#MeToo na capa da Time: o jornalismo a dar voz a metade do mundo

Nancy Gibbs deixou no final do verão a direção da Time, a revista que hoje deu a capa e o título de personalidade do ano às vítimas de assédio sexual que o assumiram publicamente sob a hastag #MeToo. Hoje a revista é liderada por Edward Felsenthal. Foram quatro anos de Gibbs como diretora e 32 anos de jornalismo ao serviço de uma das revistas mais influentes do mundo. Gibbs foi, como diretora, a responsável pela passagem para o digital e pelo enorme sucesso que a marca de informação alcançou na internet: “Começámos com 25 milhões de audiência e hoje estamos nos 60 milhões” escrevia a 13 de setembro na nota com que informava a equipa da Time que deixava o cargo que ocupara desde 2013. Gibbs tinha sido a primeira mulher a dirigir a Time.

Ao ver a escolha da personalidade do ano de 2017, não consigo parar de pensar na influência que Gibbs ainda tem na Time, na forma como o seu pensamento ainda abre caminho para que dentro da redação se escrevam reportagens sobre factos e pessoas que há pouco tempo não contavam. A personalidade do ano de 2014 tinham sido os combatentes do Ébola, a de 2017 são vítimas de assédio. As vítimas. As mulheres. As mulheres vítimas de assédio.

Talvez eu esteja ainda demasiado entusiasmada ainda com o discurso que Kara Swisher, editora executiva do Recode, fez no Web Summit em novembro. No palco central, perante uma plateia quase cheia, ela explicou como ser mulher na direção de um jornal abre uma porta bem larga para a cobertura de acontecimentos que antes não cabiam nos órgãos de comunicação social generalistas. Afirmou que a culpa de temas como o assédio não terem tido antes uma cobertura séria era nossa, dos jornalistas, e que a chegada das mulheres aos cargos de decisão da imprensa nos permitia, aos jornalistas, vermos como relevantes aspetos que antes pareciam minoritários. Até porque, e cito, “a maioria dos homens bons não sabe que o assédio existe.” As mulheres que o sofrem calaram-se demasiadas vezes e a falta de empatia dos diretores dos grandes jornais fez o resto.

Calaram-se mesmo? Ashley Judd diz que não, que denunciou o seu episódio com Harvey Weinstein desde o primeiro momento, em 1997. Quem é que deu importância à acusação de, na altura, uma rapariga praticamente desconhecida ter sido chamada para uma entrevista num quarto de hotel? Só em outubro de 2017, quando Judd contou ao New York Times o caso é que o mundo a ouviu. Porque é que o mundo ouviu? Porque era um jornal de referência, sério, generalista a dar voz a esta denúncia, através de uma investigação que cruzava dados e declarações para fazer um retrato o mais aproximado possível da verdade do assédio de Weinstein. Quem é que conduziu a investigação? Megan Towhey e Jodi Kantor duas jornalistas premiadas, duas mulheres.

No mesmo mês de outubro, a jornalista Ronan Farrow publicou uma grande reportagem baseada nos testemunhos das vítimas de Weinstein na revista New Yorker, com relatos bastante gráficos e a descrição de como foi possível ao ex-produtor viver durante anos em total impunidade: com acordos extra-judiciais que garantiam o silêncio das vítimas a troco de dinheiro. Uma das mulheres entrevistadas relata a forma como tinha sido aconselhada pelo seu advogado a aceitar o acordo. “Assinar era a melhor coisa que podia fazer por ela e pela sua família.”

Na frase, ‘o silêncio é melhor para si e para a sua família’ há uma ameaça velada. A ameaça da investigação sobre a conduta da vítima, a possibilidade dessa conduta vir a envergonhar os seus pais, a incontornável marca que um caso destes tornado público deixaria para sempre nesta mulher, as acusações típicas de como ela se teria posto a jeito, a provável impossibilidade de encontrar um trabalho depois disto… E note-se que é o advogado da vítima que lhe diz que é melhor assinar o acordo, porque sabe que estas são consequências realistas caso ela se recuse a assinar.

É isto que muda com estas reportagens, com estas capas, com esta personalidade do ano: de hoje em diante há mais possibilidades para as mulheres saírem do lugar silencioso das vítimas de assédio. Há a quem recorrer, a quem se queixarem, onde denunciar. Há em quem confiar. Porque há uma perceção coletiva que recrimina comportamentos sexuais abusivos, uma linha bastante clara sobre o que é e não é aceitável.

O homem que dirige agora a Time, Edward Felsenthal, diz que esta é a maior mudança a que assistimos desde há anos. Segundo disse esta quarta-feira ao programa de televisão Today o movimento #MeToo representa “a mudança social mais rápida que vimos em anos, e que começou com atos individuais de coragem de mulheres e alguns homens.”

Esperemos que chegue rapidamente ao lado de cá do Atlântico.