E se na composição de uma contraceção de emergência estiver a solução para tratar miomas uterinos e evitar a remoção do útero? O tratamento com comprimidos de acetato de ulipristal – substância que, numa maior dose, funciona como pílula do dia seguinte – tem sido apontado nos últimos anos, por vários especialistas, como método eficaz e menos invasivo para tratar os miomas, tumores benignos que causam dores abdominais e hemorragias, e evitar a realização de histerectomias (cirurgias para remoção do útero).
Agora, um estudo internacional que envolveu 1473 mulheres com miomas uterinos, de 10 países europeus (Alemanha, Áustria, Eslovénia, França, Hungria, Polónia, Portugal, Reino Unido, Roménia e Suécia), vem comprovar a relação entre o uso desse medicamento e a redução do recurso à cirurgia.
Apresentada na 188ª Reunião da Sociedade Portuguesa de Ginecologia (SPG), realizada na Figueira da Foz, a 10 e 11 de março, a investigação revela que o uso desse medicamento – comercializado, em Portugal, apenas pela Gedeon Richter Plc., com o nome Esmya – impediu que 61% dessas mulheres tivesse de se submeter a qualquer intervenção.
“Este estudo comprova que o novo tratamento de acetato de ulipristal pode permitir uma terapêutica conservadora e evitar a remoção do útero. Esta mudança no tratamento dos miomas uterinos representa uma evolução importante em termos médicos com um impacto positivo na vida da mulher”, defende Margarida Martinho, presidente da Secção Portuguesa de Endoscopia Ginecológica da Sociedade Portuguesa de Ginecologia.
Para a especialista, há também vantagens económicas nesta abordagem terapêutica, “em termos de gastos para o Serviço Nacional de Saúde, na medida em que se evitam os custos diretos com as cirurgias, assim como os custos indiretos atribuíveis ao período de recuperação pós-operatória”.
Como funciona o tratamento?
Em Portugal, estima-se que os miomas uterinos afetem cerca de dois milhões de mulheres.
Daniel Pereira da Silva, Presidente da Federação das Sociedades de Obstetrícia e Ginecologia explica ao Delas.pt que o acetato de ulipristal modela, de forma seletiva, a ação da progesterona, “em todos os tecidos alvo desta hormona muito importante para a mulher, que regula o seu ciclo menstrual”.
O que faz a substância, que tem uma função contracetiva, atuar de forma diferente nos miomas uterinos é a dosagem, explica o especialista, que é também ginecologista no Instituto Médico de Coimbra.
“O que distingue a função da componente é a dosagem associada. Com indicação para contraceção de emergência, recomenda-se a dose de 30 mg que tem um efeito no hipotálamo de modo a impedir a libertação da hormona luteinizante, o que impede a ovulação. Na dose de 5 mg não tem esse efeito imediato, mas atua no endométrio e nas fibras musculares dos miomas.”
No endométrio – a membrana mucosa que reveste a parede uterina – o acetato de ulipristal impede a ocorrência de hemorragias frequentemente associadas aos miomas uterinos, “com uma eficácia considerável que ronda os 90% dos casos, o que é muito importante atendendo que esse tipo de sintoma é o mais incapacitante para a mulher, sendo causa frequente de anemia e histerectomias”, refere Daniel Pereira da Silva.
Por outro lado, ao atuar nas fibras musculares dos miomas, ricas em recetores da progesterona, o medicamento contribuiu para a redução do seu volume.
Medicamento é usado em 27 hospitais nacionais
Segundo o Presidente da Federação das Sociedades de Obstetrícia e Ginecologia, são 27 os hospitais que disponibilizam o medicamento e raros os que, perante casos moderados a severos, não o recomendam.
Mas admite que naqueles em que isso não acontece as mulheres “ficam prejudicadas e os próprios hospitais também não beneficiam com isso”.
“Embora possam ter a perceção que poupam com o custo do medicamento, tal não é correto. O medicamento está incluído no grupo dos anti-neoplásicos e como tal é 100% reembolsável para o hospital. No caso de não disponibilizarem este tratamento, os hospitais têm de resolver igualmente o problema das mulheres com miomas sintomáticos, hemorragias, anemias e dores abdominais, o que leva a um aumento das transfusões de sangue e outros tratamentos para tratar os miomas”.
Os miomas uterinos são a principal causa de histerectomias no país e os tumores benignos mais comuns do trato genital feminino, afetando entre 30% a 70% da população feminina, no geral, e entre 20% a 40% das mulheres em idade reprodutiva.
A Sociedade Portuguesa de Ginecologia defende a comparticipação total deste medicamento, como acontece com alguns países, onde é de 100%, ainda que não de forma generalizada, “mas para as situações graves, de forma a permitir que as mulheres que dele realmente necessitam tenham acesso uniforme ao medicamento sem as assimetrias e os constrangimentos que agora se verificam”.
Cuidados a ter
Apesar de as conclusões do estudo apresentado na Reunião da Sociedade Portuguesa de Ginecologia favorecerem o recurso ao acetato de ulipristal, há cautelas que devem ser tomadas no uso do medicamento. Em 2015, Carlos Calhaz Jorge, diretor do serviço de Ginecologia do Hospital de Santa Maria, dizia ao jornal ‘Expresso’, que falta esclarecer o que acontece às mulheres que o utilizem por períodos mais prolongados. Para Daniel Pereira da Silva, o alerta feito nessa altura continua a ser válido e pertinente, mas refere que neste momento já existem “resultados de estudos a oito anos, que atestam a eficácia e segurança do medicamento”, recomendando a vigilância na sua aplicação.
“No tratamento dos miomas, o acetato de ulipristal é recomendado na dose de 5 mg diários, dado sem pausas por períodos de 90 dias, a que se seguem duas menstruações, podendo novo ciclo de tratamento de 90 dias ser administrado no primeiro dia da segunda menstruação e assim sucessivamente. Com este esquema o medicamente é muito bem tolerado e a sua segurança está assegurada”, explica.
Depois é preciso estar atento aos efeitos a nível uterino, vigiando o “controlo das hemorragias, redução do volume dos miomas e espessamento do endométrio (camada mais interna do útero)”.
O especialista recomenda ainda especial atenção no tratamento aplicado a mulheres que estejam a entrar na menopausa, “porque nessas idades podem aparecer tumores no endométrio que requerem cuidados particulares”.