Leia a pré-publicação exclusiva do livro ‘Carta à Minha Filha’ de Maya Angelou

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No próximo dia 29 de janeiro chega às livrarias nacionais o livro “Carta à Minha Filha, da escritora, poeta, cantora e ativista dos direitos humanos Maya Angelou (1928-2014).

Editado pela Lua de Papel, este livro reúne 28 textos, que são parte de uma série de mensagens, ensaios e poemas enviados, ao longo de décadas, pela artista e ativista norte-americana a Oprah Winfrey, a sua “filha”. Nesses textos, Maya Angelou, fala de si, da sua infância e adolescência, quando teve o seu primeiro e único filho, das suas raízes, das suas viagens e relação com o mundo, do racismo, do medo, do amor e, claro, do papel da mulher.

Em parceria com a Lua de Papel, o Delas.pt pré-publica, em exclusivo, um capítulo do livro. Um excerto inspirador, escrito a partir de uma das viagens que a ativista realizou.

 

Marrocos

“Embora estivéssemos no século XX, eu continuava a ter a visão
fantasiosa da Arábia do século XIX, com califas, eunucos musculados
e assexuados e haréns com belas mulheres deitadas em
chaises-longues a verem-se em espelhos dourados.
Na primeira manhã que passei em Marrocos, fui passear
para absorver um pouco mais de romance com que preencher
as minhas fantasias.
Via mulheres na rua com roupas ocidentais, mas outras
mantinham o recato por detrás de pesados véus negros. Os
homens pareciam todos bonitos e bem-dispostos com os seus
barretes árabes. A certa altura, aproximei-me de uma espécie
de lixeira e resolvi atravessar a rua antes de ser obrigada
a ver a vida como era na realidade. Ouvi um grito e voltei-
-me. Havia três tendas no pátio, e estavam uns quantos negros
a acenar para mim. Percebi pela primeira vez que os marroquinos
que tinha visto até àquele momento e que esperava
continuar a ver eram parecidos com espanhóis ou mexicanos
e não com africanos.
Os homens estavam a gritar e a fazer-me sinais. Vi que
eram todos muito velhos. Pela forma como fora educada, não
podia ignorá-los, mas apercebi-me nesse momento de que
estava com uma saia curta e uns sapatos de salto alto, indicados
para uma americana de vinte e cinco anos, mas completamente
inaceitáveis para uma mulher acompanhada por africanos
de idade.
Avancei sobre latas, garrafas partidas, restos de mobílias.
Quando cheguei ao pé dos homens, eles sentaram-se repentinamente.
Não havia bancos para todos e, por isso, não estavam
propriamente sentados, mas apenas de cócoras. Na boa tradição
sulista, a minha avó tinha-me ensinado que era falta de educação
um jovem ficar de pé ou sentado numa posição mais elevada
do que as pessoas de idade.
Quando os homens se puseram de cócoras, eu fiz o mesmo.
Estava habituada a dançar, e o meu corpo obedecia às minhas
ordens.
Eles sorriram e começaram a falar comigo numa língua que
eu não entendia. Respondi em inglês, em francês e em espanhol,
mas eles não entendiam. Sorrimos uns para os outros, e
um homem disse qualquer coisa em voz alta para um grupo de
mulheres que estava por perto, a observar-me com todo o interesse.
Sorri para as mulheres, e elas retribuíram o meu sorriso.
Apesar dos meus músculos jovens e treinados, já não estava a
ser muito confortável para mim continuar de cócoras.
Quando me preparava para me levantar e fazer-lhes uma
vénia, apareceu ao pé de mim uma mulher com uma chávena
de café minúscula na mão. Ofereceu-ma. No momento em que
peguei nela, reparei em duas coisas: que havia bichos no chão
e que o facto de os homens estarem a estalar os dedos significava
que eu tinha sido «aprovada». Fiz uma vénia, bebi um golo
de café e quase desmaiei. Tinha uma barata na língua. Olhei
para os rostos das pessoas à minha volta e não tive coragem
para cuspir. Se o fizesse, a minha avó ter-se-ia levantado da
sepultura e aparecido à minha frente para me mostrar quão
abjecto tinha sido o meu gesto e quão desiludida ela estava.
Não conseguia suportar essa ideia. Fiz força com a garganta e
esvaziei a chávena. Contei quatro baratas.
Levantei-me, despedi-me de todos com uma vénia e saí
do pátio. Aguentei a má disposição até me afastar deles e depois
encostei-me à primeira parede que encontrei e dei largas à
minha vontade de vomitar. Nunca contei esta história a ninguém.
Fiquei doente durante um mês.
Quando fomos actuar a Marselha, ficámos numa pensão
barata. Uma manhã, peguei numa edição antiga do Reader’s
Digest e comecei a ler um artigo intitulado «Tribos Africanas
em Viagem do Sahel para o Norte de África».
Segundo o artigo, muitas tribos que seguiam as rotas antigas
do Mali, Chade, Nigéria e outros países africanos através
do Sara em direcção a Meca, à Argélia, a Marrocos ou ao Sudão,
traziam consigo muito pouco dinheiro e viviam segundo uma
economia de troca. Trocavam bens por outros bens e utilizavam
o pouco dinheiro que tinham para comprar passas. Para
mostrarem o seu respeito pelos visitantes, punham três a cinco
passas numa pequena chávena de café.
Por instantes, tive vontade de me pôr de cócoras à frente
dos velhos marroquinos e implorar-lhes que me perdoassem.
Afinal, tinham querido honrar-me com aquelas passas tão
caras.
Agradeci a Deus porque sabia que a minha avó teria ficado
satisfeita com a forma como tinha agido.
Fiz disto uma lição para toda a vida. Se os outros seres
humanos estiverem a comer uma coisa e eu não me sentir tão
violentamente repugnada ao ponto de não conseguir falar, e se
o que estiverem a comer parecer razoavelmente limpo, e se não
for alérgica ao que estão a oferecer-me, sento-me à mesa com
todo o gosto que conseguir arranjar e junto-me ao festim.
P.S. Digo que é uma lição para toda a vida porque ainda
continuo a aprendê-la e sou testada muitas vezes. Embora não
seja mais esquisita do que as outras pessoas, por vezes chumbo
redonda e miseravelmente nesses testes. Mas são mais as vezes
em que passo. Basta pensar na minha avó e naquelas quatro
inocentes passas, que me puseram terrivelmente doente durante
um mês.”