Melinda Gates: “Quando não há mulheres na mesa das decisões, os problemas perpetuam-se”

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Melinda Gates, co-founder of Bill & Melinda Gates Foundation, gives a speech during the opening plenary of the Global Maternal Newborn Health Conference in Mexico City, Mexico October 19, 2015. REUTERS/Henry Romero - GF10000251228

No festival South by Southwest, que decorre até 18 de março em Austin, EUA, Melinda Gates falou sobre a cultura abrasiva que encontrou na Microsoft e o velho clube dos rapazes que o movimento Time’s Up quer desmontar

Há uma série de homens à espera que isto acabe. Isto nunca vai acabar.” A mensagem da ativista Nina Shaw, cofundadora do movimento Time’s Up, arrancou uma das reações mais entusiasmadas da audiência que esgotou a sala para ver a keynote liderada por Melinda Gates. A empresária e filantropa casada com Bill Gates também levou para a sua apresentação no festival South by Southwest, em Austin, mais duas mulheres inspiradoras: a primeira mulher nomeada para o cargo de diretora de conteúdos da revista Hearst, Joanna Coles, e a CEO da TaskRabbit, Stacy Brown-Philpot.

muitos homens dizerem que estão com medo de ficarem sozinhos com mulheres em cenários profissionais

A ideia subjacente a toda a discussão foi clara: este génio saiu da lâmpada e não volta lá para dentro. Um dos tópicos mais importantes foi o facto de muitos homens dizerem que estão com medo de ficarem sozinhos com mulheres em cenários profissionais e já não sabem como falar com elas. “Toda a gente sabe como se comportar com pessoas diferentes”, contra-argumentou Nina Shaw, dizendo que ninguém fala com a avó da mesma forma que fala com um colega de trabalho ou um amigo. “Dizerem que agora não sabem como falar com uma mulher é uma desculpa para não mudarem nada.” O conselho dela arrancou aplausos: se não querem ir para casa e dizer isso à vossa mãe, não o digam à mulher que trabalha convosco no escritório.

Joanna Coles centrou parte da discussão no tremendo escândalo que foi a diferença de pagamento a Mark Wahlberg e a Michelle Williams pela repetição das gravações do filme All the Money in the World. Ele recebeu 1,5 milhões de dólares, ela 80.

Há sempre uma diferença de pagamento entre homens e mulheres, mas isto foi inacreditável”, referiu, sublinhando que os homens têm 72% do diálogo em Hollywood.

Tal disparidade de pagamento acontece, explicou Nina Shaw, porque a maioria dos filmes é liderada por protagonistas masculinos. “Os homens recebem mais porque constantemente estão em histórias lideradas por homens. E isso acontece porque quem escolhe as histórias são outros homens.”

O pior é que Wahlberg e Williams tinham a mesma representação, e ainda assim esta diferença abismal de pagamento aconteceu. Mas o escândalo teve um efeito positivo: por causa disto, Wahlberg doou os 1,5 milhões de dólares ao fundo legal do Time’s Up e há mulheres a conseguirem compensações mais elevadas em Hollywood em resposta à polémica.

Joanna Coles frisou que é difícil que certas pessoas desistam do enorme poder que têm, e que sim, haverá perdedores com esta mudança de paradigmas. Nina Shaw foi mais longe: “Quando se beneficia de um privilégio, a pessoa pode não estar consciente disso. Talvez você não fosse a pessoa mais indicada para o seu emprego, e admitir isso é difícil”, estabeleceu. “Talvez você não tenha chegado onde chegou com base apenas no seu talento.”

Melinda Gates sabe disso em primeira mão. Com uma licenciatura em ciências da computação na mão, entrou na Microsoft em 1987, quando esta era ainda uma pequena tecnológica a tentar vencer no mercado. Estava habituada a ser a única mulher na sala, mas o que encontrou na empresa foi um ambiente de masculinidade tóxica. “Muitos dos meus colegas eram abrasivos e combativos”, revelou. “Eu não me encaixava nesta cultura e demorei algum tempo a perceber que estava a forçar-me a ser como eles.” Melinda aguentou nove anos na Microsoft e acabou por casar com o chefe, Bill Gates. Percebeu que talvez ela não fosse o problema; o problema era o molde.
“Estas coisas repetem-se geração atrás de geração”, afirmou, analisando o que está a acontecer agora. Trinta anos depois, Melinda Gates sublinha que há muito mais mulheres na força de trabalho e que os velhos padrões estão a desvanecer-se, mas a entrada das mulheres no mercado de trabalho não significou uma mudança de cultura. “O ambiente de trabalho não mudou assim tanto, e as mulheres continuam a carregar o fardo mais pesado do trabalho não pago que fazem em casa.”

“As mulheres muitas vezes não querem negociar para obter o salário mais elevado que conseguem obter.”

Stacy Brown-Philpot trabalha ativamente para impedir que esse ambiente infeste a Taskrabbit, uma plataforma em que as pessoas podem ir contratar ou oferecer serviços, tais como montar um móvel do Ikea. A empresária afro-americana veio da Google, onde havia (e ainda há) um problema de diversidade, em especial nas chefias, que são dominadas por homens brancos. “Estamos em plena quarta revolução industrial e como mulheres precisamos de fazer parte dela”, disse na keynote. Um dos problemas que tenta resolver na forma como lidera a empresa é a questão dos pagamentos. “As mulheres muitas vezes não querem negociar para obter o salário mais elevado que conseguem obter.”

O clube dos rapazes

Melinda Gates fundou a firma Pivotal Ventures para tentar mudar a cultura ultra-masculina que domina Silicon Valley e que coloca tremendas barreiras às mulheres que querem vingar no mercado.

“Procuro investidores que investem desproporcionalmente mais em mulheres e minorias”, explicou, dando números assustadores: as startups lideradas por mulheres recebem apenas 2% do capital de risco disponível. “Eles investem no que conhecem, e fazem parte do velho clube dos rapazes”, disse. “Não veem os mercados que uma mulher vislumbra. Alguém que cresceu numa comunidade diversa também poderá ver coisas que estes homens brancos não veem.” Uma das coisas que Melinda implementou no seu processo de recrutamento é a anonimização dos nomes dos candidatos, para que o género não influencie a escolha. A executiva admite que toda a gente tem preconceitos, mesmos que inconscientes, e é preciso tomar ações concretas para os minimizar. A chave para mudar o ambiente de Silicon Valley, disse, é começar a ter mais mulheres sentadas nos conselhos de administração.

“Quando não há mulheres na mesa das decisões, os problemas perpetuam-se.” São todos homens, são todos brancos, e ninguém os repreende por comportamentos que não são aceitáveis. “Torna-se uma cultura do homem branco que parece normalizada e ok, mas não o deve ser.”

Melinda Gates sabe que “há muitos homens aterrorizados” com este movimento, mas expressou o seu otimismo pelo futuro. Tanto o movimento Me Too como o Time’s Up estão a forçar uma discussão alargada sobre as dinâmicas de poder que bloqueiam o caminho às mulheres numa variedade de setores. E tal como referiu Nina Shaw, ao contrário do que muitos homens desejam, estes movimentos não estão a perder força nem vão desaparecer com a poeira dos dias.

Ana Rita Guerra, em Austin

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