Miriam Cardoso é a primeira e, ainda, a única mulher na Banda da GNR

O gosto pela música começou numa filarmónica, em Caneças, nos arredores de Lisboa. Foi com o Ti Augusto Claro – como Miriam Cardoso se refere carinhosamente ao seu primeiro mestre da música -, em 1996, que a vida desta mulher começaria a mudar.

Das primeiras aulas de solfejo, aos 11 anos, e dos primeiros sons extraídos de uma flauta, não foram precisos muitos mais para que Miriam Cardoso ingressasse, aos 24, na Banda Sinfónica da Guarda Nacional Republicana (GNR).

Há nove anos, fez provas musicais, mas também físicas, psicológicas e médicas e, uma vez superadas, ingressou na formação musical onde sempre quis estar, passando a envergar o fato com o qual sempre sonhou: o azul.

Nessa altura, conta em entrevista exclusiva ao Delas.pt, tornou-se na primeira mulher a integrar a banda sinfónica da GNR. É cabo honorífico músico [uma designação que não tem feminino] e exerce funções de flautista.

Hoje, quase uma década depois, Miriam Cardoso, de 33 anos, continua a ser a única música nesta banda sinfónica com quase dois séculos de existência e mandada criar pela rainha D. Maria II, a 4 de janeiro de 1838. Espera, contudo, que cheguem mais mulheres músicas em breve. Afinal, vêm aí oportunidades.

Um percurso que começou numa das centenas de escolas ‘amadoras’ onde só se aprendia música: as filarmónicas. Já que nas outras, mais das vezes, era raro encontrá-la.

Como é ser a primeira e única mulher na Banda Sinfónica da GNR, com quase 200 anos de história?

Sou a primeira mulher na Banda Sinfónica e sou a única há quase dez anos. Neste momento, está a decorrer outro concurso e pode ser que entrem mais mulheres (sorriso). Mas a seguir ao meu houve vários, mas nunca nenhuma entrou. Em Portugal, a Banda da GNR foi a última a admitir uma primeira mulher na sua formação e eu fui a primeira contratada para os quadros permanentes.

Miriam Cardoso [Fotografia: Facebook]

Porque é que tal acontece, porque é que elas não conseguem chegar?

São feitas várias provas: musical, cultural, física, psicotécnica e médica. Tem de haver uma longa preparação física, mental. Há uma recruta. É preciso cumprir todo um percurso para obter um resultado final que permita ficar com o lugar.

Como é trabalhar neste grupo de homens que compõe a Banda Sinfónica da GNR?

Sempre fui muito bem tratada, com respeito e consideração e até com um bocadinho de proteção e orgulho por parte dos meus colegas músicos. Sou o primeiro elemento feminino da Banda, na qual entrei com 24 anos, e sinto que eles sempre tiveram alguma vaidade por eu estar no grupo. Algo como: ‘Ela é a nossa menina!’ (sorrisos) Curiosamente, no último concerto de Ano Novo – que a Banda faz por altura do seu aniversário – o presidente da República [Marcelo Rebelo de Sousa] quis, no final e como é seu apanágio, cumprimentar todos os elementos de banda. Seguiu-se-lhe a ministra da Administração Interna [Constança Urbano de Sousa] e o seu séquito e ela disse: “É a única senhora, tratem-na bem!”. Os meus colegas responderam: “Senhora ministra, ela aqui é muito bem tratada.” E sinto isso mesmo! (Sorrisos)

Mas sente que houve alterações comportamentos na banda com a sua chegada?

Não conhecia a banda, o seu funcionamento interno antes, mas o que posso dizer, enquanto elemento, é que tudo sempre correu bem. Mas tudo também começa com a postura com a qual uma pessoa se apresenta. No que diz respeito a questões logísticas, sempre que há deslocações da Banda, são sempre asseguradas e acauteladas as condições para que eu me possa fardar. Sempre houve esse cuidado, apesar de ser um único elemento feminino.

Como surgiu o interesse em ir para a Banda da GNR?

Sempre tive esse sonho porque convivi de perto com a Força Aérea. Mas sempre quis ir para a da GNR porque a Banda carrega consigo a herança do título de melhor banda militar, e isso fez com que eu almejasse integrar esta formação. Sempre tive o fascínio pelo meio militar e sabia que me ia inserir bem neste ambiente. Juntaram-se dois ingredientes primordiais para alcançar este lugar e, depois, consegui o lugar com muita dedicação e trabalho. Fui movida por aquilo que chamamos de “a magia do fato azul”: o peso da farda transparece na música e faz superar muitas dificuldades do nosso dia-a-dia.

Miriam Cardoso [Fotografia: Facebook]

O que é que as bandas filarmónicas aprenderam das militares e vice-versa?

Muitos dos músicos das bandas militares vêm de filarmónicas e muitos ainda fazem parte dos dois grupos. Eu, por exemplo, tenho o meu passado neste tipo de formação. Uma filarmónica é um grupo amador, as diferenças são grandes. Já a banda da GNR – criada por D. Maria II a 4 de janeiro de 1838, por decreto – foi o conservatório de muitas gerações anteriores. A Banda da Guarda Nacional Republicana sempre se pautou por excelentes músicos, com provas dadas. Membros galardoados em instrumentos, em concursos de composição e direção, premiados em diversos campos da música. A Banda da GNR funcionou como percetora.

E ainda é assim?

Hoje, a Banda requer capacidade técnica e nível superior. Se anteriormente era escola de formação, hoje já exige que os membros que se candidatam estejam completamente formados.

Como chegou à banda sinfónica da GNR?

Fiz o curso completo de Conservatório Nacional e quando concorri à banda sinfónica da GNR, em 2008, estava na Escola Superior de Música de Lisboa, curso que terminei em 2010. Fiz depois Mestrado em Évora.

Como e quando começou na música?

Comecei na música em 1996, na banda da Sociedade Musical e Desportiva de Caneças. Tinha 11 anos. Comecei com as aulas de Solfejo com o Ti Augusto Claro, como carinhosamente o tratávamos, e depois aprendi flauta transversal com o ainda maestro Carlos Gomes.

Na galeria acima, veja os instrumentos musicais que as mulheres mais tocam nas filarmónicas

E durante quanto tempo permaneceu na banda?

Estive dez anos. Saí em 2006 porque já estava na preparação para a GNR. Saí sobretudo porque estava a estudar na faculdade, a tempo inteiro, em Lisboa, e a indisponibilidade de tempo foi a principal razão.

Havia muitas raparigas na filarmónica de Caneças?

Havia um núcleo feminino composto por colegas da escola de uma vila pequena, mas já éramos um grupo satisfatório.


Recorde o testemunho de Lina Moreira, uma das primeiras mulheres em Portugal a integrar uma banda filarmónica no papel de executante, em 1976


E como era o convívio com os restantes elementos?

Sempre houve um excelente ambiente entre todos, era uma geração muito idêntica. Havia também pessoas mais antigas – só senhores, não havia senhoras – e havia esse fascínio e respeito pelos mais velhos. Entre a camada mais jovem não havia separações, nem animosidades entre rapazes e raparigas

Recebiam quando tocavam em público?

Não (risos). Era mesmo amor à camisola. O que havia e para nós e que considerávamos remuneratório é que, no final dos ensaios, havia sempre um lanchinho e ficávamos a confraternizar. Isto trazia maior proximidade com o grupo. As formações musicais nas filarmónicas eram, na altura, muito diferentes.


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Como assim?

Hoje, os miúdos entram e já existe uma escola de música montada e a maior parte dos professores são mesmo formados na área. Atualmente, as bandas já têm formação musical, com programa de Conservatório, fruto do desenvolvimento destas estruturas associativas. Aliás, entre 2012 e 2014, fui responsável pedagógica de uma escola associada à filarmónica de Porto Salvo. Mas, na nossa altura, aprendíamos com o maestro, que sabia um pouco de todos os instrumentos musicais. No meu tempo, só havia conservatórios em Coimbra, Porto, Faro e Lisboa.

Enquanto esteve na Banda, teve outra formação musical?

Comecei no Conservatório Nacional e fui ganhando formação, que alguns da minha geração não tinham. Eu era dos poucos membros que estava a fazer esse percurso. À medida que os anos foram avançando, fui dando algum acompanhamento aos mais novos, mas não estava institucionalizado que viria a dar aulas. Eu dava acompanhamento por auto-recreação.

As filarmónicas foram beneficiadas ou prejudicadas com o aparecimento dos conservatórios regionais?

Só tiveram a ganhar. Hoje olhamos e o som das filarmónicas é totalmente diferente. O repertório é mais vasto, houve uma grande evolução e tudo o que seja para melhorar deve ser bem visto. Se assim não fosse, as próprias filarmónicas não adaptariam esse sistema.

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