mulheres.

(Jorge Amaral / Global Imagens)

Como olha para Portugal face aos pares?

A esse respeito creio que, em Portugal, não estamos a viver isso. Mas ainda há muito caminho por fazer, ainda há muita desigualdade, não estamos no mundo perfeito, mas, no geral, não estamos propriamente nos melhores momentos. Estamos a avançar. Gostei particularmente da medida, que não é deste período que vivemos, de despenalização da Interrupção Voluntária da Gravidez. Era uma situação insustentável, demorou muitos anos.

Participou nessa luta.

Estive muito ativa no referendo de 1998 e no de 2007 e foram dez anos que perdemos. Se não fosse o julgamento de Aveiro, talvez as pessoas não tivessem uma perceção tão clara da humilhação que era para as mulheres. Foi uma medida simbólica. Uma medida tomada em Portugal que considero muito importante prende-se com o facto de a violência doméstica passar a ser crime público e, mais recentemente, também a violência no namoro. Não é uma lei que seja efetiva em todos os países da UE. Infelizmente, não deixamos de ter mulheres assassinadas todos os anos, nem deixamos de ter violência doméstica, mas podemos ter mais meios para responder à violência, uma medida fundamental.

Como olha para o acórdão polémico de Neto de Moura [que minimizou o uso da violência doméstica sobre uma mulher por esta ter tido um comportamento adúltero]?

É apenas uma ponta do icebergue e, infelizmente, não é o primeiro acórdão deste juiz que reitera que as mulheres são uma espécie inferior e que não têm direitos. Faz, aliás, avaliações baseadas numa leitura muito reduzida da Bíblia, que nem sequer devia ser chamada para a justiça. Felizmente, os bispos portugueses reagiram e criticaram esse posicionamento. Mas o problema é maior, é da justiça, de formação. É uma questão de garantir que a justiça não seja, ela própria, em Portugal, um fator de reprodução de injustiça. E isso vai muito mais longe do que este acórdão. É muito importante que este caso não fique esquecido e que não se isole o problema maior que se passa na justiça, na desigualdade de tratamento das mulheres. Não se pode isolar este caso e achar que está tudo resolvido, quando não está.

E como olha para o facto de haver tantas penas suspensas em processos de violência doméstica?

É outro aspeto que temos de rever. Há, de facto, um código penal comum. Em relação a determinados tipos de crimes estão definidas as penas que devem ser aplicadas e há áreas onde se aplica mais insistentemente a pena suspensa do que noutras. A questão da violência é onde isso mais acontece. É uma questão da sociedade, da educação, mas é sobretudo uma questão de pôr o sistema de justiça a funcionar para que ele seja justo efetivamente. Porque não está a ser.

O que gostava e o que pode fazer como política cá, em Portugal e lá, em Bruxelas, por forma a criar enquadramento a que todos os países respondessem? Peço-lhe alguns exemplos.

Quer aqui, quer em Bruxelas, era fundamental recuperar a democracia. E o sentido da democracia. Que as decisões políticas estivessem mais nas mãos dos cidadãos e das cidadãs do que nos dos interesses económicos. Era absolutamente fundamental. A política foi, de certa maneira, raptada pelos interesses económicos e está a ser muito difícil resgatá-la. Tanto aqui, como em Bruxelas. Era uma tarefa máxima porque, sem isso, dificilmente conseguimos avançar noutros domínios. E em vez de estarmos a fazer um caminho conjunto para as desigualdades, para os desequilíbrios macroeconómicos, para nos afundarmos, voltarmos a fazer um percurso para sermos mais coesos social e territorialmente e com direitos mais iguais entre todos.

Portanto, se todos pagassem impostos nos seus territórios, haveria mais dinheiro para olhar e tratar estes direitos?

Sem dúvida nenhuma. Porque se as contas públicas não estão certas porque há jogos que são feitos e as empresas que podem pagar mais e as grandes fortunas desviam e fogem aos impostos, nós não podemos lutar pelos direitos, nem ter recursos suficientes disponíveis. Às vezes, chegamos a ter ironias como, por exemplo, uma das empresas em Portugal que paga impostos noutro país ter slogans que dizem Sabe bem pagar tão pouco ou outra empresa em Portugal que, nas mesmas circunstâncias, diz que o que é português é melhor do que o resto. E era bom que olhasse mais para o que é feito e não apenas o que se diz.

Sendo que as mulheres são consideradas as principais responsáveis de compras, está a apelar ao boicote?

Não. Mas apelo para que as mulheres não sejam complacentes, nem cúmplices. A questão não se resolve apenas com uma empresa ou uma multinacional.

Neste caso com duas.

É mais estrutural que isso. Estou a apelar à consciência e, sobretudo, a dizer que as mulheres não podem ser complacentes porque a complacência é aquilo que querem que façamos todos os dias da nossa vida. Portanto, em nenhum aspeto da nossa vida podemos ser complacentes, nem cúmplices.

(Jorge Amaral / Global Imagens)

Em 2019, há eleições para a União Europeia, em 2021 há presidenciais. Entre as europeias e as presidenciais e, tendo em conta o que aconteceu nas últimas [Marisa Matias apresentou-se pelo Bloco de Esquerda e foi a terceira candidata mais votada, com 10,1% de votos], já pensou sobre que caminho vai seguir?

Nadinha [Sorrisos] Não pensei

Bem, nada impede voltar a candidatar-se às europeias e prosseguir para as presidenciais, como o fez em 2016.

Não pensei em rigorosamente nada disso. A sério. Porque estas matérias têm de ser pensadas no contexto e no momento. Se faz ou não faz sentido, se há ou não um projeto. Isto de pensar a política como uma carreira provoca-me urticária.

Naquela altura, explicou que não queria que fosse apenas um caso único, como se de um fenómeno se tratasse

Na altura, fazia sentido. Se voltar a fazer. Mas não sei isso hoje.

Quais são as condições que a podem levar a ponderar?

Não sei. Não faço ideia. Não sei como vamos estar em 2019, não sei como vamos estar em 2021.Nem tão pouco sei se cá estou!

É uma decisão pessoal? É uma decisão partidária?

É sempre uma mistura das duas coisas. Dos projetos que integramos, porque não estamos sozinhos no mundo…

Mas quando se pensa em tentar ir para Belém uma vez, é difícil abandonar depois essa mesma ideia?

Ai, acho como tudo na vida. Sou de ideias fixas em relação a valores e convicções. Mas não sou de ideias fixas em relação aos lugares. Um dos problemas maiores da nossa democracia é que há muitas ideias fixas em relação aos lugares.

E no que diz respeito às europeias?

Não sei ainda. Mas vou ter de pensar, a sério. Não acho que nos devamos eternizar nos cargos, também a decisão é sempre dos cidadãos e também não sei, para mim, ainda qual é o tempo certo ou o período certo para se estar envolvida na política ativa, em cargos de representação. Mas sei que não pode ser a vida toda (sorisos).

Nasceu em Alcouce, zona de Coimbra, e toda essa região sofreu com os incêndios. No que a si ou à sua família diz respeito, houve perdas?

Alcouce, felizmente, não foi atingida pelos incêndios, mas creio que teve que ver com o facto de, há muitos anos, termos tido um incêndio muito grande que atingiu a aldeia. Lembro-me perfeitamente disso.

Que idade tinha?

Tinha quatro ou cinco anos. Eu e os meus irmãos ficámos com a minha avó e os meus pais foram combater o fogo. Foi assustador e consigo imaginar muito bem o que estas pessoas passaram agora

Não sei, na altura, como é que a aldeia não ficou toda queimada. A verdade é que a seguir a isso foi criado à volta da aldeia um cinto de segurança.

O seu pai, como guarda florestal, participou na elaboração desse cinto?

Ajudou bastante, por acaso. Incentivou as pessoas a plantar árvores que são bombeiros naturais e, desde aí, não temos núcleos nem de eucalipto, nem de pinheiro à volta da aldeia. Existe carvalho e outras espécies, existe muita vinha . Foi ele quem começou por dar o exemplo e a substituir, nesses terrenos, a plantação de árvores.

Quando olhamos para o que se passou este ano e tendo em conta este caso, o que pode ser feito em Portugal?

O diagnóstico está feito há tantos, mas tantos anos… O que é preciso é pôr em prática o ordenamento do território que se tem de ter para evitar estarmos sujeitos a estas catástrofes, especialmente trágico este ano.

O que falta, então?

É preciso recursos e vontade política. São os ingredientes que faltam.

Imagem de destaque: Jorge Amaral/Global Imagens