Marisa Valadas: “A minha preocupação quando estou a fazer uma receita é única e exclusivamente uma: o sabor”

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Lisboa, 25/07/2016 - Marisa Valadas, autora do livro de receitas, À Descoberta de Novos Sabores. (Leonardo Negrão/Global Imagens)

Apaixonada por comida. Marisa Valadas, 31 anos, despertou primeiro para os sabores à mesa e depois, já adulta, começou a cozinhar com um robot de cozinha. Diz-nos que sempre teve “a paixão pela comida, mas há alguns anos surgiu uma paixão pela cozinha”. Rapidamente passou das receitas cristalizadas nos livros para a personalização e depois desenvolvendo cada vez mais a sua vertente criativa. Formada em Línguas e Literaturas, otimizou o desemprego com a criação de um blogue, o Sweet My Kitchen, onde publicava o seu trabalho de pesquisa e invenção em torno da comida. As receitas que fez, descreveu e fotografou chegaram à mesa de milhares de pessoas. Porquê? Porque são apetitosas, vêm bem explicadinhas e facilitam a obrigação a quem cozinha. O blogue passou a livro e é justamente esse ‘À descoberta de novos sabores – dos quatro cantos do mundo para a mesa portuguesa’ que nos leva à conversa.

Como é que surgiu o amor pela comida e pela cozinha?

A minha avó preocupava-se sempre muito porque eu gostava de comer mas nunca queria cozinhar. Ela tinha muito medo que eu passasse fome quando fosse viver com o meu marido ou quando fosse viver sozinha… E a minha mãe não se preocupou muito, a minha mãe dizia assim “Deixa estar. Ela gosta de comer por isso ela há de se desenrascar” e foi assim… Quando fui viver com o meu marido havia muitas coisas que ele não comia e eu pensei que tinha de arranjar uma maneira de conseguir tornar os jantares interessantes. Chegava às sete da noite a casa e eu acabava por cozinhar quase sempre as mesmas coisas. Ou era a sopa, ou era uns bifinhos grelhados ou um peixe cozido, ou era uma massa… Andava sempre à volta das mesmas coisas. Entretanto na altura comprei um robô de cozinha e foi aí também um bocadinho que comecei a experimentar. Comecei pelas receitas que estavam no livro do robot, para me habituar, e depois comecei a pegar nas receitas que a minha mãe fazia, nas receitas que eu quando ia aos restaurantes gostava e a adaptá-las para fazer em casa.

O blog Sweet My Kitchen surge como?

A dada altura eu fiquei desempregada e foi o meu marido que teve a ideia, porque eu explicava-lhe sempre como fazia as receitas. Eu achei que não saberia criar um blog. Uma amiga minha ajudou-me e eu comecei por fazer apenas receitas para o robot de cozinha. Depois comecei a querer fazer coisas diferentes e para não me repetir criei as ementas. Fazia uma ementa para o mês todo e mostrava ao meu marido. Era uma maneira de me organizar.

Como é que define que tipo de prato vai fazer?

Há alturas em que me apetece mais comida indiana, eu faço mais comida indiana. Se me apetece comida mais mexicana, eu faço mais comida mexicana. Se me apetece mais comida asiática, eu faço mais comida asiática. Como vou a restaurantes e gosto de experimentar coisas diferentes, em casa decidi seguir a mesma lógica de uma forma prática. Receitas que levassem vinte, trinta minutos no máximo para eu poder pôr em prática a qualquer dia da semana, desde que tivesse as coisas em casa, ou para fazer aquela receita que estava destinada para esse dia, ou outra que tivesse os ingredientes similares e que eu pudesse trocar.

Estas receitas que começa a adaptar do livro do robot são receitas que vai buscar onde? Porque primeiro há as do livro, mas depois começa a criar.

Sim. Por exemplo, às vezes eu ia a um restaurante e provava um risotto de cogumelos e pensava: “Agora como é que eu posso incorporar isto em casa?” Eu via a base do risotto e a partir daí ora usava cogumelos secos, ora cogumelos frescos, consoante os cogumelos que eu quisesse. Para mim os restaurantes acabam por servir também de inspiração, porque às vezes vejo uma receita ou uma combinação de sabores diferentes e depois tento adaptar a outro prato até que eu goste.

Hoje o blog não tem só receitas. Entretanto começou também a fazer uma espécie de crítica gastronómica.

Sim. Foi há cerca de dois anos. Foi na altura apareceu o Zomato e eu comecei logo desde o início a participar via que havia muito feedback. Coincidiu com uma altura em que as pessoas começaram, lentamente, a comer fora novamente depois da crise, começaram a conviver não só em casa mas também fora de casa. Nos textos sobre restaurantes, tento ser o mais construtiva possível, embora às vezes haja uma ou outra má experiência, e isso é normal, mas há imensos sítios giros onde se come bem por Lisboa e sítios que às vezes as pessoas nunca ouviram falar, ou não conhecem, e é interessante dar a conhecer.

Não vai apenas àqueles que estão a ser badalados.

Normalmente eu tento ir aos sítios que não são badalados. Às vezes têm tanta gente que ou não fazem reserva ou é difícil. Esses sítios que estão muito na moda, geralmente deixo passar assim algum tempo, deixo passar aquele frenesim inicial para depois então ir. Talvez para também ter uma opinião mais imparcial porque já tive situações de grande expectativa e depois eu vou lá afinal isto não é assim tão bom… Não é que seja mau, mas às vezes cria-se ali uma expectativa e depois não cumpre.

O que é que considera que é um bom restaurante?

Eu acho que um bom restaurante oferece uma experiência e a experiência é desde o espaço, atendimento e a comida. Há sítios que a comida é muito boa mas depois se o espaço ou o atendimento forem maus, automaticamente vai estragar-nos a refeição. Por outro lado, um sítio giro e que tenha um atendimento muito bom mas a comida é má ou que é mediana nós pensamos que não é assim tão bom.

O que é que vale mais num restaurante? Qual é a parte mais importante da experiência de ir a um restaurante?

Para mim é a comida!

Sem ser num restaurante, o que é que é uma boa refeição?

Eu acho que uma boa refeição é partilharmos com as pessoas que gostamos aquilo que estivemos a cozinhar. Acho que quando cozinhamos para alguém é porque essa pessoa é especial. Acho que comida, o ato de comer, não é só uma necessidade também é uma socialização, também é partilha.

Como é que prepara uma refeição para uma ocasião especial?

Dizem que não se devem apresentar receitas novas e fazer experiências quando temos visitas. Eu faço sempre experiências, sirvo sempre qualquer coisa que as visitas já conhecem, mas depois geralmente sirvo uma coisa nova e às vezes que eu própria nunca fiz. Eu lembro-me que uma das primeiras vezes que os meus sogros foram jantar lá a casa eu nunca tinha feito arroz à sevilhana e fiz uma frigideira enorme que se usa para as paellas e toda a gente adorou!

Cozinhar também é receber? Também é importante essa parte?

É, eu acho que sim. Eu percebo se calhar que durante a semana é difícil, as pessoas e as mulheres hoje em dia trabalham muito e são na maioria das vezes as mulheres que cozinham, mesmo se já há muitos homens interessados na cozinha. É difícil chegar a casa, e se tiverem filhos, gerir filhos e casa e estar a cozinhar para outras pessoas que não a família mas ao fim de semana acho que sim, que é importante. Acho que é importante os amigos, os pais, os avós.

A cozinha está a ganhar importância na vida das pessoas?

Eu acho que sim. Eu acho que ganhou uma importância nos últimos anos por dois motivos: Primeiro por causa da crise, porque as pessoas não podiam estar a gastar dinheiro na hora de trabalho a almoçar fora e tiveram que recorrer a ideias para cozinhar com mais frequência. Por outro lado, o estar mais democratizado a culinária, as pessoas verem que há diferentes tipos de culinária, há diferentes tipos de coisas que podem fazer de encontro aos seus gostos, eu acho que isso também faz com que as pessoas se interessem mais. Acho que hoje em dia têm gosto em receber alguém em casa e mostrar um prato diferente.

O livro que lança agora chama-se “À descoberta de novos sabores”. Como é que surge este livro?

Recebi um e-mail de uma editora a perguntar-me se alguma vez tinha pensado em publicar um livro. Li o e-mail duas ou três vezes para ter a certeza de que estava a ler bem, se estava mesmo a ser dirigido a mim. Fui conhecer a editora e perceber como é que funcionava, se percebiam o meu projeto ou se o queriam transformar aquilo que eu faço numa coisa completamente diferente. A partir daí depois assinamos o contrato.

E o que é que descobriu?

A ideia era no fundo usar aquilo que eu faço de melhor: a culinária não só portuguesa mas também de outros países, o uso das especiarias. A partir daí criou-se um livro com toda uma equipa que existe por trás, que é criativa, que teve a ideia da estrutura, selecionarmos as receitas, revermos tudo, fazermos a capa… Foram cerca de quatro meses.

Depois de cinco anos a fazer receitas todos os dias, como é que se seleciona? Quantas receitas tem o livro?

São cerca de noventa receitas. Depois de fazermos o levantamento de todas as receitas, pediram-me para marcar com três cores as receitas que eu mais gostava, que eu achava imprescindíveis estarem no livro, as receitas que estaria na dúvida e as outras que eu achava que não acrescentaria nada de especial.

Tem alguma preferida?

Tenho várias!

O arroz à sevilhana que resulta sempre com os sogros está no livro?

Não está, curiosamente, mas é só porque também não houve tempo para a fotografar. Gosto muito do Caril do Sri Lanka. Tenho muitas favoritas, depois as receitas asiáticas são quase todas minhas favoritas.

Estes sabores exóticos aparecem-lhe nas viagens que faz? Vai à procura de novos sabores?

Quando viajo gosto de provar o que é a comida típica. Quando estivemos Tunísia, ficámos num hotel de uma cadeia tunisina. Normalmente as pessoas aconselham-nos a ficar numa cadeia europeia, principalmente por causa da comida, e nós quisemos um hotel numa cadeia tunisina e então todos os dias eles tinham vários pratos típicos. Tinham couscous, tinham tajines, tinham chá de menta… É muito interessante.

Este ano, quando fomos a Cabo Verde no hotel havia sempre comida portuguesa, mas também tinham comida de Cabo Verde e fomos a um almoço provar a cachupa, não nos deram a receita mas eu vou descobrir.

É esse o processo de descobrir receitas novas? Olha para o prato, vê o que tem, sente os sabores?

Algumas coisas uma pessoa só de ver percebe que estão lá. No caso da cachupa o milho, estava lá um bocadinho de chouriço, depois eles explicaram que normalmente a cachupa é feita com legumes. Naquele caso era uma cachupa rica porque tínhamos frango e tínhamos um bocadinho de porco que podíamos acrescentar, ou não, à cachupa. E sim, depois há sabores também que nós sentimos por exemplo se há tomate, se há ervas aromáticas… é mais fácil. Na cachupa, que é um prato guloso, sente-se bem o que lá está. Eu acho que ali mesmo o segredo é o milho, tem que ser um milho específico para conseguir fazer uma boa cachupa.

Há muitos chefs que falam da importância da memória na cozinha. As suas memórias de infância são gulosas também? Vem de uma casa onde se cozinhava?

Eu venho de uma casa de onde sempre se cozinhou muito, sempre se gostou muito de comer, se almoços ao fim de semana onde durava a tarde toda. A minha avó sempre foi uma cozinha mais simples, também venho de uma família humilde, eram muitos irmãos e sempre foi uma comida mais simples. A sopa, o peixe, a carne grelhada… A minha mãe foi encarregada de refeitório e hoje em dia é encarregada de uma cozinha central portanto está muito dentro da área da comida e não sendo cozinheira cozinha muito bem, mas mais a comida portuguesa.

Hoje em dia há sempre a problemática da saúde associada à alimentação. Tem preocupações nessa área?

No livro, a minha preocupação quando estou a fazer uma receita é única e exclusivamente uma: o sabor. Eu quero o melhor sabor possível. Eu cozinho com azeite, bolos é com manteiga a sério não é com margarina. Eu uso açúcar, também posso usar mel, mas não vou buscar adoçantes ou outros substitutos do género, isso não. Aliás, o livro tem algumas receitas saudáveis também. Tem uma mousse de abacate, tem um pudim de chia… Eu acho que há lugar para tudo mas o meu principal objetivo quando estou a criar uma receita é realmente o sabor, é que as pessoas provem e digam “quero mais!”, “quero continuar a comer.” Esse é o meu principal objetivo.

Como é que vê esta quase obrigação de ser magra?

Acho que sempre foi um assim. Acho que existe uma tentativa de padronizar tudo: as pessoas, a comida, o cabelo… Há sempre uma tentativa de padronizar qualquer coisa. Eu venho de uma família em que somos todas gordinhas, não há ninguém magro porque nós gostamos de comer. Às vezes penso que gostava de perder alguns quilos, se calhar consigo mas não quero perder muitos porque eu gosto de comer, eu tenho essa noção. Felizmente eu não tenho problemas nem de tensão, nem diabetes, não tenho nada.

 

Na viagem que fez a Cabo Verde, tirou uma fotografia em fato-de-banho e colocou no instagram. Além de ter tido muitos gostos, houve pessoas que a elogiaram pela coragem.

Sim, houve muitas pessoas que me mandaram inclusivamente mensagens privadas a elogiar porque dizem que eu tenho excesso de peso e nem sequer vão à praia.

 

Nunca passou pelo bullying quando era nova por causa do peso?

Na escola eu tinha mais colegas a meterem-se comigo porque eu usava óculos do que propriamente por ser gordinha, mas eu defendia-me muito bem. Era muito engraçado porque eu era gordinha mas os rapazes achavam-me graça. Toda a gente já teve, mesmo até quem é magra, de certeza que já teve uma situação de haver um parvalhão qualquer que faz um comentário parvo na rua.

Quais são os seus projetos para o futuro?

Eu vou manter o blogue, obviamente, e gostava de escrever mais livros claro, e quem sabe escrever para alguma revista sobre comida, restaurantes ou receitas, e por enquanto é só isso.