A Madonna “não é uma aluna, ela é uma líder”

Marlyn Ortiz

Marlyn Ortiz é bailarina profissional, acrobata e coreógrafa. Americana de origem porto-riquenha, é ‘Lady M’ no espetáculo ‘Cabarética’, que a Nova Companhia tem em cena no Teatro do Bairro, em Lisboa, até 25 de fevereiro, às 21h30, de quarta a domingo. A artista protagoniza a última parte deste espetáculo tríptico dedicado ao cabaret, criado por João Telmo e Martim Pedroso, com a participação da atriz Carla Bolito. Em entrevista ao Delas.pt, Marlyn Ortiz explica como foi partilhar o palco e os seus conhecimentos de bailarina de burlesco com a companhia portuguesa. Uma experiência “completamente diferente” da que envolve o seu trabalho com Madonna. Marlyn Ortiz foi bailarina em várias digressões da cantora e é sua treinadora pessoal, embora refira, na conversa, que à rainha da pop há pouco a ensinar. Já às portuguesas tem mostrado como se devem soltar e acreditar nelas próprias. Marlyn Ortiz dá aulas de pole dance burlesco, em Lisboa, e garante que as mulheres “se esforçam demasiado”, quando já têm todos os atributos necessários para serem sensuais. A bailarina confessa que há muita coisa de que gosta na capital portuguesa – das pessoas, à comida, passando pela cena musical -, e quer explorar mais a parte criativa da sua carreira enquanto cá estiver.

Como descreveria a sua personagem, no espetáculo ‘Cabarética’?

A Lady M é uma mulher latina muito impetuosa, enérgica, sensual, sexy e carismática. E ela não quer saber o que pensam os outros, é muito expansiva e gosta de levar as coisas ao próximo nível, mas não de uma maneira ordinária ou desconfortável. Gosta de entreter e brincar com o público, de fazer comédia e criar momentos de riso durante a sua performance.
Que tipo de preparação fez, fisicamente, para esta personagem?

Bem, eu tenho sido bailarina a maior parte da minha vida e sou porto-riquenha, por isso estou preparada desde que nasci. Sou latina, e de certa forma, a minha personalidade acaba por ser muito extrovertida. E o facto de dançar profissionalmente há muitos, muitos anos expôs-me a muita coisa que moldou o meu caráter, a minha confiança, a minha confiança no meu corpo, na minha sexualidade, em ser mulher. E esta personagem tem a ver com o facto de ser-se mulher, uma confiante com o seu corpo e de se expressar de uma forma com a qual algumas pessoas podem não estar confortáveis a fazê-lo, mas que gostam de ver. Portanto, ela resume quem eu sou enquanto performer.

A atriz como ‘Lady M’, no espetáculo ‘Cabarética’, da Nova Companhia (DR)

Atualmente vive aqui, em Lisboa, e dá aulas de pole dance burlesco, que tipo de mulheres frequenta as suas aulas?

Depende do público que tento atingir, porque há a dança profissional, com os saltos altos, [heels dance] que costumava ensinar. Mas agora também alcanço um público que está num nível mais aberto. Ensino heels dance burlesco, mas as minhas aulas não são focadas no aperfeiçoamento técnico, são sobre as mulheres aprenderem a sentir-se confortáveis com a sua pele, a olharem-se ao espelho em lingerie e sentirem-se bem. São mulheres que estão a aprender a mexer-se de uma maneira em que se sentem sexy, bem consigo próprias e isso permite-lhes serem simplesmente mais abertas. As aulas são muito empoderadoras. Eu tento encorajar as mulheres a não se auto julgarem, não interessa o quão magras ou o quão gordas, interessa que se sintam confortáveis com o que estão a fazer e realizadas como mulheres. Espero que elas levem esse sentimento para casa e que andem na rua com a cabeça bem erguida e bem femininas. Muitas mulheres, em todo o mundo, julgam-se a si próprias demasiado. E as aulas são precisamente sobre o contrário, sobre soltarem-se, sobre todas as coisas que elas têm naturalmente, que acham que não são sexy, mas são. As mulheres não se apercebem que não têm de se esforçar tanto para serem sensuais, femininas e confiantes. E é interessante ver essa mudança à medida que aulas passam.

Qual é a particularidade do burlesco?

Bom, o burlesco é a arte de insinuar, da sensualidade e da feminilidade, recorrendo a pequenos detalhes. É como digo nas minhas aulas: ‘vocês têm o suficiente, não precisam de se esforçar tanto, basta serem confiantes’. A confiança é que requer um caminho longo. O burlesco para mim significa a sensualidade que vem da personalidade, não é apenas o velho burlesco cómico. Que também é ótimo, pode-se ser engraçado e sexy.
Como é o burlesco atual, para si?

Continua a haver muitas formas e estilos diferentes, esteve “morto” durante muitos anos e depois ressuscitou. Há diferentes gerações dele, há mulheres que o interpretam de forma mais clássica, e depois há mulheres que o fazem de maneira mais teatral, outras mais próxima da dança. Para mim, e uma vez que sou bailarina profissional, eu incorporo essas técnicas no burlesco. Eu não me limito a ficar ali e a despir-me – Ooh! Eu realmente danço, trago as minhas competências técnicas para a personagem. A Dita Von Teese não dança, mas ela tem figurinos lindos e aquela elegância, tem essa persona e as pessoas adoram. Ela não faz o que eu faço, e eu não faço o que ela faz. Nenhuma é melhor que a outra. Ela é maravilhosa. Mas somos exemplos de interpretações diferentes do burlesco.

E o tipo de dança que pratica – burlesco, acrobática, contemporânea – também dita ou sugere diferentes personagens?

Sim! Se eu estiver a fazer dança de apoio, para um artista, por exemplo, eu faço a coreografia que aprendi. Se estiver a dançar burlesco, ao som de uma música específica vai ser diferente, vou ter uma personagem diferente. Mas o burlesco e a dança profissional são coisas distintas.

O que é que as distingue?

Na dança profissional, aprendem-se os passos, aprendem-se coreografias, seja para um coreografo, para um videoclipe, ou para uma audição em que vou ser contratada para fazer algo específico. Isso é um nível diferente. O burlesco, para mim, é mais pessoal, é uma escolha minha, aquilo que eu quero fazer.


E quando assume o papel de coreógrafa e de professora é mais rígida, concede liberdade aos seus bailarinos ou alunos?

Sou muito aberta, mas também sou muito verbal. Ou seja, tento ser recetiva e honesta e tentar tirar o melhor dos alunos, quando estou a dar aulas. Gosto de lhes dar ideias e imagens com as quais possam trabalhar, para que eles consigam expressar os movimentos. Às vezes as pessoas só precisam de uma palavra para iniciar qualquer coisa, em vez de verem o passo. Isto nas aulas de burlesco.

Hoje, ao mesmo tempo que se fala da liberdade sexual da mulher, que se fala publicamente contra o assédio sexual, também se assiste ao regresso de discursos moralistas contra a nudez feminina…

Quem faz esses discursos moralistas? Eu não os oiço, a não ser que seja ultra católica…

Bom, recentemente a Madonna postou uma imagem no Instagram despida da cintura para cima, com uma cruz desenhada na foto, por cima do peito, e muitas pessoas criticaram-na por fazer isso, por mostrar o corpo, por fazê-lo com esta idade. E vemos esses comentários virem muitas vezes de mulheres. Por que acha que há este paradoxo?

Há vários tipos de pessoas, algumas são super religiosas, outras não. Há pessoas que são reprimidas, há pessoas que são expressivas, artistas… Eu vivo num mundo expressivo. Não conheço o outro. Já o vi, mas não posso falar por ele, porque não o entendo. Compreendo que as pessoas tenham os seus próprios valores, que vivam as suas vidas de acordo com eles. Eu não os obrigo a ver o meu lado e eles não me impingem as ideias deles. Acho que as pessoas devem preocupar-se com as suas vidas. Se puserem comentários [desagradáveis] num post bloqueio-as ou ignoro-as. As pessoas vão ter sempre uma opinião. Eu também tenho uma opinião, mas não a imponho aos outros. Mas vai ser sempre um assunto, uma controvérsia, como sempre tem sido. Nada mudou, na realidade. Talvez usem o #Metoo, ou Time’s Up. Mas [o assédio] sempre foi um problema, talvez agora esteja mais rotulado e mobilize um combate mais coletivo. Mas não se pode controlar o que as pessoas dizem dos posts da Madonna.

As próprias redes sociais chegam a bloquear posts com nudez, ou se aparecem imagens onde se vejam os mamilos das mulheres…

Bom… Em Nova Iorque, o topless é legal. Há mulheres que o fazem, e mulheres que não o fazem. Como mulheres, temos a liberdade e só temos de escolher como a queremos expressar. E não há nada de errado com isso. Agora querer impor a sua opinião aos outros, acho que é ridículo.

A bailarina americana vive atualmente em Lisboa, onde além do espetáculo ‘Cabarética’, dá aulas de pole dance burlesco. É personal trainer de Madonna (PAULO SPRANGER/Global Imagens)

 

Alguma vez teve a necessidade de estabelecer limites claros no seu trabalho, sobretudo sendo uma atividade que envolve o corpo e a expressão física, para prevenir ou proteger-se de assédio ou outros abusos?

Fui assediada sexualmente a minha vida inteira. Sou mulher. Andava no liceu, passava no Central Park e tinha fulanos a masturbarem-se ao pé de mim, por exemplo. Estes eram malucos. Quando eles faziam isso, atirava-lhes água e eles fugiam. Isto são coisas que experienciamos e que não estão certas, mas que vamos aprendendo a contornar e a evitar, a estar mais atentas. São coisas que acontecem todos os dias. Dependendo da personalidade, e se não se trabalhar isso, elas podem afetar a mulher, torná-la mais inacessível porque ela teve de construir uma personalidade defensiva devido a situações dessas. E isso é tramado, porque essa mulher só se está a tentar proteger. No meu caso tive de criar uma defesa, é a única maneira de sobreviver. As coisas passam ao lado e não deixo que me afetem.

Na sua vida, ou especificamente no seu trabalho?

Na minha vida, mas no mundo da dança também. Só que o mundo da dança é um pouco diferente, depende da área da dança em que se atua. A minha área é muito aberta, é uma comunidade muito acolhedora. Nunca me senti assediada sexualmente ou ameaçada pelas pessoas com quem trabalho. Se me tentaram seduzir, se tentaram ir para a cama comigo? Sim. Agora se eu estou disposta a aceitar isso? Eu faço essa escolha. Se o outro me desrespeitar, se me abordar de uma maneira que não gosto – e se eu nunca manifestei essa intenção – isso é diferente. Aí ponho um travão, e digo, ‘não, isso não está certo’. Os homens têm de ser ensinados de que alguns comportamentos que têm não são corretos e, para ser honesta, em alguns casos a culpa é das mães, que os educam e os desculpam porque são rapazes, como se fossem santos.

Voltando ao espetáculo ‘Cabarética’, como decorreu esta experiência conjunta?

Eu não estive envolvida em grande parte do espetáculo, fui mais uma extensão da história que já estava criada por eles. Mas acho que tudo se uniu de forma coesa. É como se eu fosse uma versão ao vivo da história dos anos de 1920, que eles contam. E eu ajudei-os a dançar como uma mulher, de saltos altos, no Bas Fond [risos].

E como foi a parte intercultural desta experiência?

Foi divertida. Não é algo que me seja estranho. É um artista é sempre um artista, independentemente do país onde está. É como se falássemos a mesma língua. Tem a ver com criar, ter ideias, desenvolver conceitos e pô-los em prática. A língua pode ser diferente, mas é sempre o artista a tentar expressar-se através de uma performance.

Treinar um artista, como a Madonna, de quem é personal trainer e em cujas digressões já participou como bailarina, é também a mesma linguagem ou é completamente diferente?

É diferente. A Madonna tem a sua própria maneira de se preparar. É completamente diferente.

Mais exigente?

Sim, claro. É como quando um bailarino se prepara para fazer a temporada da Companhia de Ballet de Nova Iorque e ensaia várias horas por dia com os colegas. É um processo longo, intensivo. Todos os detalhes são importantes, todos têm de ser ensaiados ao pormenor. É muito específico.

Madonna parece ser uma “aluna” muito focada.

Sim, é muito focada, mas ela não é uma aluna, ela é uma líder. Tem feito isso a vida toda.

Como é a rotina da Marlyn aqui em Lisboa? Tenciona ficar mais algum tempo por aqui, fazer mais espetáculos deste género?

Sim! Gostava de me envolver mais nesta parte criativa, fazer perfomances. Gostava de fazer aqui o espetáculo de cabaret que faço em Nova Iorque. Para já, quero fazer uma data aqui e ver como corre. Acho que Lisboa é uma cidade criativa e divertida. Como artista, faz-me sentir com vontade de fazer coisas, inspira-me e dá-me oportunidades. Não é que não as tivesse em Nova Iorque, mas é uma cidade nova e isso é excitante. São novas pessoas, novas aventuras, novas personalidades.

O que é que gosta mais na cidade?

Gosto de muitas coisas. Fiz muito bons amigos, gosto da comida, há uma cena musical, jazz, muito interessante. Depois há as praias, apesar de a água ser muito fria. Mas posso esperar pelo verão! E o inverno nem é bem inverno. Há muitas coisas de que gosto aqui.

 

 

Fotografias: Paulo Spranger/Global Imagens